A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) quer endurecer as regras para descredenciamento de prestadores de serviço da saúde suplementar e para rescisão unilateral de contratos. Presidente da ANS, Paulo Rebello disse em entrevista ao Estadão que são preparadas normas para dar mais transparência à relação entre clientes e planos.
A agência também planeja, segundo ele, estabelecer quais indicadores as operadoras devem apresentar para justificar o reajuste de mensalidade dos planos coletivos (hoje só planos individuais têm teto de aumento definido pelo órgão regulador).
Já sobre a fiscalização do setor, Rebello reconhece as dificuldades. “Fiscalizamos quase 900 operadoras. Hoje são 242 mil CNPJs de prestador (de serviço), seja hospital, seja clínica. É um número excessivo e, infelizmente, não temos como dar conta de mais esse trabalho com a estrutura que temos”, afirma.
Ele vê, por exemplo, risco na proposta do parecer da lei dos planos de saúde, que prevê que a ANS fiscalize clínicas e hospitais que prestam serviço para os planos. Segundo ele, a agência tem uma defasagem de 17% nos quadros.
Além disso, diante da evolução de tratamentos e terapias, Rebello defende cooperação com a indústria farmacêutica para que os planos sejam capazes de ofertar medicamentos de alto custo. Entre as possibilidades, o diretor presidente cita a ideia de construir um fundo capaz de financiar esses tratamentos ou estabelecer um fila única, a exemplo do que ocorre com os transplantes no Sistema Único de Saúde (SUS).
Advogado, Paulo Rebello foi nomeado para presidir a ANS ainda em 2021, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), e tem mandato até 2024. Segundo ele, até o momento a relação com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva é “republicana” e “sem problema algum”.
Recentemente, a ANS foi criticada por liberar reajuste de 9,63% para planos individuais, considerado lesivo aos clientes. Qual a justificativa para esse valor?
A agência tem uma forma de reajuste aprovada internamente em 2018 e que começou a valer a partir de 2019. Antes, tínhamos um modelo em que pegávamos todos os contratos coletivos, fazíamos uma média e aplicávamos o reajuste do individual. Evoluímos para essa fórmula muito mais transparente em que, basicamente, você tem duas vertentes. Uma relacionada à frequência de uso do plano e outra à variação das despesas assistenciais com o índice de preço do consumidor amplo (IPCA, principal índice de inflação do País). Hoje todo o mercado consegue já estabelecer qual seria esse percentual muito antes de a gente publicar, porque todas essas informações estão no nosso site. É uma fórmula que trouxe bastante transparência, mais credibilidade.
A fórmula usa a despesa assistencial de um ano comparada com outro ano. Essa mesma fórmula que estão criticando concedeu reajuste negativo de 8,19% no ano de 2021, o que demonstra que capta exatamente a frequência relacionada às despesas assistenciais. Como houve a pandemia e as pessoas deixaram de procurar os médicos, os hospitais, houve redução da frequência de utilização e essa fórmula captou.
No ano seguinte, quando houve a majoração com relação à utilização, houve um valor mais alto, aquele percentual de 15,5%. Há uma fórmula que já foi debatida com toda a sociedade, foi discutida junto à academia, debatida junto ao Tribunal de Contas. Houve questionamento na Justiça e essa fórmula foi referendada pelo Judiciário também. Obviamente é uma fórmula que pode ter aperfeiçoamento, aprimoramento. A própria fórmula estabelece que após quatro anos vamos fazer uma avaliação de resultado regulatório.
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça cobrou a ANS por causa desse reajuste. Como avalia a relação do governo com a agência hoje?
A agência é de Estado. Na verdade, não olhamos quem está sentado na cadeira, olhamos as políticas públicas. Essa interface com quem quer que seja sempre vai existir. Eu, como gestor, sempre tento construir pontes e o governo até agora sempre foi aberto para qualquer tipo de diálogo. Na Senacon houve convite para tentar entender como se deu a questão do reajuste. Para fazer a divulgação, submetemos o reajuste ao Ministério da Fazenda, que elaborou nota técnica concordando com o reajuste e a metodologia aplicada pela agência. Nossa relação sempre será republicana, direta, sempre buscando construir pontes. E até agora não há problema nenhum.
