Quimerismo: entenda condição genética da personagem Brisa, da novela Travessia

Na trama, personagem de Lucy Alves precisa provar que é mãe de Tonho após dois testes de DNA darem negativo; estima-se haver só 40 casos comprovados no mundo todo

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Foto do author Renata Okumura
Atualização:

Condição genética rara que determina que o indivíduo possui dois tipos distintos de DNA no seu corpo, o quimerismo é um fenômeno que pode ter impacto no âmbito jurídico. Na novela Travessia, da TV Globo, a personagem Brisa (Lucy Alves) vive o drama de poder perder a guarda do filho, após dois testes de DNA darem negativo. Estima-se que haja apenas 40 casos comprovados no mundo todo.

A trama gira em torno de tentar explicar por qual motivo os exames não mostraram que ela é a mãe biológica do menino. Especula-se que a jovem possa ter sido fruto de uma gravidez de gêmeos, onde apenas Brisa nasceu. O outro feto, mesmo não sobrevivendo, teria seu material genético fundido ao da mãe de Tonho. Conforme especialistas, o quimerismo pode afetar o resultado de um teste de DNA.

O que é quimerismo?

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“O quimerismo é uma condição genética rara, que determina que o indivíduo possua dois tipos distintos de DNA em seu corpo”, afirma Danyelle Oliveira Toledo, neonatologista e professora de Medicina da Universidade de Franca (Unifran). É a presença de células de dois ou mais zigotos (célula primordial formada pela fusão do espermatozoide com o óvulo) no mesmo indivíduo. É como se existissem duas pessoas dentro de um mesmo corpo.

Por sua vez, o DNA é o responsável por informações genéticas de um indivíduo, que serão transmitidas para seus descendentes.

Apesar de genética, a condição não é hereditária. Ou seja, tem relação com os genes e DNA, porém, não é necessariamente transmitida de pais para filhos.

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Conforme especialistas, o quimerismo pode afetar o resultado de um teste de DNA.  Foto: Pixabay/Geralt

Quais as causas?

“As quimeras humanas podem surgir de forma natural - podendo o portador passar longos anos de sua vida ou a vida inteira sem conhecimento ou diagnóstico da condição -, ou de forma artificial, por meio de intervenções médicas ou científicas”, afirma a neonatologista e professora do curso de Medicina da Universidade de Franca (Unifran).

“O quimerismo humano natural ocorre entre o útero, antes do nascimento, podendo o grau de variação do DNA diferir de um caso para outro.”

Ainda segundo ela, as quimeras naturais podem ocorrer de três maneiras:

  • Microquimerismo (ou fetomaternal).
  • Quimerismo partenogenético (formada quando um ovo que não sofreu meiose é fertilizado por dois espermatozoides).
  • Quimerismo tetragamético (dois ovos são fecundados por dois espermatozoides, resultando em dois embriões distintos que se fundem para formar uma única pessoa).

Há ainda os quimerismos não embrionários (tecnicamente são casos de microquimerismos), que ocorrem em casos de doação de órgãos ou até por transfusões sanguíneas.

A condição genética rara afeta quantas pessoas no mundo?

Segundo Danyelle, referências bibliográficas apontam ser um fenômeno raríssimo, cuja incidência comprovada atinge apenas 40 indivíduos em todo o mundo. O primeiro caso documentado de quimera humana foi publicado no British Medical Journal, em 1953. Veja abaixo mais informações.

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Como a pessoa sabe da condição? Há sintomas ou sinais?

O portador de quimera humana pode passar a vida toda ou anos sem saber que possui a condição genética, sendo, por isso, um diagnóstico considerado difícil. “Testes genéticos de vários tipos de tecidos do corpo são capazes de diagnosticar as quimeras. Entretanto, tais exames não são de fácil realização. Os testes diagnósticos são realizados em casos raros de aparecimento de sintomas, que caracterizam a condição”, afirma a professora de Medicina.

Os sintomas físicos característicos incluem: ambiguidade genital, hermafroditismo, pele com coloração desigual, olhos com cores distintas ou dificuldade para determinar grupos sanguíneos, conforme foram descritos anteriormente por Clive N. Svendsen e Allison D. Ebert na publicação ‘Enciclopédia de Pesquisa com Células-Tronco’.

“Quando não há manifestação clínica, o diagnóstico torna-se mais difícil, dependendo da ocorrência de evento específico que possa levar a desconfiança da condição”, acrescenta Danyelle.

Quem tem o diagnóstico precisa fazer algum tratamento ou a condição não afeta a saúde da pessoa?

O tratamento depende de ter ou não manifestação clínica e qual, em casos de hermafroditismo por exemplo, deve ocorrer uma abordagem holística do paciente e da família.

“A abordagem depende da idade do diagnóstico e funcionalidade dos órgãos genitais, como em qualquer caso de ambiguidade genital”, afirma ainda a especialista.

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De onde vem o termo quimerismo?

