Vermelhidão, inchaço, calor e dor. Desde os primeiros tombos, aprendemos a reconhecer os sinais clássicos de inflamação e a associá-los a experiências negativas. Quem nunca os sentiu na pele depois de um joelho ralado, um corte no dedo ou uma sessão de tatuagem que acabou mal?
Esse conhecimento adquirido pela experiência diária continua válido, mas novas evidências científicas destacam um papel pouco conhecido e fundamental da inflamação: a manutenção do equilíbrio fisiológico do organismo (a chamada homeostase). A inflamação está presente em todos os processos metabólicos ruins – das doenças cardiovasculares e do envelhecimento celular ao câncer; da artrite ao Alzheimer. E nos bons também, desde que não seja exagerada.
Uma visão expandida sobre a inflamação é proposta pelo imunologista Ruslan Medzhitov, professor da Universidade Yale (EUA), no principal artigo de uma edição especial sobre o tema, publicada recentemente pela revista Science. Segundo ele, o conhecimento ampliado sobre a natureza da inflamação poderá levar a novas formas de prevenir, tratar ou amenizar o sofrimento.
Ao mesmo tempo, novas evidências indicam que os mediadores da inflamação (proteínas como as citocinas, por exemplo) estão envolvidos numa ampla gama de funções essenciais ao bom funcionamento do corpo, como remodelação de tecidos, metabolismo, geração de calor, comunicação entre órgãos e funcionamento do cérebro (incluindo o comportamento).
“Como a inflamação está associada a quase todas as doenças (veja infográfico ao lado), é importante descobrir a causa dela em diferentes situações”, disse Medzhitov ao Estadão. “Isso permitirá desenvolver terapias que previnem a inflamação indesejada, que perpetua e amplifica processos patológicos.”
Diante da diversidade de processos biológicos envolvendo sinais inflamatórios e células, Medzhitov acredita que a visão tradicional da inflamação como uma resposta à infecção ou lesão tecidual é estreita e incompleta. “A inflamação pode estar claramente presente na ausência desses processos”, diz ele. “É o caso da inflamação associada à obesidade, ao envelhecimento, ao câncer e até à privação do sono”, afirma.
SEGUNDO CÉREBRO
Assim como o cérebro, o intestino é um órgão sensorial responsável por detectar, retransmitir e responder aos sinais do ambiente interno e externo. O intestino tem a capacidade de agir por conta própria, sem precisar de comandos emitidos pelo sistema nervoso central. Governado pelo sistema nervoso entérico, o intestino é conhecido como o “segundo cérebro”.
Muito mais que um tubo processador de comida, o intestino é uma máquina que avalia constantemente o que precisa ser feito no organismo. Por isso, ele tem um papel importante na fisiologia e no comportamento. Estudos indicam que processos inflamatórios no intestino podem afetar o cérebro e contribuir para o desenvolvimento de doenças como a depressão e o Alzheimer, mas falta desvendar detalhes dessa relação.
“Isso ainda não é completamente compreendido, mas tanto a depressão quanto o Alzheimer são doenças causadas ou promovidas pela inflamação”, diz Medzhitov. “A depressão é uma resposta de proteção do organismo quando ele está em risco. Provavelmente porque reduz a exploração do ambiente, mas ela se torna patológica quando é excessiva”, explica.
A conversa cruzada entre o intestino e o cérebro regula as respostas inflamatórias e a homeostase imune. Quando desregulada, a inflamação direcionada contra micróbios no intestino pode levar ao surgimento de doenças inflamatórias como, por exemplo, a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn. Essas são doenças sem cura, mas que podem ser controladas com medicamentos (corticoides e imunobiológicos) e cirurgias.
Entre as causas principais, os médicos citam a microbiota pouco variada, fatores genéticos, o cigarro, a falta de atividade física, o uso indiscriminado de antibióticos e o estresse. O paciente sofre de diarreias crônicas, dores abdominais, cólicas e distensão abdominal. Com o tratamento, cada vez mais individualizado, o corpo para de inflamar durante longos períodos. O objetivo é reduzir as crises e induzir a remissão da doença no paciente.
