Precisamos de uma descoberta fantástica contra o Alzheimer, reflete premiado pesquisador brasileiro

Reconhecido internacionalmente por suas contribuições na pesquisa sobre a doença, o neurologista Ricardo Nitrini defende que o grande desafio é evitar que o Alzheimer evolua para a demência; confira entrevista com o médico

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Foto do author Leon Ferrari
Foto: Taba Benedicto/ Estadão
Entrevista comRicardo Nitrinineurologista e recipiente do Prêmio Henry Wisniewski de Contribuição ao Longo da Vida, concedido pela Alzheimer’s Association

Os cientistas tinham esperança de que até o final do século XX teríamos um tratamento para desacelerar a degeneração neuronal que marca a doença de Alzheimer (DA) e leva à manifestação da demência, caracterizada por declínio cognitivo (a capacidade de processar o pensamento) e perda de autonomia. Isso não aconteceu.

O otimismo não era infundado, segundo o neurologista Ricardo Nitrini, que recebeu recentemente um reconhecimento internacional, o Prêmio Henry Wisniewski de Contribuição ao Longo da Vida, concedido pela Alzheimer’s Association, por suas pesquisas em Alzheimer e demência. Na década de 1980, ele foi um dos pioneiros nos estudos sobre essas áreas no Brasil e, após médicos apontarem que não havia diferença entre o que era chamado de demência senil e a DA, houve um boom de estudos nessa área. Foi quando alguns mecanismos por trás da patologia começaram a ficar mais claros.

Nitrini, que é professor aposentado do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), esteve por trás de um dos primeiros trabalhos epidemiológicos da demência na América Latina. Realizado em Catanduva, no interior paulista, o estudo ajudou a mostrar que a DA era a forma mais prevalente da síndrome demencial em países de baixo desenvolvimento socioeconômico.

Mais tarde, junto a outros pesquisadores latinos, o médico percebeu que, por aqui, os pacientes costumam apresentar sintomas mais cedo, entre 60 e 65 anos.

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Ao estudar casos, Nitrini também foi responsável por descrever um tipo de doença priônica, uma forma de demência muito mais rara, causada por uma mutação nova. Ao Estadão, ele faz questão de dizer que Alzheimer e demência não são sinônimos – algo que, em sua visão, é preciso ser compreendido por todos.

“Alzheimer é a forma mais comum de demência, mas existem muitas outras. Curiosamente, nos últimos tempos, tem se descoberto que, na maioria dos casos de demência, (o paciente) não tem somente doença de Alzheimer. Tem outras doenças junto: doença cerebrovascular, doença com corpos de Levy, doenças com depósito de outras proteínas, esclerose hipocampal.” É o que se chama de demência mista.

Ricardo Nitrini recebeu o Prêmio Henry Wisniewski de Contribuição ao Longo da Vida, concedido pela Alzheimer’s Association, pelas pesquisas em Alzheimer e demência Foto: Taba Benedicto/Estadão

A meta, então, é que, apesar da presença de lesões do Alzheimer, o paciente não progrida para a demência. E, se progredir, que isso demore o máximo possível.

Para esclarecer: o Alzheimer se “instala” quando o processamento de certas proteínas começa a dar errado. Segundo os especialistas, a proteína beta-amiloide parece se acumular primeiro, e na forma de lesões extracelulares, ou seja, em volta dos neurônios. Com o progredir da doença, ela desencadearia a deposição de uma proteína chamada tau, agora em lesões intracelulares, levando à morte neuronal.

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Tratamentos que atacam a beta-amiloide têm colhido resultados nos últimos anos. Mas os benefícios dessas terapias ainda não são tão expressivos, e os efeitos colaterais são importantes.

O Estadão questionou Nitrini: estamos muito longe de atingir a meta de ouro? “Talvez precisemos de uma descoberta fantástica”, respondeu. Ele está especialmente animado com uma descoberta de seu grupo no último ano, publicada em março na revista científica Scientific Reports, do Grupo Nature, envolvendo macacos-prego. Entenda na entrevista:

O senhor foi pioneiro na área das demências. Houve alguma dificuldade no início das pesquisas no tema aqui no Brasil?

Confesso que não encontrei tanta dificuldade. Eu já tinha doutorado e era uma pessoa mais ou menos reconhecida dentro da minha área. Então tive uma certa facilidade em montar aquilo que foi um dos primeiros ambulatórios (clínica que atende pacientes com determinada doença) de atendimento a pacientes com declínio cognitivo no Hospital das Clínicas. Nessa ocasião também tive uma facilidade adicional, porque havia o interesse de um laboratório internacional de fazer um estudo sobre um determinado produto que poderia ser benéfico para o tratamento de demência. Com os recursos obtidos da empresa, consegui criar um ambulatório.

