Por que cursos de Medicina são ‘galinha dos ovos de ouro’ das faculdades e causam guerra na Justiça?

Mensalidades altas e baixa evasão atraem grupos educacionais. Entidades de ensino superior se dividem sobre critérios para abrir vagas; ministério discute novas regras

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Atualização:

Com a expansão de vagas de Medicina nos últimos anos, graduações para formar novos médicos viraram a “galinha dos ovos de ouro” das faculdades e causam racha no setor. Diante de centenas de pedidos de abertura de cursos por liminar, associações do ensino superior privado protagonizam briga no Judiciário por defenderem critérios distintos para liberar mais escolas médicas.

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Paralelamente, grandes e pequenos grupos empresariais investem cada vez mais na educação médica de olho no mercado bilionário e que se destaca pelo elevado retorno e baixa evasão. Já especialistas e entidades médicas veem risco de a rapidez na criação de novos cursos resultar na formação precária, com oferta de vagas em locais sem estrutura mínima ou avaliação correta das condições de ensino.

O estudo Demografia Médica, conduzido pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e Associação Médica Brasileira (AMB), estima que uma única vaga em Medicina represente ativo de R$ 2 milhões para a instituição.

E a receita potencial das graduações privadas no País é de R$ 20,9 bilhões em 2022, considerando a ocupação de todas as vagas ao longo dos seis anos do curso. Isso representa incremento de quatro vezes na cifra de 20 anos atrás (R$ 5 bilhões), em valores atualizados.

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As vagas dobraram em dez anos: de 20.570 em 2013 para 41.805 no ano passado, segundo o estudo da USP feito com base em dados do Ministério da Educação (MEC). Aproximadamente 90% das vagas da última década foram abertas no setor privado, com incentivo primeiro da Lei do Mais Médicos, de 2013, e depois por uma chuva de liminares, que permitiu abrir escolas mesmo durante a moratória do governo federal que proibiu novos cursos por cinco anos - e que terminou em 5 de abril.

As instituições autoras dos pedidos judiciais alegam que tanto a lei do Mais Médicos, ao condicionar a abertura de cursos a critérios e localidades definidos pelo MEC, quanto a moratória ferem o princípio da liberdade econômica.

Graças às ações judiciais, 6 mil vagas foram abertas nos cinco anos de veto e, segundo o MEC, há pelo menos 225 pedidos tramitando na Justiça para abrir cursos, o que representaria mais 20 mil vagas.

Nesta segunda-feira, 7 de agosto, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes determinou que a abertura de novos cursos de Medicina no País deverão seguir as regras dos editais do programa Mais Médicos, conforme estabelecido na lei federal de 2013.

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“O fato de Medicina ter a mensalidade mais cara entre as graduações e de ser um dos cursos com menor evasão a transformou na galinha dos ovos de ouro das instituições de ensino. Há intenso movimento de aquisições de faculdades pequenas por grandes grupos educacionais”, diz Mario Scheffer, professor da USP e coordenador do estudo Demografia Médica.

O valor médio da mensalidade em Medicina é de R$ 9 mil, segundo levantamento feito pelos pesquisadores. Já a evasão é menor que 7%, enquanto chega a 30% nas demais graduações, segundo dados do Semesp, entidade que representa instituições particulares.

Grupos apostam em aquisições e criam unidades de negócio exclusivas

Líder em número de cursos de Medicina no Brasil, a Afya administra 3.163 vagas, em 30 escolas, distribuídas em 14 Estados. Fundada no Tocantins no fim da década de 1990, com o nome NRE, a empresa cresceu principalmente por meio de aquisições de faculdades menores, sobretudo no interior.

Em 2019, abriu capital na bolsa de valores Nasdaq (EUA), e, nos três últimos anos, investiu mais de R$ 3 bilhões na compra de dez faculdades de Medicina - e tem meta de abrir 200 novas vagas por ano até 2028.

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Afya tem 30 cursos de Medicina no País, distribuídos em 14 Estados Foto: Divulgação/Afya

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“A expansão foi feita via aquisição, mas uma aquisição de centros universitários que tinham histórico de qualidade. Hoje, estrutura física, metodologia e matriz curricular seguem o mesmo padrão em todos os nossos cursos, independentemente se está no interior do Amazonas ou no Rio”, diz Flávio Carvalho, vice-presidente de operações da Afya, ao ser questionado se a rápida expansão poderia prejudicar a qualidade. No ano passado, a companhia registrou R$ 535 milhões de lucro líquido, alta de 21% ante 2021. A receita dos cursos de Medicina representa 70% do faturamento do grupo.

O grupo Yduqs, dono de redes como Estácio e Ibmec, quadruplicou o número de cursos de Medicina sob sua gestão nos últimos dez anos, apostando em aquisições, como a dos grupos Adtalem e Athenas, e na abertura de vagas por meio dos chamamentos públicos do Mais Médicos, pelos quais o MEC define os municípios que podem ter novos cursos.

Desde 2014, a Yduqs passou de 4 para 17 cursos, totalizando hoje 1.586 vagas e pouco mais de 8 mil alunos na área. Embora esses sejam só 1% do total de estudantes de graduação do grupo, a receita com cursos médicos já é 20% do faturamento, segundo dados de 2022.

O grupo criou, em 2021, o Idomed, vertical focada em educação médica. “Nossa primeira escola de Medicina foi aberta há 26 anos, mas esse campo cresce em relevância ano a ano no grupo, com a criação de um ecossistema de educação médica, não só com graduação, mas com pós, residência, educação continuada”, diz Silvio Pessanha Neto, vice-presidente da Yduqs e CEO do Idomed. A receita líquida da vertical de ensino médico cresceu 34% entre 2021 e o ano passado, ante 4% de alta na receita total do grupo.