“O principal desafio é encontrar a medicação certa para cada um”, diz o coloproctologista Daniel Alencar, da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo. “Além dos remédios, a mudança de estilo de vida é fundamental: fazer atividade física, melhorar a alimentação com acompanhamento nutricional e controlar o estresse.”
MUDANÇA DE VIDA
Quando descobriu que tinha doença de Crohn, há mais de duas décadas, a cabeleireira Maria Lúcia Moreira de Alcântara, de 65 anos, vivia um período estressante. Com dores constantes e diarreia crônica que a impediam de trabalhar e sem conseguir diagnóstico, acabou demitida do departamento de recursos humanos de uma empresa. Foi a senha para mudar de vida.
Maria Lúcia decidiu usar o dinheiro da rescisão para investir em um curso de cabeleireira para poder trabalhar por conta própria. Dessa maneira, ela conseguiu ter maior flexibilidade de horários para se tratar ou ficar em casa quando a doença exigisse.
Após ser diagnosticada, ela foi submetida a diversos tratamentos e cirurgias ao longo dos últimos anos. Perdeu o intestino delgado e alterna períodos de crise com remissão. “Para manter a doença quietinha por mais tempo, aprendi a fazer meu autocontrole psicológico”, diz ela. “Se eu me estressar por qualquer coisa, sei que a doença vai entrar em atividade”, afirma. “Por sorte, hoje posso trabalhar fazendo o que gosto e no espaço que montei em casa”, conta a cabeleireira.
ESTRESSE CRÔNICO
No tempo das cavernas, o chamado reflexo de fuga ou luta preparava o corpo humano para caçar o almoço ou escapar de virar o almoço de um predador. “A primeira coisa que o organismo faz diante de situações como essa é desligar o sistema imune, porque ele consome uma quantidade enorme de energia”, explica o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein. “Os vasos dilatam à custa de histamina e adrenalina para que os músculos recebam mais sangue, e a pessoa possa partir para a briga ou fugir”, diz. O problema é que nosso cérebro não evoluiu para entender que o estresse crônico que vivemos hoje não deveria ser tratado como o estresse que a humanidade enfrentava há 300 mil anos.
“Naquele tempo, o estresse era autolimitado: a pessoa vencia a luta ou morria. Hoje vivemos com o sistema imune, o endócrino e o nervoso trabalhando diariamente em condições nos quais eles deveriam trabalhar apenas durante alguns minutos”, afirma Rizzo. “O resultado é o excesso de inflamação que, no caso do sistema nervoso, leva ao Alzheimer, à depressão e a outras doenças.”
INFLAMAÇÃO VITAL
A inflamação deve ser compreendida como uma espada dupla, explica a médica Ana Caetano Faria, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Ela é necessária à vida, mas quando surge um distúrbio é importante que existam mecanismos e mediadores anti-inflamatórios no organismo, capazes de controlar a magnitude da inflamação”, diz. “As pessoas adoecem quando o corpo perde essa regulação.”
A covid-19 serve de exemplo. Quando o organismo reage à infecção e cria fenômenos homeostáticos rápidos, a pessoa pode ficar assintomática. Em casos assim, a resposta é tão eficaz que ele alcança o equilíbrio, sem sofrer uma inflamação descontrolada.
Outros pacientes não têm a mesma sorte. Se houver resposta inflamatória muito exacerbada no pulmão, ela pode destruir o órgão. “Mesmo quando lidamos com um agente infeccioso que precisa ser eliminado, o organismo deve ser capaz de regular a magnitude da inflamação para não causar dano tecidual”, afirma Ana. Precisamos da inflamação para viver, mas ela precisa ocorrer no grau certo, na hora exata. Esse é o desafio cotidiano do corpo que habitamos.
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