A última vez que o Brasil registrou um caso de poliomielite foi em 1989. A ausência de diagnósticos nos cinco anos seguintes levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecer, em 1994, que o País eliminara o vírus da paralisia infantil (como a pólio também é chamada) em todo território nacional. Mesmo assim, especialistas ouvidos pelo Estadão fazem um apelo para que as crianças sejam vacinadas contra a doença, mesmo que o vírus não tenha sido detectado há mais de 30 anos em terras brasileiras.
O temor se justifica por uma somatória de motivos: circulação do vírus pelo mundo, notificação de casos em outros países, índices de vacinação abaixo da meta de 95%, e a constatação da Organização Panamericana de Saúde (Opas) de que o Brasil corre um risco real de voltar a registrar casos da doença.
O primeiro motivo levantado é o fato do poliovírus, causador da poliomielite, não ter sido completamente erradicado no mundo. Embora os casos de infectados tenham sofrido uma queda de 99% nas últimas décadas (caiu de 350 mil casos estimados, em 1988, para 29 contaminações notificadas em 2018), a Opas, braço da OMS, alerta que se a doença não for completamente eliminada no planeta, 200 mil novas infecções podem acontecer a cada ano dentro de uma década.
A médica Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm) concorda. “Enquanto houver circulação do vírus no mundo, sempre há risco de retorno da doença”, afirma. “Se há uma pessoa contaminada, em meio a uma população que não está vacinada, o poliovírus pode se espalhar rapidamente”, explica a especialista à reportagem.
Em julho deste ano, os Estados Unidos detectaram uma contaminação por poliomielite depois de 29 anos. O caso foi identificado no Condado de Rockland, em Nova York, e de acordo com o Departamento de Saúde do estado, a infecção pode ter acontecido fora do país. Também em 2022, Moçambique (em maio) e Malauí (em fevereiro) também registraram pacientes diagnosticados com pólio.
Campanha de vacinação contra poliomielite segue até o dia 9 de setembro
A boa notícia é que o Brasil está em campanha nacional de vacinação contra a poliomielite até o dia 9 de setembro. O objetivo da mobilização é alcançar uma cobertura vacinal igual ou maior que 95% em crianças de 1 a 5 anos de idade, e proteger o público de até 15 anos com imunizantes do Calendário Nacional de Vacinação (veja a lista das vacinas distribuídas).
A poliomielite é uma doença altamente contagiosa, que atinge principalmente crianças com menos de cinco anos e que vivem em alta vulnerabilidade social, em locais onde não há tratamento de água e esgoto adequado. O poliovírus é transmitido de pessoa para pessoa por via fecal-oral ou por água ou alimentos contaminados, e também de forma oral-oral, por meio de gotículas expelidas ao falar, tossir ou espirrar.
O vírus ataca o intestino, mas pode chegar ao sistema nervoso e provocar paralisia irreversível — daí o nome paralisia infantil —em membros como as pernas, e também dos músculos respiratórios, levando o paciente à morte. A poliomielite não tem cura, apenas prevenção que é feita com a vacina.
Quedas na cobertura vacinal
A preocupação da especialista não é à toa. O Brasil registra quedas na cobertura vacinal contra a pólio desde 2016. Segundo o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), as doses previstas para a vacina inativada contra a pólio — as que são administradas em bebês com menos de 1 ano completo — atingiram a meta pela última vez em 2015, quando a cobertura foi de 98,29%.
Depois de 2015, a adesão despencou. Desde 2016, o país não ultrapassa a linha de 90% de crianças vacinadas. Em 2019, caiu para 84,19%; em 2020, muito em razão da pandemia de covid-19, o índice chegou a 76,15% dos bebês imunizados. Em 2021, o porcentual ficou abaixo de 70% pela primeira vez, com 69,9%. Ou seja, a cada 10 crianças, três não estão plenamente protegidas contra o poliovírus.
A causapara essa queda é multifatorial e não deve ser atribuída somente à pandemia, segundo os especialistas — os índices, afinal, vêm caindo antes do surto de covid-19. Entre as razões apontadas estão a falta de percepção do risco da doença pela população; aumento da preocupação com os possíveis efeitos colaterais do imunizante; aumento da quantidade e amplitude da disseminação de informações falsas (fake news) sobre vacinação; desabastecimento temporário de vacinas no setor público e privado, e indisponibilidade dos pais de levarem às crianças para receber a dose nos postos de saúde.
Independente do motivo, os baixos índices levaram a Opas a agir. Em maio, a organização enquadrou o Brasil em um seleto grupo de países da América Latina que correm o risco de voltar a apresentar casos da doença se a vacinação não começar a subir novamente. “A cobertura da pólio está baixa e muito abaixo do necessário para conseguir manter o País seguro e impedir a reintrodução do vírus que a gente não vê há décadas”, diz Mônica Levi.
