Planos de saúde: quais são os principais motivos de processos de usuários contra operadoras

Número de ações na Justiça disparou; segundo especialistas e representantes do setor, um dos motivos é a aprovação da lei que ampliou o rol de cobertura de tratamentos

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Foto do author Paula Ferreira

Após uma baixa recorde no número de novos processos contra planos de saúde durante a pandemia, o judiciário tem visto a quantidade de ações contra as operadoras crescer novamente. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obtidos pelo Estadão mostram que somente nos três primeiros meses deste ano, 25 700 novas ações foram abertas contra planos de saúde. Especialistas no tema e representantes de planos de saúde convergem em um ponto: o aumento do fluxo é puxado em grande medida por queixas relacionadas a negativas de cobertura, alavancadas pela lei que flexibilizou o rol de tratamentos previstos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

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Na última década, 2020 e 2021 foram os anos com menor demanda judicial contra planos de saúde, com 75 510 e 76 530 novos processos, respectivamente. A partir de 2022, os índices voltaram a subir: foram 88 110 ações judiciais movidas contra os planos.

De acordo com Richard Pae Kim, que coordena o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde do CNJ (Fonajus), o fim da emergência em saúde pública pela Covid-19 também estimulou as pessoas a voltarem aos serviços de saúde; além disso, o desabastecimento de determinados grupos de medicamentos e a falta de especialistas em determinadas áreas da medicina, em vários municípios do país, e de alguns serviços de alta complexidade, impulsionam o cenário de ações pós-pandemia.

Para especialistas e fontes do setor de saúde suplementar, a lei aprovada no Congresso que flexibilizou o chamado “rol taxativo” da ANS é um dos pontos principais nessa equação. A medida fixou critérios para que as operadoras tenham de pagar por procedimentos que não estejam previstos pela agência. De olho nisso, a expectativa das operadoras de planos de saúde é que as demandas judiciais sigam em alta.

Com a decisão, os planos deverão custear tratamentos que tenham eficácia científica comprovada, que sejam recomendados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou por órgão de avaliação de tecnologia em saúde de renome internacional.

“Nesse primeiro semestre, houve um aumento acentuado na procura pelo nosso escritório, com muitos casos relacionados a negativas de cobertura, que é o principal motivo, mesmo depois da lei que obriga planos a cobrirem tratamentos fora do rol. As operadoras continuam se baseando unicamente no rol da ANS, e ela não tem tomado medidas contra isso. Não vemos nenhum tipo de fiscalização e punição nesses casos”, critica Rafael Robba, advogado especialista em direito à saúde do Vilhena Silva Advogados, em São Paulo.

Em entrevista recente ao Estadão, o presidente da ANS, Paulo Rebello, afirmou que a agência está evoluindo “para tentar encontrar soluções que antecedem o processo judicial”. Segundo ele, há fiscalização proativa por parte da ANS, que inspeciona as operadoras e responde a denúncias feitas pelos clientes.

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Marcos Novais, superintendente executivo da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), enumera os fatores identificados pelo setor: “Havia 46,9 milhões de pessoas cobertas em 2019 e agora temos cerca de 50,6 milhões, é natural que o volume de demandas seja um pouco mais elevado”, observa.

“Fora isso, temos um panorama de fraudes muito maior e os fraudadores utilizam tanto da reclamação à ANS, para poder agilizar o pagamento, quanto de demandas judiciais. Tendo um volume maior de fraudes, por conta disso, as operadoras implementam mais instrumentos de controle, e até para quem está fazendo a utilização correta do plano de saúde acaba gerando algum tipo de desconforto, que pode gerar uma reclamação”, diz. “Outro ponto é a questão do rol de cobertura, que criou uma incerteza gigante sobre o que é coberto e o que não é”, acrescenta.

Em um comunicado publicado no início de junho, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) usou a judicialização como um dos argumentos para justificar reajuste de 9,63% nos planos individuais.

“A saúde suplementar vem sofrendo efeitos diretos do aumento da inflação na saúde e dos custos de tratamentos, medicamentos, procedimentos hospitalares e terapias. Já no âmbito regulatório, os últimos anos foram marcados por mudanças legislativas e regulatórias que impactaram diretamente na sustentabilidade do setor, como exemplo da Lei 14.454/2022, que modificou o caráter taxativo do rol, criando condicionantes frágeis e muito subjetivas para obrigar planos a cobrir itens fora da lista. Isso também está relacionado com outro fator bastante conhecido, a judicialização, que é prejudicial a todo o sistema de saúde”, disse a FenaSaúde.

