Plano de saúde é obrigado a pagar por tratamentos de reprodução assistida?

Uma em cada seis pessoas sofre de infertilidade; OMS destaca que se trata de um problema de saúde pública e que há necessidade de ampliar acesso a tratamentos

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Por Fernanda Bassette

Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que 17,5% da população adulta – ou uma em cada seis pessoas no mundo – sofre com problemas de infertilidade, uma doença reconhecida pela instituição, com classificação no Código Internacional de Doenças (CID).

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Segundo o relatório mais recente, a OMS destaca que a infertilidade é inclusive um problema de saúde pública e que tem taxas de prevalência semelhantes em todas as partes do mundo, o que ressalta a necessidade de ampliar o acesso a tratamentos para as pessoas que precisam.

No Brasil, há poucos serviços públicos que oferecem tratamento para infertilidade (e somente parcialmente, com os pacientes pagando parte do processo). Mas e quem tem plano de saúde? Será que as operadoras são obrigadas a pagar pelos tratamentos de reprodução assistida?

“Infelizmente, não são. Uma resolução normativa da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) excluiu expressamente a obrigatoriedade de cobertura de tratamentos de inseminação artificial pelos planos de saúde, estabelecendo como obrigatória apenas a cobertura relacionada ao planejamento familiar, como aconselhamento e implante de DIU”, explica Thaís Maia, advogada mestre em bioética e sócia do escritório Maia & Munhoz, especializado em Biodireito.

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Segundo Thaís, por muitos anos os pedidos judiciais para que os planos de saúde arcassem com o pagamento da reprodução assistida usavam como argumento o teor da própria resolução da ANS, que excluía a inseminação artificial do rol de coberturas obrigatórias, mas não falava expressamente na proibição da fertilização in vitro (ou FIV) – técnica mais avançada, mais cara e que exige várias etapas.

“A inseminação artificial é apenas um tipo de tratamento de reprodução assistida. A FIV é bem mais complexa, exige a atuação de um embriologista, além de clínicas e laboratórios especializados. Como a resolução falava apenas em inseminação, os processos pediam pagamento da FIV. Muitos pacientes venciam as ações”, disse Thaís, ao destacar que, nos últimos anos, o judiciário passou a considerar que não havia essa obrigatoriedade por parte dos planos de saúde – entendimento ratificado em uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em outubro de 2021.

Planos de saúde não são obrigados a arcar com custos de reprodução assistida, mas assunto rende debate Foto: Kacper Pempel/Reuters

A não obrigatoriedade da cobertura

Diante de inúmeras ações judiciais discutindo questões idênticas – ou seja, a obrigatoriedade ou não dos planos de saúde pagarem pelos tratamentos de reprodução assistida – o STJ decidiu suspender o julgamento de todos os processos relacionados ao tema para analisá-lo mais profundamente. O Código de Processo Civil prevê que, quando houver múltiplos recursos com fundamentos idênticos, a análise do mérito do recurso pode ocorrer por amostragem.

No julgamento da tese, por maioria de votos, os ministros da Segunda Seção do STJ entenderam que “salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro”. Com isso, milhares de casais que haviam recorrido à Justiça na tentativa de obrigar o plano de saúde a custear o tratamento acabaram perdendo as ações.

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O advogado Eduardo Jost, de 45 anos, hoje pai de três filhos – todos concebidos por meio de fertilização in vitro – foi uma das pessoas que conseguiu garantir na Justiça que o plano de saúde arcasse com o seu tratamento para engravidar. Consciente do alto custo do procedimento e das dificuldades impostas para várias famílias, ele passou a atuar na área de reprodução assistida e, das cerca de 80 ações que seu escritório cuidou, teve sucesso em metade delas. Mas, isso, até 2021.

Segundo Jost, o escritório atende muitos casos de pacientes oncológicos que querem preservar a fertilidade antes de iniciar o tratamento do câncer. Nesses casos, um outro entendimento do STJ definiu que os planos de saúde têm a obrigação de custear o processo de congelamento de óvulos ou de sêmen – a chamada criopreservação –, já que a perda da fertilidade é um dos possíveis impactos do tratamento.

Na avaliação de Jost, o problema do Brasil não é falta de legislação, mas a forma como ela é interpretada e regulamentada. “Temos a Constituição Federal e a própria Lei dos Planos de Saúde que falam do planejamento familiar. A legislação diz que os planos devem cobrir planejamento familiar, mas, na visão do órgão regulador, devemos cobrir somente casos de contracepção, e não de concepção. Isso, na minha visão, é inconcebível”, diz ele.

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O advogado conta que, na última semana, conseguiu uma decisão liminar para garantir que um plano de saúde pague o tratamento de fertilização para uma paciente que tem uma doença genética. Ela precisa recorrer à fertilização in vitro para ter filhos sem o gene da doença. “Cada caso é um caso”, destaca.

Bastante engajados na causa, Jost e a esposa, Vanessa Jost, de 39 anos, até abriram uma ONG chamada Gestar – que tem como objetivo justamente auxiliar outros casais inférteis a conseguirem ser pais. “A ONG surgiu da nossa vontade de querer ajudar, inclusive buscando mais atendimentos pelo SUS. Hoje, temos somente dez serviços públicos, e nenhum deles é efetivamente coberto, porque na tabela do SUS não existe o código para a doença infertilidade”, disse Vanessa.

O casal Vanessa Jost e Eduardo Jost e seus três filhos, todos concebidos por meio de fertilização in vitro. À frente da ONG Gestar, eles ajudam casais inférteis a serem pais Foto: Virgínia Guimarães

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Mudanças sociais

Segundo Álvaro Pigatto Ceschin, presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), apesar de a infertilidade ser um problema bastante comum entre os casais que querem engravidar, os casos foram se tornando mais frequentes em especial por causa das mudanças sociais envolvendo as mulheres, que estão postergando a gravidez e deixando para serem mães um pouco mais velhas.

