Depois de mais de 20 anos como beneficiários de um plano de saúde da operadora Sulamérica, 53 profissionais vinculados à Associação Brasileira de Engenheiros Sanitaristas (Abes) foram surpreendidos no final do mês de julho com o recebimento de um aviso informando a rescisão do contrato pela operadora de saúde. A maioria dos profissionais tem mais de 60 anos e mantinha o plano coletivo por adesão desde antes dos anos 2000. A rescisão unilateral os deixou praticamente sem opções, já que a Sulamérica não comercializa planos individuais para absorvê-los e a Abes ainda não conseguiu migrar a carteira de clientes para outra operadora.
Na justificativa para a rescisão, a Sulamérica informou à empresa administradora do plano que a apólice tinha alta sinistralidade e poucos participantes, o que prejudicava o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. A manutenção do seguro somente seria possível diante de um reajuste de 81% no valor da mensalidade, algo considerado insustentável pela Abes.
O mercado de saúde suplementar oferece aos consumidores três tipos de produtos:
- Planos individuais ou familiares, que são contratados por pessoas físicas e seu núcleo familiar
- Planos coletivos por adesão, que são contratos feitos por pessoas jurídicas, conselhos, sindicatos e associações profissionais sem intervenção de um empregador
- Planos coletivos empresariais, normalmente feito por empresas que fornecem o benefício aos seus funcionários
No caso dos planos individuais, os reajustes anuais são definidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a rescisão unilateral do contrato só é possível por inadimplência recorrente ou fraude, mediante aviso prévio de 60 dias. O mesmo não acontece com os planos coletivos por adesão e empresariais – nesses casos, o reajuste anual é negociado entre a operadora e o contratante e ambos podem encerrar o vínculo de forma unilateral, também cumprindo um aviso prévio de 60 dias.
E é nessa permissão da rescisão unilateral que está o problema. A aposentada Valéria* (nome preservado a pedido da entrevistada), de 73 anos, por exemplo, é uma das associadas da Abes que vai perder o acesso ao plano de saúde no mês que vem. Idosa, Valéria tem artrose nos joelhos e há anos faz acompanhamento ortopédico, fisioterapia, aplicação de injeções, entre outras coisas, como forma de tratamento. Cinco dias antes de ser informada da rescisão do contrato pela Sulamérica, Valéria teve uma consulta com o ortopedista, que avisou que ela precisará ser submetida a uma cirurgia no joelho.
“E agora, como fica a minha situação? Estou no meio de um tratamento médico e preciso ‘voar’ para tentar fazer a minha cirurgia dentro do prazo de encerramento do plano. Mesmo que eu consiga operar um joelho nesse período, como fica o restante do meu tratamento? Eu não posso simplesmente ficar sem opção”, argumenta a engenheira.
Valéria contou que é associada do plano da Sulamérica há mais de 20 anos e sempre pagou em dia a mensalidade, que hoje está em torno de R$ 2.200. Ao saber da rescisão do contrato, ligou para a própria Sulamérica, para a administradora do plano de saúde e também para a Abes em busca de alternativas, mas não conseguiu resolver o problema. “A Sulamérica disse que não comercializa planos individuais, a administradora do plano informou que, no momento, não está comercializando mais nenhum produto e a Abes não me retornou com nenhuma outra opção”, disse.
Diante da falta de alternativas e da preocupação em perder a assistência médica, Valéria decidiu fazer orçamentos por conta própria na tentativa de conseguir a portabilidade para outra operadora de saúde. “Praticamente não existem mais opções de planos de saúde individuais para pessoas idosas. Os orçamentos que fiz para manter um plano de saúde num padrão similar ao que eu tenho hoje giram em torno de R$ 8 mil a R$ 13 mil, o que é inviável”, afirmou a aposentada, que procurou ajuda de um escritório especializado em direitos à saúde para saber como proceder e não ficar sem convênio médico.
O engenheiro aposentado Raul Rothschild, de 72 anos, também estava vinculado ao plano da Sulamérica por meio da Abes e recebeu com surpresa e preocupação o anúncio do encerramento do contrato. Apesar de não estar em tratamento médico atualmente, Rothschild conta que fazia consultas e exames regularmente usando a rede credenciada da operadora.
