A 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu parcialmente um pedido do Ministério Público e determinou que a Prefeitura da capital terá de duplicar a oferta de vagas em instituições de longa permanência para idosos (ILPI) de grau 3, destinadas àqueles em situação de vulnerabilidade. A administração municipal poderá ser multada em caso de descumprimento da decisão.
O município também terá de apresentar uma lista com os nomes de idosos internados em hospitais que já tiveram alta médica e estão no aguardo de uma vaga em ILPI, uma situação que coloca a saúde dessas pessoas em risco.

A Prefeitura afirma que foi notificada da decisão liminar e que “avalia constantemente mecanismos para a ampliação do número de vagas nas Instituições de Longa Permanência de Idosos grau 3”.
A denúncia do MP-SP, porém, revela que a Prefeitura mantém uma única ILPI grau 3 para atender toda a cidade. A unidade está localizada no bairro do Canindé e conta com apenas 60 vagas.
Os promotores destacam ainda que há uma demanda represada e que, desde 2023, a administração não fornece informações sobre a fila de espera. Pelos dados de março daquele ano, 245 idosos aguardavam vaga e, em setembro, 48 esperavam em leitos hospitalares — embora clinicamente tivessem recebido alta, eles não haviam recebido a “alta social”, que considera a necessidade de o paciente ter suporte emocional, psicológico e social para retomar a vida com independência e dignidade.
Ao Estadão, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMDS), disse que, além das 60 vagas para idosos do grau 3, também disponibiliza 570 para aqueles do grau 2 — em SP, a SMADS destaca que idosos do grau não são atendidos por ILPI. A pasta ainda afirmou que dobrou os recursos destinados às instituições, passando de R$18 milhões em 2020 para R$ 38 milhões em 2024. Pedimos dados atualizados sobre a fila de espera, que não foram fornecidos.
Segundo o MP, a capital paulista tem cerca de 2 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Considerando que, em média, cerca de 3% dos idosos costumam estar acamados, o que pode configurar o nível 3 de cuidado, são 60 mil indivíduos. “Pode aumentar (o número de vagas, conforme pedido pelo MP), mas ainda vai faltar”, pondera a geriatra Karla Giacomin, consultora da Organização Mundial de Saúde (OMS) para cuidados de longa duração.
Mas o quadro de desassistência não se restringe a São Paulo. Trata-se de um problema nacional. “A população que depende de cuidados de longa duração é invisível para o Poder Público. Eles não conseguem assistência em equipamentos e dispositivos disponibilizados pelo Poder Público”, afirma o geriatra Patrick Alexander Wachholz, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Cerca de 95% das ILPIs brasileiras são privadas. As mensalidades de algumas podem ultrapassar R$ 10 mil.
Há também um verdadeiro “vazio de informações” sobre a demanda por cuidados que dificulta a cobrança e a criação de políticas públicas efetivas, dizem os especialistas. Para se ter uma ideia, Wachholz fez parte de um grupo de pesquisadores que tentou avaliar as estratégias de quatro países latino-americanos — incluindo o Brasil — para atenuar o impacto da covid em ILPIs, mas que descobriu que os governos não dispunham de dados básicos.
“Em muitos países, não há um registro oficial sobre o número de ILPIs, sua localização, condições, número de residentes”, escreveram no artigo publicado na revista científica Geriatrics, Gerontology and Aging.
Segundo os especialistas, o cenário brasileiro seria ainda mais nebuloso sem a atuação dos MPs de alguns Estados. No Ceará, por exemplo, levantamento do promotor Alexandre Alcântara, da 1ª Promotoria de Justiça do Idoso e da Pessoa com Deficiência, apontou que quase 50 idosos permaneciam em leitos hospitalares enquanto aguardavam vagas em ILPIs em Fortaleza.
A prefeitura da capital cearense assinou então o contrato para criação da primeira instituição municipal de cuidados de longa permanência para idosos. Embora o documento, firmado em 30 de dezembro, preveja a abertura de 100 vagas, Alcântara relata que os idosos seguem sem um local adequado enquanto ocorre o processo de licitação.
“Esse problema é comum a todas as capitais”, fala Alcântara, que também é conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI).
O Brasil vive hoje uma crise de falta de cuidado de pessoas idosas.
