Planos de saúde ampliam ações na Justiça e uso da tecnologia para combater alta de fraudes

Nº de notícias-crime e ações cíveis ligadas a fraudes contra convênios médicos cresceu 884% em quatro anos; práticas irregulares vão de fracionamento de recibo a empresas de fachada

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Atualização:

Diante do aumento de fraudes contra convênios médicos, as operadoras de planos de saúde iniciaram nos últimos meses uma ofensiva contra os fraudadores em um esforço que inclui exigência de biometria facial para uso de aplicativo, ferramentas de inteligência artificial para identificar clínicas problemáticas, tentativa de parceria com o Google para remoção de anúncios fraudulentos e até denúncias ao Ministério Público.

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Levantamento inédito da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) obtido pelo Estadão mostra que o número de notícias-crime e ações cíveis movidas pelas operadoras para a denúncia de fraudes subiu 884% entre 2018 a 2022, passando de 75 para 738 procedimentos no período.

A investida se dá principalmente sobre situações que envolvem pedidos de reembolso, condição em que a maior parte das fraudes ocorre. “Hoje você tem na saúde suplementar todo tipo de fraude. Em analogia, há desde o batedor de carteira a organizações criminosas. O batedor de carteira seria aquele que pede para fracionar o recibo de uma consulta em dois para ter reembolso maior. E as organizações criminosas são empresas de fachada criadas com o único intuito de fraudar planos de saúde”, diz Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde.

A entidade já apresentou três notícias-crime ao Ministério Público de São Paulo que levaram à abertura de nove inquéritos policiais. As representações denunciavam contratações fraudulentas de planos de saúde para obtenção de vantagem indevida através de reembolso.

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Pelo esquema, empresas de fachada contratavam planos premium de diferentes operadoras para seus supostos funcionários. Elas simulavam atendimentos e solicitavam reembolsos por meio de CNPJs de clínicas que fariam parte do esquema. A estimativa é que essas fraudes tenham envolvido o pagamento indevido de R$ 51 milhões.

De acordo com as empresas, práticas abusivas e fraudulentas em reembolsos se intensificaram a partir de 2021, quando o valor gasto pelas operadoras com esse tipo de pagamento passou a registrar aumento muito superior ao das despesas assistenciais. Levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) com base em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostra que enquanto as despesas assistenciais aumentaram 0,2% entre 2021 e 2022, o valor gasto com reembolsos subiu 25,6%.

Digitalização facilita irregularidades

“Fraudes sempre existiram. A diferença é que, quando era tudo analógico, era mais difícil. Com a acelerada digitalização que tivemos na pandemia, as fraudes aumentaram, principalmente pela prática do reembolso assistido”, explica Cassio Ide Alves, superintendente médico da Abramge.

Ele se refere a clínicas e consultórios que solicitam login e senha dos beneficiários para auxiliar no pedido de reembolso para o convênio sob o argumento de oferecer maior comodidade ao cliente. Na prática, porém, algumas dessas clínicas podem se aproveitar do acesso ilimitado ao perfil do cliente para inserir procedimentos não realizados, lançar valores exorbitantes e até trocar a conta bancária informada para reembolso para que o prestador receba diretamente da operadora.

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De acordo com a Abramge, em alguns casos investigados, as clínicas chegaram a abrir nova conta bancária no nome do beneficiário sem que ele soubesse para que o reembolso fosse, em tese, direcionado para o cliente e não levantasse suspeitas das operadoras. A conta, no entanto, era administrada pelo fraudador (veja ao final da reportagem o que fazer se você passou login e senha da conta do plano de saúde para um prestador de serviço).

Funcionário da SulAmérica testa biometria facial que será exigida em aplicativo da operadora Foto: Alex Silva/Estadão

De olho nas práticas fraudulentas em reembolsos, a SulAmérica quadruplicou o tamanho da sua equipe de combate a fraudes, desenvolveu ferramentas de inteligência artificial para identificar possíveis fraudadores e vai implantar, no fim deste mês, biometria facial para acesso ao aplicativo. “Estamos com uma área multidisciplinar trabalhando nesse tema, com profissionais de auditoria, jurídico, segurança da informação, inteligência artificial, especialista em sinistro, em sindicâncias. Temos até ex-delegado na equipe”, conta Raquel Reis, presidente de Saúde e Odonto da SulAmérica.

A decisão de ampliar as iniciativas de combate a práticas irregulares se deu após a companhia observar aumento de 101% no valor pago em reembolsos entre janeiro de 2019 e março de 2023. Com isso, o custo com esses pagamentos passou a representar 12,3% de toda a sinistralidade da empresa, ante 9,6% no início de 2019.

