A falta de remédios e outros insumos, relatada por prefeituras e hospitais públicos e privados no último mês, demonstra que a crise de abastecimento deflagrada pela covid-19 em 2020 está longe de ser vencida. Na Santa Casa de Santos, por exemplo, a escassez de contraste iodado prejudicou em julho pacientes que precisam realizar tomografias, cateterismo cardíaco e outros procedimentos.
Sem conseguir encontrar fornecedores, a instituição chegou a cancelar exames e adiar cirurgias que dependem do uso do produto importado. “Por causa do estoque baixo, decidimos atender apenas as emergências. Pacientes com enfarte, AVC e outros problemas que precisam desse material”, disse, no fim de julho, o médico Alex Macedo, diretor técnico da Santa Casa de Santos.
Segundo Macedo, esse é um problema mundial que afeta hospitais de todo o Brasil. “As poucas fábricas de contraste iodado, na China, na Índia e no Leste Europeu, não estão conseguindo suprir a demanda global”, explica. “Estamos remarcando os agendamentos dos pacientes para daqui um mês ou mais”, diz.
A interrupção das cadeias de produção e distribuição de medicamentos e insumos de uso hospitalar inflacionam os preços desde o início da pandemia. Um estudo feito em grandes hospitais revela o impacto da covid-19 nos custos de saúde ao investigar as compras feitas por hospitais públicos brasileiros.
Os resultados da pesquisa apontam altas de até 524% nos valores de materiais e de 409% nos de medicamentos usados por hospitais gerais do Sistema Único de Saúde (SUS), em diferentes Estados, nos piores meses da pandemia.
O índice de preços da cesta de medicamentos hospitalares analisada apresentou aumento de 97,49% no período de fevereiro de 2020 a junho de 2021, segundo o estudo feito pelo Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross), em parceria com a consultoria GO Associados. No caso dos materiais médico-hospitalares, o índice de preços registrou alta de 161,14% entre fevereiro de 2020 e abril de 2021.
O Ibross representa 21 organizações sociais que mantêm contratos de gestão com Estados e municípios. Entre elas, as responsáveis pela administração do Hospital São Paulo (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), do Hospital Municipal Vila Santa Catarina (Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein), do Hospital Geral do Grajaú (Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês) etc.
A pesquisa abrangeu todas as filiadas do Ibross que administram hospitais gerais no Brasil. Mais de 66 mil compras de medicamentos e 36 mil aquisições de materiais foram consideradas no estudo. Os pesquisadores analisaram os valores de 76 tipos de medicações e 45 materiais médico-hospitalares, como aventais, cateteres, máscaras descartáveis, luvas e seringas.
Segundo o estudo, foram encontradas evidências de que houve quebra estrutural nas séries de preços a partir de maio de 2020. Isso significa que os preços se comportaram de maneira diferente da tendência apresentada entre 2018 e 2019. “Esse trabalho materializa as dificuldades ocorridas na vida real dos hospitais”, diz o médico Flávio Deulefeu, presidente do Ibross. “Os preços dos produtos ainda não voltaram aos patamares anteriores à pandemia”, afirma.
Deulefeu dirige o Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar (ISGH), entidade responsável pela administração de 6 hospitais e 9 unidades de pronto atendimento (UPA) no Ceará, além de gerir o abastecimento farmacêutico de toda a atenção primária do município de Fortaleza. “Antes da covid-19, comprávamos máscaras cirúrgicas a R$ 0,07; no meio da pandemia, passamos a pagar R$ 1 e, atualmente, o valor continua o dobro do que era”, diz ele.
Resultados
Ao analisar o custo dos medicamentos, os pesquisadores revelaram que o Midazolam (sedativo usado em intubações) apresentou a maior variação de preços (409,13%). A ampola custava, em média, R$ 2,22 antes da pandemia e passou a ser comprada por R$ 11,33.
Algo semelhante ocorreu com o hemitartarato de norepinefrina (medicamento para controle de pressão e tratamento de parada cardíaca). A ampola era comprada, em média, por R$ 1,80 antes da covid-19 e passou a valer R$ 7,16 cada ampola. O omeprazol (para tratamento de quadros gástricos) passou de R$ 4,96 para R$ 18,44 o frasco.
No caso dos materiais médico-hospitalares, o preço médio das agulhas passou de R$ 0,14 para R$ 0,88 a unidade (variação de 524,73%). O pacote com 50 unidades de máscaras cirúrgicas negociado por R$ 4,70 passou a valer R$ 22,70. A mesma tendência foi verificada nos pares de luvas de procedimentos, que aumentaram de R$ 0,17 para R$ 0,65.
Razões
A covid-19 mostrou que o País, assim como o mundo, é altamente dependente dos insumos produzidos na Ásia. O continente produz ao redor de 95% da matéria-prima dos medicamentos consumidos no Brasil. Desse total, 75% vêm da Índia e da China, o primeiro epicentro da pandemia.
A elevação dos preços foi provocada por uma conjunção de fatores, segundo a pesquisa: o aumento da demanda por medicamentos e materiais a partir do crescimento do número de casos confirmados de covid-19, a desvalorização do real frente ao dólar americano e o aumento generalizado dos preços de mercado por causa das quebras das cadeias produtivas globais.