Alexandre Alcântara, promotor de justiça e conselheiro do CNDPI
O Estadão entrou em conta com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para que comentasse sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação.
Moradores de leitos hospitalares
Para os especialistas, a situação daqueles que esperam em leitos hospitalares é particularmente grave. “O hospital é um ambiente completamente hostil para a pessoa idosa. Você só deve ir ao hospital em caso de extrema necessidade. É um local ‘infectado’”, afirma Karla.
Com a idade, perdemos um pouco da capacidade de sintetizar e mobilizar os elementos de defesa, como anticorpos, e nossas respostas se tornam mais lentas e inespecíficas, num processo conhecido como imunossenescência. Como resultado, ficamos mais suscetíveis a quadros infecciosos e ao agravamento deles.
Além do risco de infecção, a situação é disfuncional sob outro ponto de vista. “A pessoa que já recebeu alta ocupa uma vaga que poderia ser usada por alguém que precisa (ser internado)”, aponta Alcântara.
E a situação pode se estender por meses. Marisa Accioly, professora de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP), conta que acompanhou vários casos quando atuava como assistente social no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “O último ficou mais de três meses no HC, aguardando vaga.”
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Ela relembra o drama das famílias. “Muitos familiares também têm uma situação de vida muito precária em relação à moradia e à renda. Eles ficam angustiados de saber que, sem um serviço público, vai ser muito difícil para eles prestar o cuidado”.
Em Fortaleza, relata Alcântara, muitos dos idosos internados têm um rompimento de laços familiares ou vivem em situação de rua.
O que são cuidados de grau 3?
Uma instituição de longa permanência é a residência da pessoa idosa, explica Marisa. “Quem está lá não é um paciente, é um residente”. No entanto, como muitos chegam com a saúde debilitada, é um espaço destinado a prestar suporte e cuidados adequados para que eles possam viver com dignidade e, na medida do possível, independência.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) criou uma recomendação sobre o funcionamento das ILPIs na qual propõe uma classificação dos residentes conforme o grau de dependência — algumas cidades, como SP, têm legislações específicas, que podem diferir da Anvisa. São eles:
- grau 1: idosos independentes, mesmo que requeiram uso de equipamentos de auto-ajuda (como bengala, andador ou aparelho auditivo);
- grau 2: idosos com dependência em até três atividades de autocuidado para a vida diária (tais como alimentação, mobilidade ou higiene); sem comprometimento cognitivo ou com alteração cognitiva controlada;
- grau 3: idosos com dependência que requeiram assistência em todas as atividades de autocuidado para a vida diária e/ou com comprometimento cognitivo (a exemplo de pacientes com demência).
A depender do grau, há exigências específicas, especialmente em relação aos recursos humanos. Por exemplo: é necessário um cuidador para cada 20 idosos do grau 1; um para cada 10 pacientes do grau 2; e um para cada 6 do grau 3.
A Justiça determinou que a Prefeitura de SP providencie, no prazo de 90 dias, o número mínimo de 30 vagas para pacientes do grau 3 e, no prazo de 180 dias, mais 30.
Nesse sentido, Marisa e Wachholz, embora reconheçam a urgência de providenciar vagas para os idosos na espera, destacam que é preciso garantir a qualidade do atendimento. Será preciso, além de aumentar as equipes, fornecer treinamento adequado.
Vácuo regulatório
Segundo os entrevistados, instituições reservadas apenas a pacientes de determinado grau são uma realidade paulistana. No contexto brasileiro, há uma grande heterogeneidade na configuração desses lares.
A recomendação da Anvisa classifica os residentes, mas há um vácuo regulatório sobre como deve ser uma ILPI somente para pacientes do grau 1, 2 ou 3. Segundo Wachholz, não está claro nem mesmo o que aconteceria com um residente que, devido a alguma complicação, viesse a evoluir no grau de dependência.
O próprio conceito de ILPI usado na recomendação da Anvisa, para Wachholz, dificulta a criação e a regulação de ILPIs de grau 3. “As ILPIs são instituições sociais de abrigamento coletivo, e não de saúde. Mas quando falamos de pessoas idosas que têm um grau de dependência funcional, invariavelmente, temos que prestar serviços de saúde”, explica.
