Se só valorizarmos o melhor possível, seremos um celeiro de frustrações, defende psiquiatra

Em seu novo livro ‘Viver é melhor sem ter que ser o melhor’, o médico Daniel Martins de Barros explica por que devemos reconhecer a importância de sermos medianos

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Foto: Divulgação Pessoal
Entrevista comDaniel Martins de BarrosPsiquiatra e autor do livro 'Viver é Melhor sem ter que ser o melhor'

É comum que, a partir do encerramento de um ciclo, o ser humano faça um balanço interno. O que foi bom? O que foi ruim? O que precisa mudar? É uma atitude muito benéfica para a saúde mental, mas que exige honestidade para que exista uma avaliação do todo, e não somente de uma porcentagem das lembranças.

“Usamos nossos elementos de memória para fazer construções e prospecções. Só que o que temos de mais fresco são as coisas intensas, não as medianas. Então, projetamos um futuro ou lembramos de um passado baseados em memórias de elementos intensos que, no fundo, são raros”, esclarece Daniel Martins de Barros, psiquiatra e colunista do Estadão.

Com o fim do ano se aproximando, é importante estarmos atentos para as expectativas – muitas vezes inalcançáveis – que colocamos na nossa versão futura. A comparação com o ano que passou (que pode não ter sido tão ruim assim) ou a ideia de esperar um “quando” para ser feliz (”quando eu for magra”, “quando eu namorar”, “quando eu sair daquele trabalho”) pode te distrair do lugar que você está agora – e que pode ser bem bacana.

“Se só valorizarmos o melhor possível, seremos um celeiro de frustrações e infelicidade. Mas, se compreendermos que a média é muitas vezes boa o bastante, a qualidade de vida das pessoas pode aumentar muito”, conta Barros em seu novo livro Viver é melhor sem ter que ser o melhor, publicado pela Editora Sextante.

Para buscar as respostas sobre a mediocridade, o psiquiatra se deparou com os lemas do arcadismo, um antigo movimento literário e artístico que exaltava a simplicidade, a moderação e a reflexão. “Sabendo que a vida é finita, devemos dar atenção a cada momento e, assim, desfrutá-la, tranquilos e sem pressa, e não distraídos pelos excessos – dos quais só nos livramos ao abraçarmos a moderação”, resume ele.

O movimento surgiu logo depois do barroco, que exaltava o exagero. “A humanidade evolui em pêndulos. Quando tem muita restrição, queremos abrir. Mas, quando está muito aberto, achamos exagerado. Por isso, é importante resgatar a ideia do meio termo”, conclui.

Caso sempre busquemos o primeiro lugar, viveremos em uma prisão. Isso não quer dizer que, de vez em quando, não podemos ter o desejo de sermos o melhor em algo. Mas é importante se atentar para que isso não vire uma obrigação. Para explicar essa filosofia, o autor se baseia em quatro princípios:

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  • Carpe Diem: um lema conhecido, porém, um pouco distorcido pelo tempo. “Aproveitar o dia não significaria desprezar o futuro, mas encará-lo como incerto”, diz. “É um estímulo a não postergar o que a vida nos oferece.”
  • Aurea mediocritas: a mediocridade de ouro valoriza a moderação e nos relembra que “medíocre” originalmente significa “o que está no meio”.
  • Inutilia truncat: poderia ser traduzido como “livre-se do que é inútil”. Algo extremamente difícil de se fazer quando estamos na sociedade do consumo, onde temos uma tendência inata à insatisfação e ao exagero.
  • Fugere urbem: “fugir da cidade”; de acordo com o lema, a marcha lenta da vida no campo e o maior contato com a natureza têm benefícios indiscutíveis.

Confira, abaixo, um bate-papo com o autor.

Há quem diga que é preciso olhar para o passado para compreender o presente. E eu vi um pouco disso no seu livro. O passado realmente ensina?