Por enquanto, ele também aguarda um posicionamento da Abes a respeito dos próximos passos. Embora tenha feito algumas consultas, não acertou a migração para nenhuma outra operadora. “A resposta da corretora de seguros foi que os planos de saúde individuais não existem mais. Tenho como opção somente a Prevent Sênior, que oferece hospitais e médicos da própria rede. Me senti enganado e desprotegido. Evidentemente jamais soube que o contrato poderia ser cancelado unilateralmente”, diz o engenheiro, que pretende continuar no mesmo plano, por isso avalia a possibilidade de uma ação judicial. “Foi uma espécie de investimento que fiz para a velhice que se aproxima”, disse.
Rescisão unilateral é permitida
De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), nos planos coletivos há duas situações que podem levar ao cancelamento: a exclusão pontual de um beneficiário ou a rescisão do contrato entre as pessoas jurídicas (a empresa contratante e a operadora) a pedido de uma ou outra parte, após o prazo de vigência do contrato, devendo ser precedida de uma notificação prévia – exatamente como aconteceu entre Sulamérica e Abes.
Em nota, a ANS informou que esse cancelamento unilateral é lícito e que, até a rescisão, o beneficiário tem direito a todos os procedimentos contratados, não podendo ter nenhum atendimento negado. Os procedimentos autorizados na vigência do contrato deverão ser cobertos pela operadora, uma vez que foram solicitados quando o vínculo entre o consumidor e o plano ainda estava ativo.
Um paciente que está em tratamento oncológico, por exemplo, terá garantido os procedimentos e/ou cirurgias autorizados durante a vigência do plano, mesmo que a realização ultrapasse o período do fim do contrato. Mas, segundo a ANS, não há obrigatoriedade de garantir a assistência durante o tratamento inteiro. O que a legislação garante é a portabilidade desse beneficiário para outra operadora de saúde sem a necessidade do cumprimento de novas carências.
Apesar de regular, quebra de contrato pode ser questionada
Segundo Marcos Patullo, advogado especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Advogados (SP), apesar de a rescisão unilateral do contrato entre a Sulamérica e a Abes ser possível do ponto de vista estritamente legal, ela pode ser questionada, especialmente nos casos de pessoas que estão com tratamento em curso, como acontece com Valéria. “Já existe um entendimento do STJ de que as operadoras têm de garantir todo o tratamento de pessoas que estão nessa situação”, afirmou o advogado. Desde 2008, o escritório já defendeu ao menos 128 ações do tipo.
Patullo diz ainda que, diante da escassez de oferta de planos individuais, muitas pessoas acabam abrindo pequenas empresas para contratar planos de saúde para o núcleo familiar – o que acaba provocando uma distorção do mercado e deixando os usuários ainda mais desprotegidos já que os reajustes ocorrem sem a interferência da agência reguladora e a rescisão unilateral pode ser feita sem nenhuma sanção.
“São planos que chamamos de ‘falsos coletivos’ porque englobam poucas vidas e geralmente são restritos a uma única família. A realidade regulatória desses planos coletivos é muito mais favorável para a operadora de saúde, que cancela os contratos diante do seu interesse comercial. O judiciário tem enfrentado muitas ações referentes a cancelamentos de contratos desse tipo”, afirmou Patullo.
O que a Abes e a Sulamérica dizem
Em nota, a Abes informou que o plano encerrado era muito antigo, por isso tinha muitos clientes idosos – eram 53 associados na carteira, de diferentes profissões. Informou ainda que “sempre defendeu os associados nas questões dos reajustes anuais, nas várias tentativas de oxigenar a carteira e para trazer mais pessoas para minimizar os aumentos. A SulAmérica foi contra e, com isto, não conseguimos melhorar a carteira, o que culminou com o cancelamento unilateral.” A Abes disse também que está trabalhando junto à administradora do contrato para auxiliar os associados a migrarem para planos de saúde equivalentes.
Também em nota, a Sulamérica informou que a negociação do reajuste referente ao contrato do plano de saúde da Abes ocorreu em julho de 2023, resultando na não renovação. “Devido à sinistralidade dos últimos 12 meses ter atingido 109%, o índice de reajuste ficou em 81,58%. Para critério de comparação, a média percentual da sinistralidade deve ficar entre 70% e 75%”, disse na nota.
A operadora acrescentou, ainda, que ofereceu o aviso prévio de quase três meses sem a aplicação do reajuste, já que a carta de cancelamento foi enviada em 5 de julho e o encerramento dos serviços ocorrerá no dia 1 de outubro. A nota diz ainda que, como alternativa, a SulAmérica orientou a portabilidade por meio de uma administradora de benefícios ou a contratação de planos individuais ofertados no mercado.
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