“Alguns fabricantes podem ter aproveitado o momento da pandemia para aumentar suas margens de lucro, mas os grandes fornecedores relatam que realmente houve encarecimento dos custos de produção e distribuição dos produtos”, diz Deulefeu.
“Vivemos um momento em que a covid-19 ainda não foi totalmente resolvida e os hospitais públicos estão cheios de pacientes com outras doenças graves que não foram tratadas nos piores meses da pandemia”, afirma o presidente do Ibross. “Isso também aumenta os custos de saúde e exige que as instituições trabalhem com o máximo de eficiência”, diz ele.
Falta o básico
Gestores afirmam que os preços seguem em alta e apontam dificuldades de aquisição de produtos básicos como o analgésico dipirona injetável e soro fisiológico. Em junho, a Santa Casa de São Paulo, ficou sem dipirona e precisou substituí-la por ibuprofeno para não prejudicar o atendimento dos pacientes. Manter o abastecimento de soro fisiológico é uma das preocupações do médico Rogério Pecchini, diretor de Operações em Saúde da Santa Casa de São Paulo.
“É impossível pensar na atividade hospitalar sem soro fisiológico, mas está difícil comprar”, conta Pecchini. “A embalagem do soro é feita de derivado do petróleo; o mundo ainda não se recuperou da pandemia e a logística mundial de suprimentos está afetada pela guerra da Ucrânia”, afirma.
Segundo ele, o aprendizado dos piores meses da pandemia tem ajudado a instituição a evitar o desabastecimento. “O custo de alguns insumos, como a máscara cirúrgica, aumentou 12 vezes em relação a 2019”, afirma. “Aprendemos a buscar novos fornecedores e a estabelecer contratos mais longos”, diz. “Estamos conseguindo suprir a nossa necessidade de soro fisiológico porque negociamos com um fornecedor que ofereceu um bom preço e garantiu a entrega pelos próximos meses”.
Levantamento divulgado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) em junho mostra que oito a cada dez municípios do País relatam falta de remédios. A pesquisa foi feita com 2.469 prefeituras. As cidades apontam ausência de estoque na rede pública, principalmente do antibiótico amoxicilina, usado contra infecções, e do analgésico dipirona, indicado para tratar dores e febre.
Compras
A grande maioria dos hospitais públicos e privados compra medicamentos e outros insumos por meio de plataformas eletrônicas criadas pela empresa Bionexo. Para garantir a transparência das compras públicas, os gestores fazem pregão eletrônico e negociam o preço diretamente com os fornecedores por meio do serviço Publinexo, oferecido pela mesma companhia.
Assim são feitas as compras que abastecem os postos de saúde da capital cearense. “Ficou mais difícil conseguir baixar os preços durante essas negociações porque há produtos em falta no mercado, como alguns injetáveis e antimicrobianos”, diz Cristina Isidio, superintendente de suprimentos do ISGH, em Fortaleza. “Estamos passando por uma quarta onda de covid-19 e não sabemos como o mercado vai se comportar nos próximos meses”, afirma.
A falta de medicamentos e o aumento de preços afetam também os hospitais privados. De acordo com pesquisa do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp), 51% das unidades relataram problemas com escassez ou preços de medicamentos no mês passado.
Indústria farmacêutica
Segundo os fabricantes, a elevação dos custos de produção provocada por fatores como inflação, aumento do preço do petróleo e encarecimento do valor dos fretes complica o cenário.
O advogado Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) e membro do Conselho Nacional de Saúde, salienta que, diferentemente dos materiais de uso hospitalar, os preços dos medicamentos são controlados pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
“Controle de preços nunca funcionou em lugar algum do mundo. Se os custos sobem a ponto do fabricante ter prejuízo, ele deixa de produzir e ocorre desabastecimento”, afirma. “Antes da covid-19, as empresas vendiam os produtos com grandes descontos porque a concorrência era muito acirrada”, diz.
“Quando começou a escassez e os custos de produção quintuplicaram, em alguns casos, os descontos foram reduzidos. Os hospitais reclamam dos preços dos medicamentos, mas nenhum deles faz pesquisa para mostrar que, antes da pandemia, eles compravam produtos com até 80% de desconto”, afirma.
Segundo Mussolini, os fabricantes não aumentaram margens de lucro na pandemia. “A rentabilidade das indústrias que fazem medicamentos de uso hospitalar não cresceu nesse período porque a concorrência nesse setor é muito grande”, afirma.
“É importante ressaltar que essa crise de fornecimento de produtos de uso hospitalar não afeta os valores dos medicamentos nas farmácias porque existe um preço máximo que pode ser praticado nas vendas ao consumidor”, afirma.
Consequências
A alta dos preços aumenta a dificuldade das OSs de conseguir cumprir as metas assistenciais e de desempenho estabelecidas com os gestores públicos. “Se essa situação perdurar e os governos não fizerem uma revisão dos valores de custeio das instituições de saúde, ela pode levar a uma redução da capacidade dos hospitais do SUS de oferecer serviços”, afirma o médico sanitarista Renilson Rehen, secretário-geral do Ibross. “O que o Brasil pode fazer com a experiência tão dolorosa da pandemia é se preparar para não estar tão vulnerável nas próximas crises”, afirma.
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