Planos de saúde enfrentam um novo processo a cada 2 minutos no País; entenda alta da judicialização

Especialistas e entidades de defesa do consumidor dizem que qualidade do serviço piorou e práticas abusivas aumentaram; operadoras afirmam que lei do rol exemplificativo fez número de ações aumentar

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Foto do author Weslley Galzo
Por Fabiana Cambricoli, Weslley Galzo e Álvaro Justen
Atualização:

O número de ações contra planos de saúde cresceu quase 33% no último ano em comparação com 2022, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No ano passado, as operadoras receberam cerca de 234,1 mil processos, uma média de uma nova ação a cada dois minutos. A alta litigiosidade no setor já chama a atenção até do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, que, junto ao CNJ, estuda iniciativas para lidar com a questão, conforme revelou o Estadão. Mas por que o número de processos contra planos de saúde vem crescendo tanto?

Para as operadoras, a principal razão para o aumento da judicialização foi a aprovação, em setembro de 2022, da lei 14.454. Ela prevê que tratamentos indicados por médicos devem ser custeados pelos convênios mesmo que não façam parte do rol de cobertura obrigatória definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo os planos de saúde, a legislação fez com que tratamentos e medicamentos fora do rol fossem demandados judicialmente independentemente da indicação clínica e evidências científicas (leia mais abaixo).

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Para Daiane Nogueira, conselheira do CNJ e supervisora do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), instância criada em 2010 para monitorar e propor políticas judiciárias diante da alta litigiosidade na área, alguns fatores podem ter influenciado o aumento de processos, como o desenvolvimento acelerado de novas tecnologias e medicamentos, o envelhecimento populacional e mudanças nas regras da prestação de serviço. “Nos últimos anos, ocorreram alterações normativas e legislativas sobre os direitos dos usuários dos planos de saúde que podem ter contribuído para o aumento da judicialização”, afirma ela.

A principal mudança foi a já citada lei 14.454, aprovada em setembro de 2022. Naquele mesmo ano, outra alteração importante: a ANS acabou com o limite de sessões de terapias, tornando os atendimentos com psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais ilimitados para os beneficiários. Com isso, muitas famílias de crianças com transtornos do desenvolvimento, como autismo, têm entrado na Justiça para ter acesso às terapias.

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Para representantes das operadoras, essas duas alterações nas regras do setor são os principais motivos do aumento da judicialização nos últimos anos. Já para especialistas e entidades de defesa do consumidor, a alta de ações contra os convênios médicos deve-se à piora da qualidade do serviço prestado e ao aumento de práticas abusivas pelas operadoras, como negativas de cobertura, reajustes elevados e cancelamentos unilaterais de contratos de pacientes em tratamento.

Eles argumentam ainda que a alta de processos pode ser associada também com as demandas de saúde que ficaram represadas durante a pandemia e destacam que ainda não é possível saber se há uma tendência sustentada de alta no número de processos ou se o crescimento observado em 2023 é apenas o retorno do patamar normal de ações registrado antes da pandemia.

“A judicialização é um fenômeno crescente nos últimos anos. O que aconteceu nos anos recentes foi que a saúde suplementar foi freada nos anos da pandemia e as pessoas deixaram de buscar demandas. Em 2022 e 2023, houve uma retomada. Mas há indícios de que as empresas estão recorrendo a certas práticas que levam cada vez mais as pessoas à Justiça”, diz Lucas Andrietta, coordenador do programa de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).

O Estadão pediu ao CNJ dados sobre o número de processos contra planos de saúde dos anos anteriores à pandemia, mas o conselho disse que houve uma mudança no sistema e no método de coleta e que, por isso, não teria como passar dados anteriores a 2020 porque a comparação dos dois intervalos seria indevida.

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Um estudo do Idec divulgado em fevereiro feito com base na análise de processos movidos de 2019 até agosto de 2023 em São Paulo mostrou que não houve aumento das ações em comparação com os números pré-pandemia, o que indicaria que a lei 14.454 não levou ao crescimento da judicialização. Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que “por conta do curto período de tempo transcorrido entre a promulgação da lei e a finalização da pesquisa”, os dados e conclusões “devem ser considerados com cautela, colocando-se a necessidade de realização de análises futuras”.

Número de ações contra planos de saúde cresceu quase 33% em 2023 Foto: Manuel Milan/Adobe Stock

Os especialistas que atuam na defesa do consumidor dizem que a alta judicialização é um sintoma da prestação de serviço inadequada pelas operadoras e que os consumidores não devem ser criticados por buscarem seus direitos judicialmente.

“Ele vai procurar a Justiça quando está em uma situação de saúde já dramática e tem insegurança em relação aos resultados da ação. Então, ele não tem nada a ganhar. Se ele precisou chegar à Justiça, ele já saiu perdendo. A gente não considera a judicialização excessiva. Excessivas são as práticas das empresas”, diz Andrietta.

Uma análise do Estadão com base nos dados de 51,8 mil ações movidas no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) contra seis grandes operadoras de planos de saúde entre os anos de 2022 e 2023 mostram que a demanda judicial mais frequente é por tratamentos médico-hospitalares. Em seguida, aparecem como assuntos mais frequentes as categorias práticas abusivas, reajuste contratual e fornecimento de medicamentos. Juntos, esses quatro temas somam 53% de todos os processos movidos nesses dois anos.

