Após um ano de pandemia de coronavírus e o País com quase 300 mil vítimas da doença, o trauma vai além das famílias que perderam integrantes, deixando um rastro de incertezas mesmo entre aqueles que escaparam da morte. Relatos dramáticos de quem sobreviveu – e que tenta retornar ao trabalho – dão conta das sequelas deixadas pela contaminação do Sars-CoV-2 e das dificuldades enfrentadas na busca pelo retorno à vida produtiva.
As consequências da infecção ainda não são totalmente conhecidas por médicos e cientistas. Enfraquecimento muscular, perda de memória e cansaço estão entre os problemas relatados pelos pacientes, de diferentes idades, em depoimentos ao Estadão meses após o primeiro diagnóstico.
Valéria Alves, de 42 anos, psicóloga
A psicóloga Valéria Alves, de 42 anos, sofre há nove meses com o impacto provocado pela infecção do coronavírus. Ela é uma das mais de 10 milhões de vítimas que conseguiram se recuperar da covid-19, mas continua convivendo com sequelas e dificuldades de retorno ao trabalho. Ela, os três filhos e o marido foram infectados em junho. A psicóloga lembra das dificuldades enfrentadas durante a recuperação da doença, dos limites para retomar as atividades normais e da esperança de voltar à vida profissional.
“Desde a doença, não voltei mais ao trabalho”, conta. Os motivos para essa interrupção nas atividades profissionais de Valéria são dramáticos e vão além da infecção que ela teve. A psicóloga teve a forma leve da doença, mas o marido dela, não. Ele sofreu parada cardiorrespiratória e não se recuperou mais. Vive atualmente em estado vegetativo necessitando de cuidados intensivos e da atenção da mulher.
Servidor público em São Paulo, ele foi atingido com violência pelo coronavírus. “Hoje ele está sendo cuidado no Hospital do Servidor”, explica a mulher. “No desespero que a gente viveu, nem tenho como te dizer o que senti da doença”, afirma.
“Nem sei se o que eu sentia era da covid ou da situação toda”, diz a psicóloga, respondendo sobre o impacto dos sintomas sofridos por ela naqueles meses. Valéria ainda não voltou a trabalhar e se dedica aos cuidados diários com a saúde debilitada do marido. “Depois da infecção e da parada cardiorrespiratória, ele foi tratado numa clínica, mas depois foi para o HSPM”, relata Valéria.
Mara Gabrilli, 53 anos, senadora
No caso da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), infectada em maio, no primeiro pico da crise da doença, as complicações também foram graves. A senadora contraiu o vírus em casa no contato com auxiliares que a ajudam nas atividades cotidianas pelas limitações de saúde que já tinha – ela é tetraplégica.
O impacto da covid no organismo de Mara Gabrilli foi pesado. Ela testou positivo por cerca de 20 dias, sentia dores musculares e espasmos e teve até rompimento de ligamentos de tendão no ombro. Os médicos que cuidam de pacientes de covid costumam verificar fortes perdas musculares nas vítimas da doença.
Mesmo depois da chamada recuperação, sofrem com os efeitos provocados pelo forte impacto no sistema imunológico, como no caso da parlamentar. Ela falou das sequelas em pronunciamento feito no Senado, em agosto, quando interrompeu o isolamento pedido pelos médicos para defender, em audiência via internet, a aprovação de projeto que beneficiava portadores de Atrofia Muscular Espinhal (AME). Ela teve ainda reflexos adicionais, como perda de olfato e paladar.
Recuperada da covid, Mara Gabrilli voltou a sofrer com sequelas da doença. A senadora tem perda de memória de fatos recentes, como não lembrar se tomou o café pela manhã. E foi obrigada a conviver outra vez com momentos de pânico quando teve episódios de perda de voz, um de seus recursos fundamentais de contato externo.
Atualmente, Mara Gabrilli está recolhida, depois da morte do irmão, Beto, em Trancoso, na Bahia. O corpo foi encontrado no dia 1º. “Tudo indica que morreu enquanto dormia”, informou a senadora, em uma rede social.
