“Na geração do meu avô, os médicos mandavam para o dentista para extrair todos os dentes porque havia uma noção de que, de alguma maneira, eram um foco infeccioso, que comprometia a saúde geral do paciente. Anos depois, a odontologia interveio e falou: ‘De jeito nenhum ficar perdendo o dente. Vamos tratar os dentes e deixá-los em ordem’”, conta Marcos Pacheco e Silva, de 62 anos, membro da Câmara Técnica de Odontogeriatria do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp).
Não foi só a compreensão da relação entre envelhecimento e saúde bucal que mudou. Também está cada vez mais claro como ela tem tudo a ver com a saúde integral.
“A saúde bucal e a doença periodontal têm sido associadas a condições como doença de Alzheimer, câncer, doenças cardiovasculares, diabetes, doença inflamatória intestinal, osteoporose, pneumonia e artrite reumatoide. Além disso, a associação com aumento da mortalidade e incapacidade está bem documentada”, escreveu Yau-Hua Yu, professora de periodontologia da Tufts University School of Dental Medicine, na revista científica The Lancet Longevity, em outubro.
Na mesma edição da revista, um estudo de pesquisadores japoneses avaliou o efeito de 13 aspectos da saúde bucal, entre eles perda dentária, baixo desempenho mastigatório objetivo e subjetivo (a maneira como a pessoa avalia a própria mastigação), deterioração do estado do tecido periodontal e disfagia (problemas para engolir), na saúde como um todo.
A descoberta: todos os 13 aspectos do estado de saúde bucal mostraram associações significativas com a ocorrência de mortalidade, com destaque para o desempenho mastigatório objetivo. De acordo com os cientistas, recuperar a capacidade e retirar os pacientes do estrato de desempenho mastigatório “ruim” poderia evitar 23,1% dos casos de incapacidade funcional e 16,47% das mortes.
O estudo tem limitações, mas reforça um alerta importante: para envelhecer bem, é preciso estar atento à saúde da boca. Negligenciar os dentes, o periodonto (sistema que dá sustentação aos dentes e inclui estruturas como a gengiva, o osso alveolar, o cemento e o ligamento periodontal), a língua e até mesmo a saliva, pode trazer graves prejuízos.
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“Não adianta adotarmos ações para maior longevidade se não olharmos também para a boca. Ela é uma parte central (do corpo)”, frisa Letícia Bezinelli, cirurgiã-dentista e coordenadora da graduação em Odontologia do Hospital Israelita Albert Einstein.
A boca está intimamente ligada à nossa capacidade de falar, sorrir, comer e expressar emoções, influenciando o bem-estar físico, psicológico e emocional — e reforçar essa importância junto a uma população que envelhece de forma acelerada é um dos desafios dos especialistas.
“Tive uma paciente”, recorda Simone Soares, professora da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (USP), “que olhou para mim e disse: ‘Eu não tenho filhos. Um dia, eu estarei numa casa de repouso. Quem vai cuidar da minha boca? Se eu colocar uma prótese total, uma dentadura, vai ser mais fácil limpar do que se eu colocar uma que é fixa e não tem como ser removida’”.
Por que é tão importante cuidar da saúde bucal?
O acúmulo de bactérias na boca pode afetar a gengiva, que inflama, e levar a uma doença periodontal. “Forma a chamada bolsa periodontal e isso faz com que esse tecido gengival seja destruído. Com isso, essas bactérias que estão ali penetram os vasos sanguíneos e caem na corrente sanguínea”, fala Letícia.
A situação é especialmente preocupante para idosos porque, com a idade, há uma menor capacidade de sintetizar e mobilizar os elementos de defesa, como anticorpos, tornando as respostas mais lentas e inespecíficas e o paciente, mais suscetível a quadros infecciosos. “(As bactérias) podem ir para o pulmão e causar pneumonia”, diz Letícia. “Às vezes, a causa do óbito do idoso é registrada como pneumonia, mas nunca foi avaliada a condição bucal dele.”
A chegada dessas bactérias na corrente sanguínea também é uma das principais causas das endocardites infecciosas (infecção do revestimento interno do coração), segundo Letícia. Esse mecanismo tem sido apontado como uma das possíveis explicações para a associação entre infecções no periodonto e doenças cardiovasculares, que incluem infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC) e doença arterial periférica (DAP).