Em abril passado, a empresa contratou uma ferramenta para rastrear anúncios que traziam práticas fraudulentas em seu conteúdo. Segundo Raquel, foram identificadas em redes sociais e no Google mais de 900 propagandas com práticas irregulares, entre elas oferta de procedimentos como botox que seriam cobertos pelo plano, reembolso sem desembolso, entre outras.

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Reembolsos para exames chamam atenção

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A executiva diz ainda que a equipe especializada identificou aumento expressivo no pedido de reembolso em casos de exames, o que não é comum. “Geralmente, o reembolso costumava ser usado para uma consulta médica com um profissional de confiança que não está na rede referenciada, mas dificilmente para exames, já que os planos têm ampla rede credenciada de laboratórios. Passamos a ver o oportunismo de algumas clínicas cujos profissionais indicavam 50, 100 exames e induziam o cliente a fazê-los todos no local, cobrando valores muito superiores à média do mercado”, diz.

Nesses casos, um hemograma que custa geralmente de R$ 12 a R$ 15 chegava a ter o valor lançado de mais de R$ 200, com o fraudador se aproveitando do limite de reembolso daquele plano.

A partir da identificação de anúncios online com práticas fraudulentas, a SulAmérica se juntou à Abramge na iniciativa de procurar plataformas como Google para tentar criar um mecanismo que iniba essas publicidades. “Tivemos reunião já com o Google para entender quais são os caminhos. Estamos fazendo um documento com os links dessas publicidades para que eles avaliem se há crime e se seria possível derrubar esses links”, diz Alves, da Abramge. O setor também pretende estabelecer o mesmo diálogo com a Meta, dona do Facebook, Instagram e Whatsapp.

O Google afirmou que tem “políticas robustas que delimitam a forma como pessoas e empresas podem anunciar produtos por meio do Google Ads” e disse que, quando identifica uma violação, “age imediatamente”, mas que, quando não há elementos suficientes para identificar se houve uma violação das políticas, “cabe à Justiça determinar a remoção do conteúdo, de acordo com os termos do Marco Civil”.

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A Care Plus também fortaleceu a área de análise de dados para aumentar a chance de identificar práticas fraudulentas. Por trabalhar com foco no mercado premium e, portanto, com planos com altos valores de reembolso, a companhia percebeu o impacto das fraudes e iniciou ações de combate um pouco antes que as demais empresas.

“Quando começamos a pegar essas trilhas de fraudes, iniciamos uma investigação e começamos a observar padrões. Inserimos esses padrões num modelo estatístico com toda a nossa base de sinistros pagos e é relativamente simples ver quando esse padrão se repete. Isso nos permitiu identificar quais clínicas tinham padrão de comportamento parecido e deixá-las identificadas para que, caso ocorra outra transação suspeita, isso dispare um alerta”, diz Ricardo Salem, diretor de Saúde da Care Plus.

Com foco em análise de dados e campanhas de comunicação para beneficiários e profissionais da saúde sobre práticas fraudulentas, a companhia conseguiu reduzir em 29% o valor pago em sinistros entre abril e dezembro de 2022 em comparação com o mesmo período do ano anterior, com economia na casa dos R$ 16 milhões. A companhia estima que esse era o porcentual de valores pagos indevidamente em reembolsos por causa de fraudes.

Fraudes pesam também no bolso do consumidor

Os executivos do setor ressaltam que o combate às fraudes não é um esforço que beneficia somente os caixas das operadoras, mas, sim, o bolso do cliente. “Em um primeiro momento é a operadora que é prejudicada, mas isso volta para o consumidor porque as despesas são consideradas no cálculo do reajuste”, diz Raquel Reis, da SulAmérica.

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Questionada sobre ações que vem realizando para coibir fraudes no setor de saúde suplementar, a ANS informou que as práticas fraudulentas são “apuradas pelos órgãos com competência para tal, como a polícia e o Ministério Público” e que, caso saiba de conduta do tipo, o caso é noticiado a esses órgãos.

Afirmou que, mesmo que não tenha competência para apurar esse tipo de prática, “tem buscado soluções para coibir práticas ilegais, como medidas para melhorar a apuração dos fatos no momento da recepção de reclamações de consumidores pelos canais de atendimento da agência.

“Por exemplo, no caso de reclamações sobre problemas com reembolso, o atendente do Disque ANS está orientado a perguntar se houve efetivo pagamento pelo procedimento. Caso a resposta seja que até o momento não foi realizado o pagamento, o atendente informa que o reembolso só é devido após a existência do desembolso prévio, esclarecendo que se não aconteceu pagamento, não há previsão legal para reembolso por parte da operadora”, disse a agência, em nota. Isso porque algumas clínicas fraudadoras chegam a registrar reclamações (NIP) na ANS para pressionar a operadora a pagar o valor.