A história ensina, né? Para quem quer aprender, claro. Para quem não quer, a história não ensina nada. Então, acho que a antiguidade é muito mais do que um lugar idílico. Ela tem muito a nos ensinar, ela traz alguns pensamentos, algumas ideias, alguns valores, algumas coisas que não são boas exatamente por serem antigas, mas, sim, por terem sobrevivido ao teste do tempo.

O que vem desde lá e até hoje é relevante? Se há tanto tempo isso ainda é importante e relevante, é porque realmente faz diferença pra nossa vida, e talvez esteja tocando em alguma coisa essencial para nós.

Agora, falando do futuro: com o fim de um ano, existe uma expectativa de que tudo seja melhor no próximo. Você sente isso?

Eu posso garantir para as pessoas que o ano que vem vai ser na média. Porque a vida gira em torno da média, então, vão ter coisas ruins e boas acontecendo. Mas, na média, o ano vai ser como a maioria dos anos. Eventualmente, pode acontecer alguma coisa pior ou muito boa, mas, de forma geral, a gente gira em torno dessa força gravitacional gigantesca que é a média.

E, aí, eu acho que a gente almejar coisas melhores e ser melhor, subir a nossa média, é louvável e importante. A gente pode progredir também – o livro não é elogio do fracasso. Mas é um pouco a ideia de a gente ficar menos angustiado com o fato de não ter conseguido chegar lá e fazer a melhor performance possível ou alcançar todas as metas. Está tudo bem.

Para psiquiatra, valorizar só a alta performance pode gerar frustração, até porque, em geral, a vida gira em torno da média Foto: Adobe Stock

O que devemos ter em mente quando estivermos em um momento muito bom ou ruim? Como equilibrar?

Tem um ideia budista que eu nem coloquei no livro, mas que é interessante e diz o seguinte: “Isso também vai passar”, seja o que for. Então, se você está num momento ruim, você tem que entender que isso não é representativo da sua vida toda. É um momento, você tem outras coisas, outros parâmetros. Por exemplo: estou desempregado. Mas você também é pai, é mãe, você tem outras coisas importantes e não se restringe àquele parâmetro que está ruim; ele é um elemento da média de quem você é. Lembrar que você é um monte de coisa amplia um pouco a nossa ideia de quando não estamos em um momento muito bom.

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Agora, quando estamos em um momento muito bom, vem a ideia do carpe diem, do desfrutar o que a vida está te oferecendo hoje, não contar com o amanhã. E foi um pouco desvirtuado esse lema para a ideia de ‘mete o pé na jaca, porque você não sabe se vai estar vivo amanhã'. Mas não é isso. Tem coisas que só desabrocham e morrem muito rapidamente, e o que está desabrochando na sua frente hoje, você não sabe se vai estar amanhã.

Então, esteja atento, esteja conectado, esteja presente e desfrute o melhor do que você tem agora. Não conte com o amanhã, porque o amanhã é incerto. Se você está em um momento bom, sabendo que a vida oscila em torno de uma média, aproveita aquilo e, quando passar, você já sabia que ia passar.

A gente vive em uma sociedade que tem altos níveis de ansiedade, depressão, burnout, etc. A valorização da excelência coloca mais uma pressão para agravar esses quadros?

Eu acho que ela é a principal pressão, na verdade. Para mim, é muito curioso que “medíocre” seja ofensivo, porque somos todos nós. Por que é tão feio estar onde todos estamos, que é na média? E a resposta é que a gente hipervaloriza o resultado, a vitória ou a alta performance. Parece que é só isso que tem valor e é o desejado. E, a partir daí, todo o resto fica desprezado. Mas só tem um espaço no primeiro lugar, então o todo o resto é desprezível?

Quando a gente entra nessa lógica da alta performance, que é a que move a nossa sociedade, fica uma legião de pessoas frustradas, desanimadas, acreditando que não têm valor, que são derrotadas e numa busca infinita por um negócio que não tem para todo mundo.

A ideia de valorizar o meio termo não é exaltar a derrota, é simplesmente entender que ganhar é legal, que a medalha de ouro é uma delícia, mas não é a única coisa que tem valor na vida.