“É sabido que, quanto mais tarde a mulher desejar engravidar, mais difícil será, porque ela nasce com um número limitado de óvulos, que vão envelhecendo também. Por causa disso, elas estão cada vez mais buscando auxílio das técnicas de reprodução assistida para preservar a fertilidade”, disse.

Além disso, ressalta Ceschin, muitos casais homoafetivos recorrerem à reprodução assistida para serem pais – fora os já citados casos de pacientes oncológicos. “Aqui, não estamos falando da doença infertilidade como base, mas de situações em que as pessoas não podem ou não conseguem gerar filhos. E a reprodução assistida veio atender às necessidades dessa população”, disse.

De acordo com Ceschin, apesar de os tratamentos de fertilização in vitro serem reconhecidos e terem a eficácia comprovada, não há como garantir o sucesso do resultado. “A ANS entende que, para oferecer um tratamento, ele precisa ter eficácia comprovada. A reprodução assistida tem eficácia comprovada e te proporciona um prognóstico de gravidez, mas não é uma certeza, não tem uma garantia. E isso faz parte do processo”, observa o especialista.

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Ele lembra que um procedimento de fertilização in vitro (incluindo medicação, coleta dos óvulos, produção dos embriões e transferência para o útero da mulher) custa em torno de R$ 15 mil a R$ 20 mil. As chances de sucesso dependem de vários fatores, entre eles, a idade da mulher.

“Essa é a realidade nacional. Nenhum plano de saúde oferece essa cobertura. A única coisa que os planos estão pagando é o procedimento para a preservação da fertilidade para pessoas em tratamento de câncer. Mas esse paciente vai congelar os gametas e, se quiser ser pai ou mãe quando terminar o tratamento oncológico, terá que pagar pelo tratamento da reprodução assistida em si”, disse Ceschin.

Vanessa, da ONG Gestar, diz que gerar filhos é algo biológico e a dificuldade nesse processo é um problema que afeta toda uma família. Para ela, os planos deveriam cobrir os tratamentos de quem tem um problema de infertilidade diagnosticado, e não necessariamente os custos de casais que tomaram a decisão de adiar a maternidade/paternidade e, por isso, estão com dificuldade de engravidar.

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“Se o plano de saúde é uma empresa que cuida da saúde e a infertilidade é uma doença reconhecida pela OMS, na minha visão os planos deveriam cobrir os tratamentos das pessoas que tenham algum problema de saúde diagnosticado e que as impedem de gerar um filho”, raciocina. Ela nota que esses casais fazem todos os exames pelo plano de saúde para descobrir por que não conseguem ter filhos e, quando finalmente descobrem a causa e têm uma indicação de tratamento, não podem seguir em frente, porque é caro e o convênio não cobre.

Segundo Heder Bragança, especialista contábil especializado em controladoria e finanças na área da saúde, o tema é complexo e deve ser analisado levando em consideração os impactos econômicos em caso de uma possível obrigatoriedade de cobertura pelos planos para os tratamentos de reprodução assistida.

“É necessário analisar o cenário como um todo. Pelo lado positivo, a inclusão desses tratamentos pode gerar maior demanda, o que impacta na oferta de empregos e movimentação da economia. Mas é preciso se atentar ao prejuízo que uma mudança como essa pode causar. Quem vai pagar essa conta? A tendência é de que saia do bolso de todos os usuários de planos, com um aumento da sinistralidade para equilibrar essa conta”, disse Bragança.

Outro lado

Em nota, a ANS informou que no rol de procedimentos em saúde que está em vigor existem vários procedimentos que possibilitam diagnosticar e tratar casos de infertilidade, como exames hormonais, ultrassom, histeroscopia, laparoscopia, cirurgias e exames do esperma, entre outros. Aponta ainda que constam na lista de cobertura obrigatória alguns procedimentos que colaboram para o planejamento familiar, como cirurgia de esterilização masculina (vasectomia) e cirurgia de esterilização feminina (laqueadura).

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A nota diz: “O procedimento de fertilização in vitro não se encontra listado no rol e, por isso, não possui cobertura obrigatória pelos planos de saúde”. Ainda segundo a entidade, como o artigo na Lei dos Planos de Saúde cita a inseminação artificial entre as exclusões, entende-se que a intenção foi de deixar de fora a cobertura de diferentes técnicas de reprodução assistida – incluindo aí congelamento de gametas e embriões.

A ANS conta que, em 2021, foram registradas 46 reclamações de consumidores envolvendo o tema reprodução assistida e, em 2023, até o momento, são 30.

Também em nota, a FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) reiterou que um artigo previsto na Lei dos Planos de Saúde exclui expressamente a inseminação artificial da cobertura obrigatória. “Em 2021, a exclusão foi reafirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)”, reforça. Procurada pelo Estadão, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) não respondeu aos questionamentos sobre o tema.

Causas da infertilidade

Os motivos por trás da infertilidade variam muito, mas estão divididos de maneira quase igual entre homens e mulheres: 30% dos casos podem ser atribuídos a algum problema nelas; outros 30% têm a ver com questões masculinas; em 30%, a causa é mista e, em cerca de 10% das situações, a origem da infertilidade não é descoberta.

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Os principais problemas de infertilidade dos homens envolvem varicocele (varizes na região do escroto); falência testicular; infecções seminais; distúrbios hormonais, entre outros. Nas mulheres, a infertilidade costuma ter relação com problemas nos ovários, nas tubas uterinas e na própria anatomia do útero, disfunções imunológicas e endometriose. Esta última é uma das explicações mais frequentes para a dificuldade de engravidar.

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