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Em nota enviada à reportagem, a FenaSaúde afirmou que “o aumento da judicialização causa inequidade de acesso, compromete a previsibilidade das despesas assistenciais e exige uma maior alocação de recursos em provisões de longo prazo, incluindo custos com honorários advocatícios, perícias médicas e possíveis indenizações.”

Judicialização da saúde é um dos principais gargalos do setor

O passivo de ações que acumulam na Justiça faz com que nem mesmo as baixas recordes de novos processos ao longo da pandemia tenham conseguido reduzir o fluxo. Segundo os dados do CNJ, pelo menos desde 2020, quando o número total de processos em tramitação começou a ser contabilizado pelo conselho, a quantidade de ações aguardando resolução judicial aumentou quase 16%, passando de 106 510 ações naquele ano para 123 190 em 2023.

A psicóloga Priscila Antunes já entrou na justiça contra o plano de saúde pelo menos três vezes para garantir direitos aos pais idosos. Na ação mais recente, ela cobrou cobertura para fornecer tratamento para o pai em casa. Elzimar Antunes, de 77 anos, tem demência em nível avançado: não anda, quase não fala e se alimenta por sonda. O médico do idoso recomendou que ele recebesse assistência completa em domicílio, o que foi negado pelo plano de saúde.

Na última ação movida contra o plano de saúde, a psicóloga Priscila Antunes conseguiu garantir que o pai, que sofre com demência, receba tratamento em casa. Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

“Conseguimos, via judicial, tudo aquilo que o médico dele achou pertinente”, relata Priscila, acrescentando que o pai paga o plano coletivo há quase 30 anos. “É um sentimento de impotência, de decepção por sermos tão antigos no plano, que é top internacional, e que pagamos com sacrifícios. Pagamos o plano para ter paz e acabamos tendo que nos desgastar para, no final, eles precisarem oferecer via justiça o que poderiam ter oferecido sem chegarmos a esse ponto.”

Após liminar obtida na justiça, o plano passou a providenciar home care com fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, medicamentos, técnico de enfermagem 24 horas, visita mensal de médico, suporte de oxigênio, entre outros serviços. Antes disso, Priscila também já havia entrado na justiça para reverter reajustes abusivos do plano coletivo e reaver cobrança indevida, e foi vitoriosa em todas as situações.

Reajustes abusivos e rescisões de contrato

Os beneficiários também têm buscado a justiça para acionar as operadoras por reajustes abusivos e rescisões de contrato em planos coletivos.

“Essa prática acaba sendo muito mais comum em empresas de poucas vidas. Como é muito difícil contratar um plano individual e familiar às vezes a única opção que as famílias têm é contratar o plano por CNPJ. Apesar de serem planos empresariais, são aqueles que abarcam só três ou quatro vidas da mesma família. E é muito comum que a operadora acabe cancelando o plano daquela empresa. Esses casos acabam indo para justiça e, neste ano, tivemos aumento significativo de procura de clientes com esse tipo de demanda”, descreve Robba.

Com o acúmulo de processos, o judiciário tem buscado alternativas para facilitar a análise das ações pelos magistrados e agilizar decisões para que os pacientes não esperem por muito tempo. No fim do ano passado, o plenário do CNJ aprovou a regulamentação do Sistema Nacional de Pareceres e Notas Técnicas (e-Natjus), criado para qualificar as decisões judiciais no âmbito da saúde. O e-Natjus é uma plataforma que reúne pareceres da área baseados em evidências científicas. De acordo com Kim, conselheiro do CNJ, o Fonajus está focado em desenvolver uma política para que o judiciário atenda adequadamente demandas relacionadas à área.

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“Com a plataforma digital, essas decisões poderão ser tomadas com base em informação técnica, ou seja, levando em conta as evidências científicas. De quebra, esse auxílio técnico permite conferir mais rapidez ao processo, que poderia, por exemplo, ficar parado por meses aguardando uma perícia”, explica Kim.

A FenaSaúde defende que é necessário adotar estratégias de mediação e canais de ouvidoria para “manutenção da sustentabilidade do sistema”, e elogiou iniciativas como o NAT-Jus.

Para Novais, representante da Abramge, um elemento que poderia contribuir para evitar que tantas demandas cheguem à justiça é a adoção de protocolos e diretrizes clínicas para nortear as indicações dos médicos. Segundo ele, muitas vezes os profissionais recomendam tratamentos e medicamentos específicos e mais custosos enquanto poderiam recomendar outros com a mesma eficácia.

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