“Nesse processo criminoso, o fraudador entra com pedido de reembolso e, na mesma hora, abre uma NIP para que a operadora fique com a corda no pescoço porque, se não resolver, pode pagar uma multa de R$ 80 mil. Muitas vezes a operadora acaba pagando pela pressão e a NIP, criada para proteger o consumidor, é usada de forma indevida”, diz Vera Valente, da FenaSaúde. Só a SulAmérica disse que já teve mil NIPs canceladas após comprovar que as queixas estavam relacionadas a práticas fraudulentas.

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A ANS disse ainda incentivar as operadoras a procurarem os órgãos devidos para investigar possíveis crimes, como a polícia, o Ministério Público, o Poder Judiciário e os conselhos profissionais.

Veja abaixo os principais tipos de fraude

A FenaSaúde fez uma cartilha para orientar clientes e prestadores de serviço sobre os principais tipos de fraude. Vale lembrar que, para o beneficiário, a prática de fraude pode levar à suspensão do contrato do plano de saúde e à demissão por justa causa se o plano fraudado for empresarial (fornecido pelo empregador). Saiba mais:

Fornecer dados pessoais a clínicas/Usar dados de terceiros: Assim como a senha do seu banco, o login e a senha de acesso ao site e aplicativo do seu plano de saúde devem ser confidenciais. Os beneficiários podem ser induzidos a fornecer seus dados com a promessa de ter ajuda para a realização de algum processo junto à operadora. Mas com posse desses dados, terceiros podem ter acesso a informações pessoais e utilizá-las de forma inadequada, por exemplo, para alterar a conta bancária vinculada ao reembolso ou para solicitar reembolso de procedimentos não realizados.

Empréstimo de carteirinha: A carteirinha do plano é pessoal e intransferível. Quando uma pessoa se passa por outra para usar o plano de saúde de um terceiro, comete crime. Assim como aqueles que cedem sua carteirinha para uso.

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Fracionamento de recibo: Quando uma única consulta ou procedimento é realizado, mas emite-se mais de um recibo ou nota fiscal, com o objetivo de conseguir reembolso total mais alto, configura-se prática irregular e fraudulenta. O pedido de reembolso deve informar corretamente o procedimento ou a consulta realizada, assim como o valor efetivamente desembolsado, para pagamento com base nas cláusulas contratuais.

Informações falsas na contratação do plano: A omissão ou falsificação de dados pessoais como idade, condições pessoais de saúde ou vínculos empregatícios, para contratação de plano de saúde ou obtenção de vantagens contratuais, é fraude.

Reembolso assistido ou auxiliado: O chamado “reembolso assistido” geralmente é oferecido em troca da cessão de dados pessoais dos beneficiários, como o login e senha de acesso ao portal do cliente na operadora de plano de saúde. O beneficiário recebe como promessa a ‘facilitação’ do processo de pedido de reembolso.

Reembolso sem desembolso: Muitas vezes o beneficiário é estimulado a realizar atendimento fora da rede credenciada, sob a promessa de que não precisará fazer qualquer pagamento pela consulta ou procedimento. No entanto, para que o beneficiário tenha direito ao reembolso, é necessário que tenha pagado previamente os valores dos serviços de saúde.

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Adulterar estado clínico ou informar procedimento diferente do que foi feito: A alteração do estado clínico do paciente (classificação da doença no pedido médico) para solicitar procedimentos desnecessários, excessivos ou não cobertos pelos planos de saúde – por exemplo, para fins estéticos -, além de ser fraude, muitas vezes coloca a saúde do paciente em risco.

Golpes virtuais: Criar sites falsos ou outros recursos para emitir ou alterar boletos é crime. Nesses casos, o dinheiro depositado é desviado para a conta dos fraudadores, afetando diretamente os beneficiários.

Criação de empresas falsas: Há casos em que são criadas empresas falsas para a contratação de planos de saúde coletivos e prestação de serviços. Os colaboradores da empresa são beneficiários falsos. Essas organizações criminosas contratam diversos planos de saúde do mercado e começam a solicitar reembolso de procedimentos emitidos por prestadores de fachada, nunca feitos por esses colaboradores que só existem no papel.

O que fazer se você passou login e senha para uma clínica

- Altere a senha da sua conta no app/site da operadora

- Verifique o histórico de reembolsos para avaliar se foram feitos pedidos de ressarcimento indevidos

- Informe a operadora contratada sobre a situação

- Verifique no site do Banco Central se foi aberta indevidamente alguma conta bancária em seu nome

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