Aumentaram nos últimos meses os relatos de suspensão unilateral de contratos por parte das operadoras, redução de rede credenciada, entre outras queixas de consumidores. Acredita que essas regras deveriam ser revistas para aumentar a proteção ao usuário? De que forma isso poderia ser feito?
Existem regras já estabelecidas pela agência com relação a descredenciamento e credenciamento hospitalar, de clínicas. E a agência vem estudando internamente, há alguns anos, o aperfeiçoamento dessa regra, que já é antiga. Estamos estudando uma forma de dar publicidade a essa nova regra. Por esses dias ou nas próximas reuniões de diretoria colegiada, devemos soltar essa nova regra relacionada a credenciamento e descredenciamento. Há um acordo estabelecido entre a operadora e a clínica, e a agência de alguma forma acompanha, estabelece regras, e temos de olhar caso a caso para ver se foi descumprido ou não o que está estabelecido. Quando colocam que há muitos descredenciamentos e a agência não acompanha, isso não é verdade. Acompanhamos e verificamos.
Todos os casos que chegam ao nosso conhecimento a gente entra em contato com a operadora, tenta entender o que está acontecendo. E se houver alguma irregularidade, mandamos que seja desfeito esse descredenciamento. A agência está fiscalizando possíveis abusos relacionados a essa questão.
Essa nova norma vai dificultar o descredenciamento?
Estamos estabelecendo regras mais claras. Não posso adiantar, porque estamos estudando. Preciso ter maioria colegiada, não posso antecipar meu voto. Mas a ideia é que sim: dê mais transparência, clareza nas regras postas. O foco será na segurança do consumidor, na prestação do serviço. Tendo a necessidade de descredenciar baseado em critérios práticos - ou seja, má prestação de serviço -, que isso seja feito. Mas de forma que o beneficiário seja menos afetado em razão da relação desfeita entre a operadora e o prestador.
E em relação à suspensão unilateral de contrato por parte das operadoras. Como conter essas suspensões?
Existe uma regra que está posta hoje. Pode haver a rescisão unilateral desde que atenda a requisitos com relação ao período do contrato, tem de notificar o consumidor, colocar no seu site. A regra hoje é posta e assim está sendo aplicada e adotada pelo setor.
Tramita no Congresso projeto para alterar a Lei dos Planos de Saúde. O relator pretende rever alguns pontos, como rescisão unilateral, criar limitações para reajuste de planos coletivos, e incluir fiscalização de prestadoras de serviço por parte da ANS. Qual sua opinião?
Há 271 projetos incluídos nessa relatoria do deputado Duarte Júnior (PSB-MA). São 17 anos do primeiro projeto. Muito já foi feito na regulação em razão dos pedidos ou projetos que lá estão. Temos conversado muito com o deputado. Há na agência uma proposta, que está sendo discutida relacionada ao reajuste (do plano) coletivo, à forma que entendemos que seria correta: dando mais transparência, colocando os indicadores que serão adotados pelas operadoras quando for apresentado o reajuste ao contratante e a todos os beneficiários que compõem aquele plano.
Com relação à rescisão unilateral de contratos, temos uma resolução que está sendo gestada estabelecendo critérios mais claros com relação à rescisão dos contratos. Esperamos que, quando haja rescisão, o consumidor seja avisado, se estabeleçam prazos para que consiga se organizar. E, paralelo a isso, a regulação apresenta ferramentas que podem acomodar o beneficiário que seria através da portabilidade.
A ideia é que, uma vez havendo rescisão do contrato, sejam estabelecidas regras mais claras que dê conhecimento ao beneficiário, mas também deixando ele à vontade para que quando houver necessidade ele faça portabilidade para outros planos.