Gilmar Lopes, de 49 anos, segurança de condomínio
Gilmar Ferreira Lopes, de 49 anos, trabalhava como porteiro e segurança de condomínios quando foi hospitalizado em abril com covid. Sofreu complicações respiratórias e motoras num processo de agravamento que durou quatro meses. Teve de ser submetido a traqueostomia e outros procedimentos médicos de UTI no Hospital das Clínicas, na capital paulista, depois de ter passado por outros centros médicos.
Até hoje, Lopes ainda não consegue forças para voltar ao trabalho. “Passei pelo buraco da agulha”, afirma ele, lembrando dos dias de tratamento. “Mas ainda sinto muita dor de cabeça, fraqueza”, afirma. “Não estou 100%, mas escapei, estou vivo, com a ajuda de Deus e dos médicos”, diz o porteiro. Ele também foi encaminhado para tratamento de reabilitação e nesta semana segue esperando por novos exames, como ressonância e tomografias para acompanhamento de seu estado geral de saúde.
Lopes lembra que logo após a internação sofreu “um apagão” de memória. Ficou intubado por 20 dias e, ainda hoje, tem dificuldades para se lembrar de tudo que passou no hospital. É morador de Paraisópolis, comunidade pobre na zona sul paulistana, onde vive com a mãe e familiares. Os parentes também apresentaram sintomas da doença, porém mais leves. Lopes conta que vive hoje de auxílio-doença. "Já perdi várias oportunidades de emprego por causa dessa covid”, afirma o porteiro.
Valdir Zamboni, de 63 anos, cirurgião
O cirurgião Valdir Zamboni foi hospitalizado com covid no começo de maio. Ele já voltou ao trabalho mas ainda hoje, nove meses depois, sofre com algumas sequelas provocadas pelo impacto da doença no seu organismo. “Mesmo depois de sair do hospital, eu tinha tremores fortíssimos, até na língua”, conta. Zamboni lembra que duas semanas depois da contaminação o vírus desaparece, mas os danos provocados no organismo são devastadores.
“Fiquei hospitalizado por 88 dias, 77 na UTI, 66 no ventilador. Desenvolvi uma reação inflamatória desmedida, perdi 26 quilos”, conta. “Fiquei com 92% do pulmão comprometido”, recorda o médico, que trabalha nos hospitais das Clínicas e Universitário (HU), além do hospital da Vila Alpina. Cirurgião de trauma, chefe de equipe, ele já está retomando devagar a atividade, voltou aos plantões semanais e, inclusive, já atua em cirurgias. “Quando voltei a trabalhar, entrar em cirurgia, fiquei muito feliz porque aí tive a certeza de que venci esta doença”, comemora.
Zamboni está curado do vírus, mas depois da internação passou 38 dias em tratamento de reabilitação na Rede Lucy Montoro e ficou dependente de oxigênio por dois meses depois da alta. Ele ainda sente algumas sequelas. “Hoje não preciso mais do oxigênio, mas ainda sinto cansaço. Meu dedão do pé, por exemplo, tem dificuldade de movimento, e tenho áreas que eu não sinto na planta do pé. Mas não me impede de andar”, explica Zamboni. “Isso é resultado de uma perda muscular, o que a gente chama de miopatia pós-covid”, disse o médico.
Para ele, as pessoas em recuperação da doença precisam ter muita paciência antes de voltar ao trabalho. “Precisa ser paciente consigo mesmo porque a volta é demorada. Muitos pacientes sentem dores musculares crônicas nos membros inferiores, além de sequelas neurológicas, cardíacas e pulmonares."
Zamboni aconselha ainda que até os pacientes que tiveram a forma mais leve procurem ajuda de pelo menos dois profissionais, um fisiatra e um pneumologista. “Esses são profissionais fundamentais na recuperação”, diz o cirurgião. “E muita paciência, porque não há melhora rápida. Você tem de entender que vai demorar e que você não será mais o mesmo. Eu tive de reaprender até a andar”, argumenta, agradecendo também pelo apoio dos filhos na superação das sequelas da covid. “Eles foram fundamentais na minha recuperação”, afirma.
Para Zamboni, a pandemia ainda vai demorar pelo menos um ano em atividade. “Depois, vai passar e talvez a gente vá conviver com uma doença endêmica”, avalia Zamboni, que acompanha de perto pesquisas com a vacina.
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