(Mas) Por exemplo, eu precisava ter um banco de dados, ter um protocolo, uma maneira de examinar os pacientes, e muitos deles vieram do exterior. Eu tive que traduzi-los, daí eu me encontrei com um problema muito sério. A maioria dos pacientes que vinha ao Hospital das Clínicas não tinha nenhuma educação formal ou (apresentava) baixa educação formal. Os testes que vinham de outros países eram muito difíceis para eles. Então, tive que imaginar testes que pudessem ser realizados pelos nossos pacientes. Foi um dos primeiros trabalhos que eu fiz: criação de testes adaptados para pessoas de baixa escolaridade.

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Em 2011, em entrevista ao programa de Marília Gabriela, quando falavam de detecção precoce do Alzheimer, o senhor disse: ‘O problema maior é que, uma vez detectada, não há muito o que fazer ainda para se impedir a progressão da doença’. Isso continua atual?

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Essa é uma questão bem moderna, atual, e é uma polêmica no momento. A doença de Alzheimer sempre foi considerada uma doença que era detectada quando o paciente apresentava demência. E um paciente com o quadro clínico típico de DA era diagnosticado como ‘doença de Alzheimer provável’. O diagnóstico definitivo de Alzheimer só era possível com a confirmação neuropatológica (autópsia após o falecimento). Agora, se um paciente falecesse e fosse feito um exame neuropatológico, e ele tivesse as características de doença de Alzheimer, mas não tivesse apresentado o quadro clínico, você não podia fazer o diagnóstico de DA. Ou seja, o diagnóstico de Alzheimer exigia o quadro clínico e o exame neuropatológico.

E foi assim até junho deste ano. Houve uma nova proposta para o diagnóstico. Ele pode ser feito através de biomarcadores, que podem ser de neuroimagem, do líquor (líquido presente na medula) ou do plasma (do sangue) — o exame do plasma ainda é considerado insuficiente para que, sozinho, faça o diagnóstico. Por isso, é necessário acoplá-lo a outro.

Através desses novos critérios, o indivíduo pode ser diagnosticado com doença de Alzheimer sem que ele tenha qualquer manifestação clínica. Esse indivíduo vai desenvolver o quadro clínico? Muito provavelmente. Não se sabe perfeitamente, mas, nos estudos já bem feitos de formas de doença de Alzheimer dominante, hereditária, os indivíduos levaram em torno de 25 anos entre os primeiros biomarcadores alterados e o aparecimento da demência. No momento, é possível examinar um indivíduo de 50 anos, que não tenha nenhum sintoma, fazer os exames e dizer que ele tem Alzheimer.

Qual o valor de se fazer esse diagnóstico precoce? A vantagem principal seria termos um tratamento para impedir a evolução. Há alguns tratamentos que foram liberados recentemente, mas nenhum deles foi testado nessa fase (pré-demencial). Portanto, não há evidência científica nenhuma de que se esse paciente fosse medicado aqui, não iria desenvolver ou desenvolveria a demência mais tarde. Além de criar um estigma, que é uma desvantagem, no meu ponto de vista, não temos benefício algum. Acho que, se esse paciente fizer esses exames, a gente não deve dizer a ele que tem doença de Alzheimer. Diria que tem risco de vir a desenvolver.

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Detectar precocemente, então, não tem nenhuma vantagem?

A grande vantagem dos biomarcadores diagnosticando a fase inicial da doença é tentar interferir com algum remédio, produto, tratamento, e verificar se modifica a evolução. Mas isso é em nível experimental (de pesquisa), e não do médico atendendo um paciente. Para a pesquisa, é extremamente útil, mas, no nível clínico, foi muito precoce a liberação dessa forma de diagnóstico para o qual não se tem nenhum benefício.

Em 1994, ao ‘Estadão’, o senhor disse que pesquisadores acreditavam que até o final do século XX surgiria algum recurso para ‘deter a degeneração das células cerebrais’. Isso não aconteceu? Por quê? Temos esperança que isso aconteça neste século?

Havia uma esperança porque, a partir de 1980, o conhecimento sobre a doença de Alzheimer foi aumentando vertiginosamente. Quando comecei a estudá-la, se imaginava que, quando descobríssemos o que tinha no interior da placa e o que formava as alterações intracelulares, que são chamadas emaranhados neurofibrilares, conseguiríamos deter a doença. Isso foi descoberto na época de 1980, e animou muito, deu uma enorme expectativa. Se descobriu muita coisa nesse período, e se descobriu também as mutações que causavam a DA. Começou a existir uma teoria para explicar como é que a doença surgia, a teoria da cascata do amiloide.