A especialista frisa que a vacina disponível pelo SUS, gratuita e acessível, é altamente eficaz e o efeito de imunização não atinge somente um único indivíduo, mas é importante para a proteção coletiva também. “O benefício da vacina vai além da proteção só da criança. Impede-se a transmissão de outras pessoas e, nesse sentido, (a vacinação) é importante para a imunidade de rebanho e para que o vírus não circule em comunidade.”
Riscos
Raquel Stucchi, infectologista da Universidade de Campinas (Unicamp) e Consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, lembra que, além da baixa adesão às vacinas nos últimos anos, o aumento de pessoas em vulnerabilidade social também torna o Brasil mais propenso a registrar um caso de poliomielite depois de 33 anos.
“Há chances, sim, de o Brasil voltar a apresentar casos de pólio e isso se deve, principalmente, à baixa cobertura vacinal. Mas há também o aumento da pobreza e o crescimento da quantidade de população vulnerável que vive onde não há saneamento básico e tratamento de água e esgoto. Isso, somado à baixa cobertura vacinal, aumenta o risco da paralisia infantil”, diz Raquel.
O epidemiologista Jesem Orellana, pesquisador da Fiocruz Amazonas, segue na mesma linha das colegas. Para ele, o Brasil possui chances de voltar a registrar casos de poliomielite em razão das baixas coberturas vacinais, e lamenta que o País já foi exemplo para o mundo no assunto de vacinação. “Há chances e elas só aumentam na medida em que as quedas na vacinação contra a doença se consolidam, pois temos centenas de milhares de crianças suscetíveis no Brasil e ainda há cadeias de transmissão ativas do vírus no planeta”, afirma o especialista.
“Aliás, é precisamente por este motivo que a Opas colocou o Brasil de volta nesta decepcionante lista, mesmo anos depois de o País ter sido um exemplo positivo, com repercussão mundial, no que tange às altas coberturas vacinais contra a pólio”, completou Orellana.
Como funciona a vacinação contra a poliomielite?
O esquema vacinal contra a poliomielite consiste na administração de três doses iniciais, que são distribuídas para os bebês aos 2, 4 e 6 meses de vida com a vacina injetável (VIP) e de vírus inativado. Depois, como reforço, são administradas duas doses adicionais de vacina oral (VOP): uma quando a crianças está com 15 meses e outra entre 4 e 5 anos. Há também vacina injetável contra a poliomielite indicada para pessoas de até 19 anos ou para situações especiais, como indivíduos imunocomprometidos.
Assim como Mônica Levi, Raquel Stucchi também enfatiza que a vacina contra a poliomielite tem alta capacidade de proteção: “Entre 95% a 97% de proteção”. E ela lembra que, quem não conseguiu completar o esquema vacinal, pode se imunizar depois. “Quem não completou a vacinação pode, a qualquer momento, atualizar o esquema vacinal. Não perde o que já foi administrado. Só se completa com as doses que estão faltando."
Os especialistas explicam que os que estão imunizados com todas as doses devem voltar a se imunizar quando precisarem sair do País rumo a uma região de circulação do poliovírus.
“Devido ao risco de importação da pólio em regiões com histórico de registro da doença, há um protocolo da Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunização do Brasil (acessar o protocolo), tanto para quem não foi vacinado, como para quem cumpriu parcialmente ou totalmente o esquema de vacinação contra a poliomielite, o qual deve ser rigorosamente seguido”, orientou Jesem Orellana.
Volta do sarampo como exemplo
O passado recente do Brasil, lembra Mônica Levi, da Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm), mostra que o receio do retorno da pólio no País “não é um risco hipotético”. Para a especialista, as baixas adesões para alguns dos imunizantes que compõem o calendário infantil estão colocando o Brasil sob risco de reintrodução de doenças que já foram controladas e eliminadas. Um exemplo é o sarampo.
“Em 2016 nós recebemos o certificado de eliminação da circulação do vírus (de sarampo) no País. Mas dois anos depois, por conta das baixas coberturas vacinais, tivemos um surto da doença na Região Norte, que se espalhou rapidamente para demais estados do Brasil e não conseguimos controlar totalmente até o momento”, diz.
Em 2019, no ano seguinte ao surto e três anos depois de ter adquirido o selo que reconhecia a eliminação da doença no País, o Brasil perdeu a certificação de país livre do sarampo.
“Então, a paralisia infantil também é uma doença muito grave, com sequelas permanentes, que está nos ameaçando de retorno”, alerta Mônica Levi. “É fácil manter o controle, desde que as pessoas sejam conscientizadas e vacinem as crianças novamente. Queremos voltar a ser o exemplo que éramos antes, retomando as altas coberturas vacinais. Esse é o atual objetivo do PNI (Plano Nacional de Imunização)”, concluiu.
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