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Alunos usam realidade virtual em curso de Medicina da Estácio Idomed, do grupo Yduqs, no Rio Foto: Pedro Kirilos/Estadão

A Ânima Educação é outra gigante educacional que criou uma unidade de negócio para focar em educação médica. Em 2021, levantou R$ 1 bilhão com o fundo DNA Capital (ligado à família Bueno, da Dasa) e, em março de 2022, efetivou a criação da Inspirali, reunindo as vagas de Medicina sob sua gestão. O último relatório de resultados informa 10 mil alunos nos seis anos de graduação dos cursos.

No processo de expansão, a Ânima comprou os ativos de duas instituições com cursos na área: o grupo Laureate, em 2021, e o Centro Universitário Ages (UniAges), em 2019. A receita líquida da Inspirali aumentou 56% no ano passado em comparação com 2021. Nas demais graduações oferecidas pelo grupo, a alta foi de 22%.

O grupo Cogna também estabeleceu em 2021 sua vertical para cursos de Medicina, a KrotonMed, que tem sete escolas médicas com 580 vagas. O grupo Ser Educacional é outro que apostou em aquisições, especialmente no Norte e Nordeste, para ampliar vagas, chegando a 653.

Divergência sobre critérios para abrir cursos opõem entidades nos tribunais

O setor vive um racha, com disputa que foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). A lei dos Mais Médicos impõe restrições à abertura de vagas, mas tem apoio da Associação Nacional de Universidades Particulares (Anup), que em junho moveu Ação Direta de Constitucionalidade no Supremo defendendo que a criação de cursos esteja, sim, condicionada aos chamamentos públicos do MEC. As instituições que questionam a regra estão obtendo decisões favoráveis na primeira instância, com juízes liberando a abertura de cursos sem os mesmos critérios dos editais do Mais Médicos.

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A ação judicial é necessária para pôr fim ao “mercado de liminares”, diz a presidente da entidade, Elizabeth Guedes. “O curso de Medicina, por usar a estrutura do SUS para formação, deve obedecer a uma política pública de distribuição de vagas que beneficie a população desassistida, por isso veio a lei do Mais Médicos. Com as liminares, são abertos cursos em qualquer localidade, mesmo sem necessidade de mais vagas ou estrutura adequada.”

Para ela, a autorização pela via judicial tira o poder de regulação do MEC e cria distorção. “São dois regimes de concessão de cursos. Um que tem uma política que atrela a abertura de cursos à expansão do SUS, e outro que é só uma atividade econômica”, diz.

Embora apoiada no pleito por grandes grupos educacionais associados, como Afya e Yduqs, a Anup sofre oposição de entidades do mesmo setor, como a Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades (Abrafi), a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) e o Conselho de das Universidades Brasileiras (Crub), que ingressou no Supremo com ação pedindo justamente o contrário. Ou seja, querem que seja declarado inválido o artigo da lei do Mais Médicos que condiciona as novas vagas aos chamamentos do MEC.

Em nota, o Crub diz que o dispositivo da lei “favorece grandes grupos econômicos educacionais em prejuízo de associações, fundações e empresas educacionais de médio e pequeno porte”. Para a entidade, esses grupos apoiam a lei para “evitar que outras entidades possam disputar mercado”.

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Para Celso Niskier, diretor-presidente da Abmes, as duas modalidades devem existir, tanto as vagas no interior fomentadas pelo Mais Médicos quanto “os projetos de excelência” nos grandes centros. “Consideramos que a fixação dos profissionais em locais com escassez de médicos não se dá apenas com a criação de escolas de Medicina, mas também pela oferta de condições de trabalho e de estímulos para manutenção deles nessas localidades. Independente do meio de autorização usado pelo MEC, os critérios de avaliação devem ser os mesmos para preservar a qualidade de ensino.”

Presidente da Ser Educacional, grupo que apoia a posição do Crub, Abmes e Abrafi, Jânyo Diniz também defende a coexistência dos dois modelos.

Os que defendem a abertura só por meio do Mais Médicos afirmam que as regras previstas nos chamamentos são importantes, pois exigem que a instituição de ensino garanta estrutura adequada para a formação de qualidade.

“Nessas liminares, as instituições pedem que a abertura de cursos seja analisada pela portaria 20 do MEC, que regula todos os cursos de graduação, que não têm a mesma necessidade de campo de prática que a Medicina. Isso não faz sentido”, diz Pessanha Neto, da Yduqs. Ele afirma que há casos de liminares em que o juiz autorizou curso de Medicina sem realização de vistoria prévia do MEC no local.

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Segundo Elizabeth, da Anup, a chuva de liminares criou um mercado paralelo, em que consultores ou pequenas instituições ingressam na Justiça para obter autorização e, antes mesmo de abrir o vestibular, vendem essa autorização para grupos educacionais. “São especuladores, atravessadores. Isso desorganiza a oferta e desequilibra o mercado”, diz. As ações da Anup e do Crub estão sob apreciação do ministro Gilmar Mendes, mas ainda não há data prevista para julgamento.

Questionado pelo Estadão sobre os pedidos de liminares, o Ministério da Educação afirmou que os processos judiciais “continuam tramitando no MEC segundo as exigências do padrão regulatório e em observância à lei do Mais Médicos”.

Portaria do MEC do início de abril indica que será mantida a regra de abertura de cursos por chamamentos públicos conforme a lei do Mais Médicos, privilegiando municípios com escassez de profissionais e que tenham estrutura adequada para receber a graduação. Os critérios para os chamamentos, diz o MEC, estão sendo discutidos por comissão interministerial e devem ser divulgados até agosto.

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