Com relação à fiscalização do prestador, tenho uma posição muito pé no chão. Hoje temos na agência uma solicitação de concurso público. Temos cerca de 17% do nosso corpo de servidores com vagas disponíveis, esperando concurso. Fiscalizamos quase 900 operadoras. Hoje são 242 mil CNPJs de prestador, seja hospital, seja clínica. É um número excessivo e, infelizmente, não temos como dar conta de mais esse trabalho com a estrutura que temos. Há uma gama de órgãos que fiscalizam os prestadores. Talvez seja o caso de incluir alguma outra competência a esses órgãos que já fazem esse trabalho.
Como a agência vê a possibilidade de os planos arcarem com tratamentos avançados e caros que surgem para alguns tipos de câncer e doenças raras? De que forma garantir equidade no acesso e, ao mesmo tempo, a sustentabilidade do setor?
São desafios estruturais. Temos a questão demográfica, mudanças que impactam o sistema de saúde como um todo. Não só o brasileiro, mas mundial. Em 2050, teremos uma estrutura etária envelhecida. Temos uma estrutura de evolução de doenças e mortalidade da população, e as mudanças tecnológicas também.
De um tempo para cá, a tecnologia e a inovação vêm evoluindo. As tecnologias são colocadas no mercado de forma célere. Estamos conversando com a indústria farmacêutica, com o Ministério da Saúde, porque temos de encontrar uma forma de financiar esse tipo de medicamento. De fato, o acesso vai ter de existir, mas como será esse pagamento é o que nos preocupa. Vinte por cento das operadoras de planos de saúde não faturam durante um ano o valor do último medicamento incorporado, no valor de R$7 milhões ou R$ 8 milhões.
Temos de evoluir numa lógica de compartilhamento de risco com a indústria farmacêutica. Precisamos criar um fundo para que essas pessoas que tenham esse tipo de necessidade dessa tecnologia possam se equivaler dele para arcar com o medicamento. O debate está na mesa. Precisamos dialogar, porque isso vai comprometer a capacidade de pagamento dos beneficiários.
Precisamos ver que caminho encontramos para arcar com esses medicamentos que chegam e vão chegar cada vez mais. Temos evoluído para uma Medicina cada vez mais personalizada. Teremos de encontrar uma alternativa para isso, caso contrário as pessoas terão dificuldade de permanecer dentro do setor de saúde suplementar, porque não terão condição de arcar. Todo e qualquer medicamento incorporado e ofertado no setor vai ser repassado dentro do sistema e tem reflexo nos valores repassados a título de mensalidade para os beneficiários.
Esse fundo teria participação do Sistema Único de Saúde (SUS) e das operadoras?
Não tem uma ideia pronta ainda. Mas talvez, para esses medicamentos e terapias avançadas, por que não criar uma fila única a exemplo do que se faz com o transplante? Ainda está no campo da ideia. Ninguém conseguiu materializar ainda, mas é um assunto muito debatido por todos atores do setor.
O número de ações judiciais e queixas em órgãos de defesa ao consumidor contra planos de saúde são crescentes. O que a gestão atual pretende fazer para proteger consumidores de eventuais práticas abusivas?
Temos aqui dentro da agência uma ferramenta muito rica, a Notificação Intermediação Preliminar (NIP). É um canal junto ao consumidor para que ele faça suas reclamações. No ano passado, tivemos 250 mil reclamações na agência.
Como funciona isso? Você dá entrada na reclamação e em cinco dias a operadora já é notificada para que tome conhecimento e possa reparar esse possível problema. Isso nos casos assistenciais, nos não assistenciais há um prazo de 10 dias. Se não for resolvido dentro desse prazo, abre-se um processo, que pode culminar em multa para as operadoras. Hoje temos uma taxa de resolutividade em torno de 90% das reclamações.
Hoje estamos vivendo numa lógica de hiperjudicialização. Dados do CNJ dizem que em 2015 tínhamos em torno de 200 a 300 mil ações na justiça. Em 2020, chegou a quase 500 mil. Há uma média de 130 mil ações por ano relacionadas ao setor de saúde suplementar. Estamos evoluindo para tentar encontrar soluções que antecedem o processo judicial. Temos dentro da fiscalização da agência uma iniciativa proativa em que temos um planejamento para fiscalizar aquelas operadoras. E as questões mais reativas, que são das denúncias que chegam.