Também há problemas no encaminhamento e no financiamento. Quem determina se uma pessoa idosa preenche os requisitos para vaga é o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), segundo Karla. “Na lei do SUAS, porém, está dito que os idosos só podem ir para essas instituições de forma excepcional e provisória”, diz.
Em relação aos recursos financeiros, Karla afirma que o governo federal repassa, via SUAS, R$ 72 por mês, por idoso, para ILPIs em metrópoles. “Eu te dou um idoso inteiro para você tomar conta dele, todos os dias, com R$ 72″, critica.
Outra dificuldade é a imprevisibilidade: a família tem pouco controle sobre o local onde a vaga será oferecida. “Se a vaga aparecer em tal lugar, vai para tal lugar”, afirma Karla. Uma mudança nesse processo permitiria à família escolher um local que facilitasse visitas e não distanciasse o idoso de sua comunidade.
Maioria das cidades não tem sequer uma ILPI
De maneira geral, o número de ILPIs tem crescido no Brasil, num movimento puxado pelo setor privado. Wachholz, Karla e Marisa participaram de um estudo publicado em 2021 na Geriatrics, Gerontology and Aging que estimava mais de 7 mil casas registradas e não registradas no País.
No entanto, 64% dos municípios não possuem nenhuma ILPI. Além disso, de acordo com Karla, apenas 5% das instituições são públicas — vale lembrar que uma parcela das unidades particulares tem convênios com o Poder Público.
Segundo Wachholz, em Estados como Roraima, Pará e Amazonas houve inclusive uma redução no número de instituições públicas, em comparação com um levantamento publicado em 2010 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A expansão rápida de unidades privadas, especialmente sem alvará, preocupa pela dificuldade de fiscalização e garantia de qualidade. Em março, a atuação da equipe de Alcântara levou à interdição, em Fortaleza, de uma instituição sem alvará na qual foram constatadas condições inadequadas de abrigamento.
Esses casos, porém, não devem alimentar um preconceito contra ILPIs, dizem os entrevistados. Num Brasil que envelhece a passos largos, elas têm um papel importante no cuidado de pessoas idosas. “Ter preconceito com a instituição não melhora a instituição”, frisa Karla.
Nosso destino comum
Os especialistas ressaltam que as ILPIs são só uma face da política de cuidados que precisa ser pautada e efetivada.
Há outras opções de cuidado, como os centros-dia, que recebem idosos durante o dia para compartilhar o cuidado com as famílias, e que precisam ser expandidos; além da possibilidade de oferecer subsídios para as famílias que decidem manter o parente em casa, como ocorre no Chile e Uruguai. Diante de uma transformação também das configurações familiares, com menos ou nenhum filho, falar sobre ILPIs será inevitável, destacam os especialistas.
“Existem estudos no Brasil que demonstram que 24% das pessoas que cuidam de idosos precisam parar de trabalhar ou de estudar para cuidar”, fala Karla. Isso pode comprometer a renda familiar e, consequentemente, a própria qualidade do cuidado prestado. O cuidado, porém, tem sobrecarregado de forma desproporcional as mulheres, conforme diagnóstico do próprio governo federal. “Assim, estamos comprometendo também o envelhecer da próxima geração”, alerta.
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Em dezembro, a Presidência da República sancionou a Política Nacional de Cuidados, que define os idosos como uma população prioritária. Mas, sem conseguirem identificar movimentos para a efetivação da política e com a falta de dotação orçamentária para ela, os especialistas temem que se torne uma “lei simbólica”.
Em meio a esse cenário de incertezas políticas e de certeza do envelhecimento populacional — a estimativa do IBGE é de que, em 2070, 37,8% da população brasileira seja composta por idosos —, eles apontam que a sociedade precisa se engajar no debate sobre os cuidados de longa duração. “Quanto mais pessoas envelhecidas a gente tiver, maior vai ser a possibilidade de que elas envelheçam com algum grau de dependência funcional. Se não tivermos um sistema de cuidado, mais difícil vai ser”, alerta Wachholz.
“Todos nós queremos envelhecer bem, com saúde, ativamente, mas eu tenho que ter uma sociedade preparada para cuidar de quem não envelheceu assim”, defende Karla.