Surgiu a possibilidade de se deter a deposição de amiloide no cérebro, entretanto, isso é o que se tenta fazer até hoje, e os resultados não foram tão brilhantes como se imaginava. Ainda hoje se tenta fazer isso, e acho que é um caminho correto. Mas as evidências mostram que esse não pode ser o único tratamento. Por exemplo, nos últimos tratamentos, foi possível verificar que praticamente se consegue retirar toda a amiloide do cérebro dos indivíduos, e a doença continua piorando. Então, há necessidade de voltar às pranchetas.

Eu estava junto com as outras pessoas, acreditando que a gente ia chegar ao fim do século passado com o tratamento disponível, e não chegamos. Alguém vai perguntar quando vai ser possível. O futuro dessas pesquisas e dos resultados depende muito de descobertas, que são imprevisíveis. Alguém pode descobrir alguma coisa absolutamente nova e revolucionar o tratamento. Talvez precisemos de uma descoberta fantástica.

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Nitrini foi entrevistado para reportagem publicada na edição do 'Estadão' de 13 de novembro de 1994 Foto: Acervo Estadão

Nesse sentido, fico muito feliz em contar uma coisa recente que fizemos. Há uns tempos, eu tive contato com uma antropóloga da Universidade de Brasília, que se chama Maria Clotilde Tavares. Ela me disse que trabalhava com macacos, especialmente o macaco-prego. Eu já tinha lido a respeito dele, é um macaco inteligente, o mais inteligente das Américas. Pensei: ‘Poxa, poderíamos fazer um estudo e ver se o macaco-prego tem doença de Alzheimer’. Começamos a fazer. Conseguimos que o cérebro dos macacos fosse encaminhado para nós. Não matamos nenhum animal, simplesmente esperamos falecerem de morte natural.

O primeiro macaco que faleceu era jovem e não tinha nada. O segundo macaco que veio era idoso e tinha alterações de Alzheimer. Vem o terceiro macaco, também idoso, e sem dúvida nenhuma tinha alterações do Alzheimer. Portanto, nós acreditamos que descobrimos o modelo animal da doença de Alzheimer.

Não existe o modelo natural da doença, e esse é um problema, porque quando existe, podemos fazer pesquisa sem usar seres humanos. Se tivesse um animal que desenvolvesse a doença, você poderia fazer pesquisa com ele. Você vai dizer: ‘Poxa, mas é cruel’. Não, é menos cruel do que fazer em seres humanos.

A esperança contra o Alzheimer pode estar no macaco-prego?

Existem outros modelos atualmente que estão sendo feitos, os organoides. Você cria um modelo e usa como se fosse cultura de células, consegue interferir nelas. (Mas) Eu acho que o modelo animal poderia ajudar muito. Existem outros animais que também têm Alzheimer. Mas o macaco-prego tem a vantagem de ser muito inteligente. Ele pode ser avaliado com muitos testes parecidos com os usados em seres humanos. Aventamos essa possibilidade. Agora, temos que continuar estudando.

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Em 2018, também ao ‘Estadão’, o senhor falou sobre superidosos, que mantêm uma boa memória mesmo com 80, 90 anos. Disse que a questão era saber se isso se devia ao acaso, ou seja, à genética, ou se havia ‘algo mais’. Já temos essa resposta?

Acho que a principal razão é de ordem genética. Existe um estudo muito interessante feito por um grupo colombiano de um pesquisador chamado Francisco Lopera. Ele estudou uma família de indivíduos que tinham demência autossômica dominante (hereditária). Então, nesses indivíduos, 50% dos familiares dos filhos têm demência. Ele foi acompanhando até chegar a uma população de milhares de indivíduos.

Entre essas pessoas, ele sabia, os biomarcadores começam a ser alterados pouco depois dos 20 anos. Aos 24 anos, já tem alteração dos biomarcadores. A demência mesmo vai se manifestar em torno dos 40 anos. Mas ele tinha um caso, uma senhora que ele acompanhava, que chegou normal aos 45, e tinha a mutação. Aos 50, normal. Aos 55, normal. Foram ver de novo se ela tinha a mutação. E tinha mesmo, sem dúvida. Quando ela faleceu, com 75 anos aproximadamente, tinha um comprometimento (cognitivo) leve.

Quando foram estudar do ponto de vista neuropatológico, (viram que ela) tinha uma quantidade imensa, muito grande, de depósito de proteína beta-amiloide, mas tinha muito menos depósito de outra proteína, chamada tau. A tau tem muito mais relação com o quadro clínico (a demência) do que a proteína beta-amiloide. A proteína beta-amiloide inicia o processo e, depois, surge a proteína tau de modo crescente.

O que eles verificaram? Ela tinha uma mutação que foi protetora. Esse não é o primeiro caso de mutação protetora. Na Islândia também já se tinha descoberto uma mutação protetora. Então, existem alterações genéticas que são protetoras, mesmo para os casos de demência autossômica dominante.

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