A ANS muitas vezes é questionada, como no caso da compra da SulAmérica pela Rede D’Or, operação que foi alvo de críticas. De que forma a agência responde a essas críticas e o que faz para que essa e outras operações de compra não prejudiquem os beneficiários?
Toda e qualquer decisão tomada na agência é baseada em questões técnicas. No caso específico da Sulamérica com a Rede D’Or, passou por outros órgãos. Órgão de defesa da concorrência aprovou a operação. Nós também aprovamos. Entendemos dentro da estrutura e da composição do que era o grupo econômico que não haveria qualquer tipo de prejuízo ao beneficiário e por isso evoluiu. Críticas vão existir, seja de um lado ou de outro. A missão institucional da agência é o interesse público. Não tem nenhuma questão de favorecer A, B ou C.
Sempre são observadas questões técnicas por parte da agência. Toda decisão tomada está respaldada com várias notas técnicas, várias diretorias. O fato é que essa operação envolve um número maior de beneficiários que acabou indo a público. Mas igual a essa, tivemos várias outras sem qualquer tipo de questionamento. A agência precisa definir dentro do arcabouço regulatório a definição de grupo econômico. Não tem essa definição dentro da agência e isso está na nossa agenda regulatória para que se possa evoluir e fazer a conceituação.
Operadoras de planos de saúde têm relatado supostas fraudes com impacto milionário sobre as operadoras, sobretudo por meio de reembolsos falsos. O que a agência faz para evitar ?
A agência está sensível a essa questão, mas ao mesmo tempo não temos dentro da nossa competência regulatória fazer esse tipo de análise ou investigação. É uma relação entre operadora e prestador. Se há algo que venha a desabonar essa conduta entre as partes, fraude é crime. Crime tem de ser denunciado junto ao Ministério Público, à polícia. É isso que falamos para as operadoras, que tomem providências no sentido de verificar se há comprovação de fraude e uma vez constatada nos informe.
Minha preocupação é a agência não ser um colaborador desse tipo de prática. Uma vez tomando conhecimento que há processos ou NIPs abertas com esse propósito, recepcionamos por parte das operadoras decisões tomadas na Justiça e acabamos suspendendo a tramitação daquela NIP para que não sirva de insumo para prejudicar a suspensão de comercialização de produtos das operadoras.
Regras em vigor para descredenciamento de estabelecimentos de saúde:
- Hospitais: poderão ser substituídos por outros equivalentes desde que os consumidores e a ANS sejam comunicados 30 dias antes. Esses estabelecimentos também podem ser excluídos caso reduzam seus serviços, mas, nesse caso, é necessária autorização da ANS
- Clínicas, consultórios e laboratórios: só poderão ser descredenciados se forem substituídos por outro equivalente. Nesse caso, a operadora deverá comunicar os consumidores 30 dias antes por meio do site ou Central de Atendimento. Não é necessário obter autorização e tampouco comunicar a ANS sobre a troca.
- Caso o beneficiário tenha um tratamento em andamento, deverá escolher outro prestador de serviço que realize o mesmo procedimento, que será obrigatoriamente fornecido pela operadora
Regras em vigor para rescisão unilateral de contrato:
- Fraude comprovada
- Não pagamento de mensalidade por mais de 60 dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato desde que o consumidor tenha sido notificado até o 50º dia de atraso.
- Quando o beneficiário é excluído do plano de saúde ou tem o seu contrato rescindido, ele tem o direito de contratar um novo plano sem cumprir novos prazos de carências ou cobertura parcial temporária
- No caso de plano coletivo, poderá haver rescisão caso haja perda de vínculo com a empresa contratante. Nessa modalidade de planos, a notificação com 60 dias de antecedência só poderá ser exigida se isso estiver explícito no contrato.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.