Existe uma filosofia japonesa chamada Wabi Sabi que fala sobre a valorização da imperfeição, inspirada na natureza. Eu sinto que ela pode também trazer uma lição dentro do Fugere Urbem. Você concorda?

Interessante, porque originalmente o Fugere Urbem fala sobre essa conexão de fato com a natureza, de como a cidade traz elementos aversivos, de desgaste emocional. E, claro, se a cidade fosse tão ruim, ela não estava cada vez maior. Então, tem coisas boas, mas o lema é um lembrete do preço que a gente está pagando por não se acostumar com o barulho, por não se acostumar com a luminosidade, com ausência de escuro, com a a falta de verde.

Agora, tem esse aspecto que você traz da natureza sendo um sistema mais imperfeito, mais caótico, mais imprevisível. Ela é um lembrete também de que a gente não tem controle das coisas, um alerta pra gente tirar um pouco o pé e aceitar mais as coisas como elas são. Acho que a natureza traz um pouco essa lição de humildade no final das contas.

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No livro, você fala que, para prestar atenção, não basta se livrar das distrações. Estar mais presente faz com que a vida tenha mais sentido?

Com muita frequência, nós entramos no modo automático, fazendo as coisas sem prestar atenção. Isso acontece para poupar energia – o cérebro consome muita energia, e empacotar as rotinas, agindo de modo automático, é uma forma de economizá-la. Só que, por outro lado, isso tira a nossa atenção e, consequentemente, empobrece a experiência, diminui a chance de aproveitar o momento e reduz a criação de memórias.

(Esse modo automático) É útil no caminho de casa para o trabalho e vice-versa, quando não estamos criando memórias, mas quando isso se espalha para a vida, ela fica empobrecida, anestesiada. Trabalhar ativamente contra isso requer gasto de energia e esforço. Mas só quando nos conectamos de fato é que a vida ganha seu sentido.

Você também fala para nos livrarmos do que é inútil. Mas, dentro de uma sociedade que impõe um padrão, como saber diferenciar o que é útil do que não é?

A gente tem essa tendência à insatisfação, parece que é sempre pouco, que a gente quer sempre mais, que nunca é o suficiente e, nesse contexto, qual é o filtro que a gente pode usar para encontrar o que realmente é útil, o que realmente eu posso abrir mão?

A gente logo pensa em bens e comprar coisas, mas isso tem muito a ver com o consumo de informação também. A gente tem um excesso que é intolerável para o nosso cérebro e inútil. Não tem sentido ter tanta informação assim porque você fica soterrado por elas e não faz nada com isso. E é difícil a gente ter um critério único para saber o que é útil ou não.

Eu proponho o critério do desfrutar, do aproveitar, de mergulhar mesmo naquilo que faz sentido para você, naquilo que te traz prazer ou crescimento, te aprimora como pessoa. A partir do momento em que gastamos tempo com as coisas e nos envolvemos, ficamos menos compulsivos.

Se você está desfrutando uma comida, você não fica compulsivamente se alimentando de tudo. Se você está curtindo um livro, você não está comprando mais um monte de livros ao mesmo tempo. Então, esse critério de desacelerar e se conectar com aquilo que você está consumindo, pode ser um bom filtro para separar o que é útil do que não é.

A partir do momento em que desaceleramos, temos a oportunidade de olhar para a gente e criar nossas médias ao invés de seguir uma média imposta?

Sim, esse movimento passa por isso de um autoconhecimento, de uma reflexão sobre si mesmo, levando em conta o que é importante para mim, com o que vou me conectar agora, o que eu vou desfrutar no momento, o que tem sentido para aquilo que eu quero construir, e até quem eu sou no fundo.

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É importante entender que a gente não deve ser reduzido a um parâmetro. Seja o valor do seu salário, a posição que está na empresa, você não é só isso. E é muito fácil escorregar, pensar que, se você não recebeu tal promoção você não é útil, né? Mas é importante entender que você é um monte de outras coisas.

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