Conforme a publicação ‘Um outro eu: O caso das quimeras humanas’ na SciELO, biblioteca virtual em saúde, em 2016, o termo quimera tem sua origem na mitologia como sendo um imponente e horripilante monstro que ‘expelia fogo’ pela boca e pelas narinas. A parte anterior de seu corpo era uma combinação de leão e cabra e a parte posterior, a de um dragão. Embora não seja uma questão discutida com frequência, estudos já abordaram a condição genética anteriormente.

“Durante anos a figura da quimera habitou apenas o mundo antigo, entretanto, na atualidade a comunidade científica manteve a terminologia para caracterizar indivíduos que possuem um ou mais tipos distintos de DNA, como será analisado adiante”, diz ainda o artigo.

Conforme a SciELO, o primeiro caso documentado de quimera humana foi publicado no British Medical Journal, em 1953. “O caso envolvia uma mulher britânica, que supostamente apresentava diferentes tipos sanguíneos. Os resultados dos exames dela apontavam que ela possuía os tipos sanguíneos O e A. Acreditando tratar-se de um fenômeno impossível, a clínica inglesa onde a mulher havia realizado o exame repetiu o procedimento, de maneira a descartar possíveis erros resultantes da análise da amostra original.”

Segundo a publicação, no entanto, o novo resultado confirmou o antigo: a mulher possuía dois tipos sanguíneos, O e A. Posteriormente, o médico teve conhecimento que a mulher teve um irmão gêmeo que faleceu meses após o nascimento.

“Um novo exame foi realizado, desta vez utilizando-se da saliva da paciente, que confirmou o sangue O. Com isso, os médicos concluíram que a paciente possuía originalmente o sangue O, tendo recebido o sangue tipo A do seu irmão gêmeo, sendo considerada, assim, a primeira quimera humana”, consta no artigo.

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De que forma o quimerismo se relaciona com as questões jurídicas?

Ainda de acordo com a SciELO, alguns casos de quimerismo humano já foram veiculados pela mídia e, inclusive, tiveram algumas repercussões no mundo jurídico. “Em 1998, na cidade de Boston, capital de Massachusetts nos Estados Unidos, o caso de Karen Keegan se tornou um mistério. Ela sofria de insuficiência renal e precisava de um transplante de rins. Para tanto, realizou-se um teste de compatibilidade com seus três filhos, a fim de se verificar se um deles poderia ser seu doador. O resultado foi negativo e, entretanto, para a surpresa de todos, constatou-se também que dois dos três filhos não eram filhos biológicos de Karen.”

Os exames foram repetidos, e os resultados continuavam demonstrando que ela não era mãe de seus filhos como imaginava. Segundo o artigo, conforme relatou o estudioso Robert Russell Grazen, em 2014, um dos irmãos da mulher se disponibilizou a realizar alguns exames para comprovar o parentesco, o que de fato, ficou evidenciado. “Portanto, os médicos passaram a analisar outras amostras genéticas de Karen, a fim de se verificar o motivo dessa discrepância nos exames e de se comprovar que a mulher era a mãe biológica de seus filhos”, consta no artigo.

A partir dos demais exames, a equipe de médicos constatou que Karen tinha um tipo de DNA em um tecido e outro tipo de DNA em outro tecido. “Neste sentido, essas novas análises constataram que ela tinha dois perfis de DNA distintos dentro de seu próprio corpo, ou seja, a mulher era uma quimera humana. Como justificativa, os médicos indicaram que a hipótese mais plausível é que Karen se fundiu com outro embrião, que seria seu gêmeo, durante a gestão, o que resultou em dois tipos de DNA em um só embrião, fenômeno este chamado de quimerismo tetragamético”, citou a publicação.

Desta forma, com a evolução da ciência, o termo deixou de ser conhecido apenas no campo mitológico e passou a percorrer também o campo científico. Também faz parte do ambiente jurídico.

“Nos casos de investigação criminal, por exemplo, que utilizam de testes de DNA para identificação humana, para culpabilizar ou inocentar indivíduos, também pode ser influenciado por quimera humana, sendo necessário comprovar a condição de portador de quimerismo”, afirma Danyelle, da Unifran.

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Ou seja, ainda que seja uma condição muito rara e específica, além das questões relacionadas aos exames de DNA, o quimerismo também se relaciona com questões jurídicas, pois o DNA é comumente utilizado em situações em que a identificação da pessoa não é possível por outros meios, como, por exemplo, no caso de investigação de paternidade ou para elucidação de um crime.

“O quimerismo pode trazer uma questão com relação a prova técnica do exame de DNA. O teste de DNA é considerado, do direito penal e civil, de direito de família, é considerado uma prova bastante robusta e forte. No caso do quimerismo, esta prova não será considerada válida. Neste caso, será preciso avaliar outras provas que compõem o caso”, afirma Matheus Falivene, doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

“Entretanto, é importante ressaltar que, apesar dessas possibilidades, o quimerismo é uma condição rara e que não coloca em dúvida a confiabilidade dos exames de DNA”, afirma ainda o artigo publicado na SciELO.

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