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Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), a falta de regras adequadas para os planos de saúde coletivos – que reúnem mais de 80% dos brasileiros com planos de saúde – também acaba obrigando mais consumidores a procurarem a Justiça.

“A falta de regulamentação da ANS leva ao aumento da judicialização. As pessoas não conseguem mais comprar planos individuais, e fazem MEIs ou entram nos planos coletivos de adesão que os próprios corretores indicam, e, com isso, ficam vulneráveis”, diz Scheffer. Nos contratos coletivos, ao contrário dos individuais/familiares, não há teto de reajuste definido pela ANS e o cancelamento unilateral do contrato é permitido.

Aprovação de lei de 2022 levou a aumento de demandas judiciais, dizem planos de saúde

Os planos de saúde justificam que o crescimento da judicialização da saúde suplementar tem como uma das principais causas a aprovação da já citada lei 14.454, em setembro de 2022. A norma determinou que o rol de procedimentos da ANS deve servir apenas como uma referência com exemplos de tratamentos cobertos, mas que a cobertura dos planos não se restringe a ela. Com isso, o rol passou a ser considerado exemplificativo e as operadoras passaram a ser obrigadas a cobrir tratamentos indicados por especialistas mesmo que eles não estejam listados.

A aprovação da lei foi uma reação à comoção popular causada por uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de três meses antes que determinava que o rol da ANS deveria ser considerado taxativo, ou seja, apenas os procedimentos listados na relação deveriam ser custeados pelos convênios.

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“Essa discussão do rol taxativo versus exemplificativo trouxe muitos problemas. Não existe lista aberta infinita em nenhum setor porque os recursos são limitados. (A lei) criou uma expectativa na sociedade e uma abertura que o sistema não comporta”, diz Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde.

Ela afirma que muitas das demandas judiciais são por tratamentos que não estão no rol da ANS ou para indicações que não seguem os protocolos clínicos. “O Zolgensma (remédio para Atrofia Muscular Espinhal que custa mais de R$ 5 milhões) tem uma diretriz para ser indicado para crianças de até seis meses, mas já vimos pedidos do medicamento para pacientes de 19 anos”, exemplifica.

Para Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge, o cenário criado pela lei do rol exemplificativo cria insegurança jurídica e ameaça a sustentabilidade do setor. Ele lembra que três grandes empresas internacionais do mercado de seguros – United Health Group (UHG), Allianz e Sompo – deixaram de operar no setor saúde no Brasil.

“A lei que mexeu no rol impulsionou a judicialização. A partir do momento que você flexibiliza na lei conceitos, abre um campo muito fértil para qualquer tipo de demanda. [...] A Allianz é a maior seguradora da Alemanha. A Sompo, uma das maiores da Ásia. A única coisa que explica a saída dessas gigantes do Brasil é a insegurança jurídica, porque elas não enfrentam situação semelhante em lugar nenhum do mundo”, afirma.

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Os representantes do setor alegam ainda que existe uma “advocacia predatória” que lucra com o excesso de demandas judiciais. “Há vídeos no TikTok de advogados falando que a pessoa pode contratar um plano de saúde e que, em 24 horas, ele consegue uma liminar autorizando qualquer tipo de cirurgia”, diz Ribeiro.

Eles cobram ainda que sejam criados protocolos terapêuticos específicos para cada tipo de doença ou transtorno e defendem que, diante dos altos preços de medicamentos inovadores, a indústria farmacêutica compartilhe o risco por uma eventual ineficácia da terapia ofertada.

ANS afirma que realiza fiscalização rigorosa no setor

Questionada sobre a crítica quanto à falta de regulamentação e a alta judicialização no setor, a ANS afirmou que “reconhece e respeita o direito constitucional dos cidadãos de acionar a Justiça” e ressaltou que realiza “fiscalização rigorosa no setor de saúde suplementar”, implementando melhorias normativas para garantir que as operadoras entreguem os produtos contratados e prestem serviços de qualidade.

Entre as principais medidas citadas pela agência estão a definição de prazos máximos para atendimentos e a portabilidade de carências para facilitar a troca de planos. A ANS diz ainda que adota medidas focadas na resolução de problemas e na redução da judicialização, como a Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), que resolve cerca de 90% das reclamações dos consumidores rapidamente, de acordo com a ANS.

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A agência disse ainda que realiza acordos de cooperação técnica com entidades de defesa do consumidor e órgãos do Poder Judiciário para promover a troca de informações e padronizar o atendimento aos consumidores. Atualmente, diz o órgão, existem 46 parcerias vigentes com diversas instituições, incluindo Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e Procons em todo o País. A agência afirmou ainda que estuda criar incentivos às operadoras “visando melhorar o relacionamento com os consumidores e evitar judicializações”.

Em resposta às críticas de que falhas na regulação dos planos coletivos são responsáveis pelo aumento das demandas judiciais, a ANS disse que “tem atuado em diversas frentes para aprimorar seus normativos e a regulação”, mas que “é preciso considerar que estamos tratando de um setor complexo, de grandes dimensões, que envolve milhões de consumidores, milhares de prestadores de serviços de saúde e centenas de operadoras de planos de saúde”, com “realidades distintas nas diferentes regiões do País, no qual seus integrantes têm interesses antagônicos e que trata do nosso bem mais valioso, que é a saúde”.

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