O número de ações judiciais contra operadoras pelo serviço de home care aumentou 64% no ano passado em São Paulo em comparação com o ano anterior, segundo levantamento feito pelo Estadão. Embora não seja obrigatória nos planos de saúde que a maioria das pessoas compra, a oferta de tratamento domiciliar tem causado confusão devido à judicialização da saúde, que cresce como reflexo das divergências de interpretação sobre regras e normas que balizam o setor.
A aprovação da lei 14.454, de setembro de 2022, está no centro da questão. Na prática, ela prevê que os planos devem custear tratamentos indicados por médicos mesmo que eles não façam parte do rol de cobertura obrigatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Com isso, o rol passou a ser considerado exemplificativo. Antes, as operadoras só estavam obrigadas a cobrir exames e procedimentos incluídos na lista da ANS.
Em 2023, no ano seguinte à aprovação da lei, as operadoras receberam cerca de 234,1 mil processos, uma média de uma nova ação a cada dois minutos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A disparada chamou a atenção do Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme mostrou o Estadão, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte e do CNJ, estuda iniciativas para lidar com o imbróglio. Enquanto elas não vêm, empresas do setor argumentam que decisões judiciais que garantem tratamentos não previstos em contrato, como é o caso do home care, aumentam a insegurança jurídica para quem atua no ramo e ameaçam inclusive a sustentabilidade do sistema (leia mais abaixo).
Leia também
Home care no centro do debate
De acordo com o levantamento realizado pela reportagem no site do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e nos Diários Oficiais da Justiça, 451 processos foram protocolados com o assunto “tratamento domiciliar/home care” em 2023. No ano anterior, haviam sido 275 nesta categoria. A análise levou em conta as seis empresas com maior número de beneficiários em São Paulo: Amil, Bradesco Saúde, Hapvida, Notredame, Prevent Senior e SulAmérica.
O aumento de 64% foi superior ao registrado no total de ações movidas contra essas empresas no mesmo período (36,5%). E é possível que esse número de processos por home care seja ainda maior, já que eles podem ser registrados no sistema do TJ-SP com assuntos mais abrangentes, como “práticas abusivas” ou “obrigações”.
A ANS explica que a legislação do setor não obriga as operadoras a oferecer qualquer modalidade de atenção domiciliar, “uma vez que a lei nº 9.656/1998 e a resolução normativa nº 465/2021 (que define o rol de procedimentos que devem ser cobertos) não incluem a assistência à saúde ampla no ambiente domiciliar entre as coberturas obrigatórias”. Dessa forma, os convênios seriam obrigados a ofertar o serviço somente quando previsto em contrato ou por iniciativa própria.
Embora o home care não conste da lista de coberturas da ANS, as entidades de defesa do consumidor e os próprios tribunais têm defendido, no entanto, que as obrigações das operadoras não se limitam ao rol e, por isso, o serviço deve ser ofertado quando for prescrito por um médico. “O Procon-SP entende que o rol de procedimentos da ANS é exemplificativo, de modo que, existindo a prescrição médica, a operadora tem o dever de concessão do home care”, diz Robson Campos, diretor de Assuntos Jurídicos do Procon-SP.
Antes mesmo da aprovação da lei 14.454, que tornou o rol exemplificativo, o Judiciário também já havia proferido decisões que criaram jurisprudência favorável aos beneficiários no tema do home care. “O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que é abusiva a cláusula contratual que proíbe a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar”, diz Marina Paullelli, advogada do programa de Saúde do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec), referindo-se à sentença STJ de 2015 que determinou que o tratamento domiciliar, “quando constitui desdobramento da internação hospitalar, deve ser prestado de forma completa e por tempo integral” pela operadora.
As Justiças estaduais têm entendimentos semelhantes sobre o assunto. “Há enunciados a respeito do tema em Tribunais de Justiça como os de São Paulo e do Rio de Janeiro”, diz o advogado Caio Henrique Fernandes, sócio do escritório Vilhena Silva, citando duas súmulas - orientações dos tribunais resultantes de um conjunto de decisões proferidas com mesmo entendimento sobre determinada matéria.