Por outro lado, a perda da capacidade de mastigar gera efeitos em cascata. Ela prejudica a dieta, que por sua vez está ligada a todo o funcionamento do corpo. “Não ter os dentes ou usar tem uma prótese que machuca leva a pessoa deixar de comer especialmente proteína, pois precisa mastigar mais”, lembra Letícia.
Envelhecer com todos os dentes
Se no passado era comum a extração de todos os dentes de uma pessoa mais velha, hoje, com os avanços da odontologia, envelhecer com todos — ou pelo menos com a grande maioria — dos dentes é possível e desejável.
Segundo Silva, conforme a idade avança, os dentes podem ficar mais escuros e gastos, pode haver uma pequena retração da gengiva, surgir a sensação de boca seca e haver uma redução no fluxo salivar. Essas mudanças, contudo, não consideradas normais quando não acarretam prejuízos em outras funções.
Os grandes problemas — e causas da perda de dentes — são as cáries, doença periodontal, acidentes e quedas. Em 2019, 3,5 bilhões de pessoas em todo o mundo sofriam com doenças bucais. Cáries dentárias (destruição dos tecidos calcificados do dente por bactérias) não tratadas afetavam 2,5 bilhões de pessoas, e a doença periodontal grave afetava 1 bilhão, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O edentulismo, isto é, a falta de dentes, afetava 350 milhões de pessoas.
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Especificamente no Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal - SB Brasil, divulgada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Ministério da Saúde, apontou que a prevalência de edentulismo em pessoas com 20 anos ou mais era de 14,4%, uma das dez maiores do mundo. Mostrou também que cerca de 70% dos idosos precisavam de algum tipo de prótese dentária.
Cuidados com a saúde bucal
Os cuidados com a saúde bucal devem começar na primeira infância, lembra Linda Wang, professora da Faculdade de Odontologia de Bauru da USP, e se estender pelas décadas seguintes. Abaixo, listamos as principais medidas para ter uma boca — e um corpo — mais saudáveis, segundo especialistas e a OMS.
- Alimentação
O ideal é ter uma dieta saudável e evitar açúcares livres (extraídos da cana de açúcar, beterraba e milho e adicionados em preparações culinárias). A questão não é eliminar completamente o açúcar, mas evitar consumi-lo com frequência e ficar atento a produtos ultraprocessados, em especial refrigerantes e outros itens com grande quantidade desse ingrediente.
- Reduzir o consumo de álcool
- Controlar o diabetes
- Utilizar equipamentos de proteção ao praticar esportes e andar de bicicleta
- Higienização
Para os bebês, o indicado é passar uma gaze molhada em água morna no céu da boca e no rebordo. Quando aparece o primeiro dente, a recomendação é iniciar o uso da dedeira com cerdas. Para os demais, a orientação geral é escovação, de 2 a 3 minutos, com pasta fluoretada, ao menos três vezes ao dia. Os especialistas alertam para não exagerar na quantidade de pasta — o parâmetro é uma “ervilha” — para não perder atrito. Também é fundamental usar fio dental pelo menos uma vez ao dia.
Para os mais idosos, Silva afirma que têm surgido e se consolidado no mercado produtos que podem ajudar a manter a autonomia na higienização. É o caso das escovas elétricas e também do fio dental com haste (que lembra um garfinho).
- Visitas ao dentista
Realizar visitas periódicas ao consultório odontológico é muito importante. O dentista vai poder analisar o estado da sua saúde bucal e fazer recomendações individualizadas. Para pessoas saudáveis, os especialistas falam em visitas anuais ou a cada seis meses. Conforme avança a idade e também se forem identificados problemas odontológicos, a periodicidade pode mudar.
- Atenção com a saliva
Uma série de medicamentos, como antidepressivos, têm impacto na quantidade e qualidade da saliva, um fluído muito importante para digestão (lubrificação dos alimentos e formação do bolo alimentar), defesa e promoção da mineralização dos dentes. A comunicação entre dentistas e médicos é importante para avaliar efeitos colaterais de medicações.
- Um conselho
É preciso também, lembra Simone, de flexibilidade, afinal, a vida está em constante mudança e imprevistos acontecem. “Por mais que você queira qualidade, as coisas podem se transformar. Se, de repente, você sofre um acidente e perde todos os dentes, a realidade é outra. Temos que nos adequar à realidade como ela se apresenta. E envelhecer não é fácil, é uma arte.”
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