São Paulo é uma senhora de quase 470 anos, paciente com comorbidades severas e cuja probabilidade de morrer aumenta em cerca de 50% quando uma onda de calor faz com que a temperatura da cidade passe dos 30ºC. Essa é uma das analogias que o médico Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Universidade de São Paulo (USP), faz para explicar o impacto das mudanças climáticas na saúde das pessoas.
O tema norteou a palestra que ele ministrou durante a abertura do Summit Saúde & Bem-estar 2023, evento promovido pelo Estadão, com transmissão online, que reuniu especialistas de todo o Brasil. Confira, a seguir, os principais tópicos abordados por Saldiva.
Calor não vai para o atestado de óbito
“São Paulo tem uma zona de conforto térmico muito estreita. Ela se inicia em 18ºC e começa a deslocar, a partir de 27ºC, para um aumento de risco de morte. Em São Paulo, com 30ºC, já temos um aumento de 50% nas mortes. E um aumento de 50% das mortes, numa cidade em que morrem 160, 180 pessoas por dia, é muita gente. E do que as pessoas morrem? Não é de choque térmico. Na hora em que você começou a transpirar, o sangue pode hemoconcentrar e fazer trombo em órgãos vitais. Se o rim está filtrando e reabsorvendo tudo, concentra a urina e uma bactéria pode subir. O muco, que reveste as vias aéreas e que ajuda a eliminar os microrganismos, fica mais duro e você tem mais chance de fazer infecção respiratória. Então, você morre das doenças que tem e das suas fragilidades.”
São Paulo, uma paciente de risco
“Imaginem São Paulo como uma senhora de quase 470 anos, obesa, porque ela cresceu demais. Os bairros são órgãos, nós somos células que constituem esses órgãos. E as doenças dessa senhora são várias. Ela tem obstrução arterial por trombos metálicos. Ela tem diarreia aquosa nos rios. Quando chove, faz edema, inunda. Quando não chove, desidrata, faz febre. Tem até um pouco de Alzheimer dos neurônios dirigentes, porque cada administração esquece o que foi feito de bom, ou mesmo o que prometeu. Então, São Paulo é uma senhora que tem problemas. Cada corpo que morreu é uma célula que você pode examinar.”
Não está escrito temperatura (no atestado de óbito)
Paulo Saldiva, professor da USP
Morte seletiva
“O risco de internação para um aumento de 5ºC na temperatura varia conforme a educação, a qualidade da urbanização e a renda. Na medida em que o local é mais pobre, o risco de internar por doenças deflagradas ou precipitadas pelas ondas de calor vai mudando. Até a capacidade de se defender do calor é limitada também por nível socioeconômico – é mais barato você colocar um casaco do que ligar um ar-condicionado. Você não consegue reflorestar a sua rua. Então, é uma situação que, de alguma forma, impede uma resposta efetiva por parte das pessoas afetadas. Depende de políticas públicas.”
Políticas públicas de precisão
“Todo mundo sabe que caem no colo da saúde coisas que a saúde não consegue resolver. Vamos pegar acidentes de trânsito. Mais ou menos 40 mil pessoas morrem por ano no Brasil em acidentes de trânsito – o que corresponde a mais ou menos 70% do que morria anualmente na guerra civil de Angola. A gente estava discutindo na faculdade (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) aumentar o número de vagas de residência de cirurgia do trauma, neurocirurgia, ortopedia e UTI. Eu acho que tem que fazer mesmo. Mas é só isso? Será que, perante a crise do cigarro, se a gente aumentasse só a vaga de oncologia, pneumologia e cirurgia torácica, seria o nosso papel?
Bom, a gente está falando de medicina de precisão. Nós vamos ter que ter políticas públicas de precisão. E aqui, numa cidade, você não vai ter consenso. Se você decidir que aqui vai ser praça, aqui vai ser avenida, ninguém vai concordar. Se decidir que aqui vai ser transporte individual ou coletivo, vai ter briga. Os grupos se organizam de frente aos seus interesses. Mas é preciso definir o bem comum. E o bem comum se define com o número de pessoas afetadas, o tipo da pessoa afetada e as perdas econômicas decorrentes disso.”
Na morte, você pode olhar o ‘corpo urbano’. E entender como a cidade, o território onde a pessoa vive, pode ser lido e explicado pelas marcas deixadas no corpo daquela pessoa
Paulo Saldiva, professor da USP
Custo do clima
“A perda de produtividade econômica por mortes e adoecimento devido às mudanças climáticas no Brasil, se especificar pelo PIB (Produto Interno Bruto) per capita médio, dá mais ou menos US$ 1,5 bilhão por ano. Esse é o custo que é pago pelo sistema de saúde. Então, competiria à saúde fazer uma política de sustentabilidade que vá além daquelas que bancos ou corporações fazem, como reciclar e usar frente e verso (das folhas de papel).”
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Mudança pela educação
“No calor, um produtor de frango sabe se tem ou não a ventilação do galinheiro para não perder plantel. O produtor que tem irrigação sabe que vai ter que irrigar mais naquele período. Então, existe um alerta no sentido de proteger espécies animais e vegetais. E nós, na previsão do tempo, discutimos se vai dar praia, se vai levar casaco ou guarda-chuva. Qual é o alerta que você lança para o sistema de saúde para fazer frente à demanda? Qual é o alerta que você dá para o cidadão para ele cuidar melhor da sua saúde? Como é que você fala que o cuidador ou a mamãe tem que olhar a cor da urina para saber se está concentrada? Quais são as formas que você coloca para prevenir o indivíduo, pelo menos no que tange à sua vulnerabilidade?”
Clima e saúde mental
“As mudanças climáticas podem impactar nossa saúde mental. Para doenças cardiovasculares, respiratórias e renais, já existe uma soma de evidências bastante grande. Mas o nosso sistema termorregulador também dialoga com a produção de serotonina. A própria perda da qualidade do sono, porque você dorme mal nas ondas de calor, interfere na sua psique. Existem artigos, em escala global, mostrando (a relação da) curva (de temperatura) com suicídios, violência autoinfligida e também com homicídios. Tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) montou um escritório para crime e saúde. Ou seja, existem evidências de que muitos desfechos de saúde são afetados pela questão climática.”
São Paulo é uma ilha de calor. A gente construiu desertos de concreto e asfalto. E, quanto mais pobre a pessoa, maior o risco de internar por doenças deflagradas ou precipitadas pelas ondas de calor
Paulo Saldiva, professor da USP
Força-tarefa
“A doença tem um poder transformador enorme. Ninguém fica indiferente à dor e à doença. Essa é uma força educativa, e a saúde tem a credibilidade, a capilaridade para participar disso. Será que um cardiologista sabe quanto daqueles enfartes são atribuíveis ao clima ou à poluição do ar? Será que ele não poderia, de alguma forma, se envolver com isso? Será que não podemos usar essa força que a saúde tem para dialogar e propor soluções e colocar preço? Porque tem moedas para especificar a saúde, tanto de custo direto quanto de custo indireto. Quanto custa mudar certas alternativas?”
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