No caso do TJ-SP, a súmula 90 define que, “havendo expressa indicação médica para a utilização dos serviços de home care, revela-se abusiva a cláusula de exclusão inserida na avença (contrato), que não pode prevalecer”. Já no TJ-RJ, a súmula 209 prevê que “enseja dano moral a indevida recusa de internação ou serviços hospitalares, inclusive home care, por parte do seguro saúde somente obtidos mediante decisão judicial”.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) afirma que, em algumas situações, a internação domiciliar pode substituir a hospitalar, contanto que uma série de condições seja observada, dentre as quais a estrutura da residência, real necessidade do atendimento domiciliar, indicação médica e atenção ao equilíbrio contratual, “como nas hipóteses em que o custo do atendimento domiciliar por dia não supere o custo diário em regime hospitalar”.
A entidade diz ainda que “medidas de caráter liminar devem ser cumpridas”, mas “é importante uma avaliação sobre a observância dos critérios estabelecidos pela Justiça e pelos órgãos que regulam o setor”. “A internação em ambiente domiciliar não é prevista dentro das coberturas obrigatórias dos planos de saúde”, ressalta, reforçando “o fundamental papel do Poder Judiciário como guardião das garantias e dos direitos individuais dos cidadãos”.
Já a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) lembra que, como a lei 9.656/1998 não inclui a assistência domiciliar entre as coberturas obrigatórias, “não há contratos descumpridos no que diz respeito à cobertura de home care”. A entidade destaca que, em demandas judicializadas, “as decisões são rigorosamente cumpridas”.
Leia também
A entidade afirma ainda que “a judicialização é a forma mais ineficaz e injusta de alocar os escassos recursos da saúde”, uma vez que o aumento de demandas judiciais “causa inequidade de acesso e compromete a previsibilidade das despesas assistenciais”. Por isso, diz a FenaSaúde, “medidas que visam reduzir a judicialização na saúde, como estratégias de mediação, conciliação e canais de ouvidoria, são fundamentais para garantir a manutenção da sustentabilidade do sistema”.
Envelhecimento populacional aumenta demanda
Outro fator apontado por especialistas como razão para a alta de ações por home care é o acelerado envelhecimento populacional observado no País. “Estamos envelhecendo a passos largos. Internações por causas comuns, como pneumonia, fraturas de fêmur e infarto, podem fazer o idoso voltar para casa pior do que saiu. Ele às vezes sai andando e volta acamado, precisando de cuidados domiciliares com médico, fisioterapeuta, por exemplo”, diz a geriatra Maisa Kairalla.
Ela lembra ainda que também não é incomum pacientes com doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, precisarem de atenção domiciliar quando a doença avança. “As famílias não têm estrutura financeira para pagar e acabam judicializando”, afirma a médica.
A família da dona de casa Tamam Ibrahim Aoun, hoje com 100 anos, teve de pagar durante três anos o tratamento domiciliar para a idosa após sucessivas recusas do plano de saúde em oferecer o serviço. “Não aceitavam fornecer nada: enfermagem, cama hospitalar, oxigênio. Diziam que a gente não tinha direito pelo contrato. A gente tinha que pagar tudo, era uns R$ 15 mil por mês com as despesas do home care, além do valor da mensalidade do plano, de R$ 5 mil”, conta a professora aposentada May Aoun, filha de Tamam.
Em setembro do ano passado, após Tamam passar por uma internação e ter piora no estado de saúde geral, May decidiu entrar na Justiça contra a operadora. “Ela deixou de se alimentar por boca, passou a ter GTT (gastrostomia, alimentação feita direto pelo estômago). Eu não podia voltar com ela para casa sem os devidos cuidados”, conta.
O juiz deu decisão favorável para a família da idosa e, agora, o convênio é obrigado a fornecer o home care. “Ainda ficamos 15 dias no hospital depois da alta esperando eles cumprirem a sentença”, conta a professora.
A vendedora Cristiane Ferraz da Mota Melo, de 46 anos, também entrou na Justiça em maio para garantir o home care para o filho Lorenzo, de 13. Aos seis anos, o menino foi diagnosticado com doença de Huntington, condição degenerativa rara que vai causando perda progressiva das funções cognitivas e motoras.
“Ele depende dos aparelhos para respirar, para viver, então o convênio sabe dessa patologia rara dele há anos, mas me avisou que cancelaria o plano porque estava dando prejuízo e que, em determinada data, viriam na minha casa buscar todos os aparelhos. Eles iam deixar meu filho morrer”, diz Cristiane.
Ao entrar com ação na Justiça, a vendedora conseguiu liminar garantindo a manutenção do plano e do home care para a criança.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.