Durante o pré-natal, Martha pede um minuto para a enfermeira, saca um smartphone da bolsa e começa a gravar o coraçãozinho do bebê. Terminado o exame, a primeira coisa que faz é compartilhar o áudio com o pai da criança, Ash. “É tão rápido, não é?”, espanta-se o rapaz. Martha está tão eufórica que deixa o celular cair no chão. E cai no choro quando ele se espatifa. Ao chegar em casa, tão logo o aparelho volta a funcionar, pede desculpas ao namorado: “Derrubei você…”, choraminga. “Está tudo bem. Não vou a lugar nenhum”, responde.
A cena acima é do episódio Volto Já (Be Right Back, no original), o primeiro da segunda temporada de Black Mirror, exibida em 2013. Escrita por Charlie Brooker, o criador da série britânica de ficção científica, a história antecipa a chamada tecnologia do luto, quando os vivos recorrem à inteligência artificial (IA) para interagir com os mortos. Não parece, mas Ash, o namorado de Martha, morreu semanas antes do exame pré-natal, em um acidente de carro. E ela, por indicação de uma amiga, decidiu “ressuscitá-lo” digitalmente.
“A tecnociência atual é impulsionada não tanto para melhorar as condições da vida humana, mas para ultrapassar os limites da vida humana. No Ocidente, temos dificuldade para lidar com a finitude”, afirma Maria Cristina Franco Ferraz, doutora em Filosofia pela Universidade de Paris I-Sorbonne e coautora do livro Para Além de Black Mirror – Estilhaços Distópicos do Presente (N-1, 2020). “Perdas e mortes fazem parte da experiência humana”.
Nos Estados Unidos, já existem startups de IA que, a exemplo daquela retratada em Black Mirror, têm a proposta de ajudar os usuários a lidar com a morte de amigos e familiares. A StoryFile, com sede em Los Angeles, na Califórnia, é uma delas. Quem acessa seu site dá de cara com o simpático ator canadense William Shatner, de 93 anos. Por ocasião de seu aniversário de 90 anos, o eterno capitão James Kirk da franquia Jornada nas Estrelas (Star Trek) passou quatro dias na sede da empresa respondendo a mais de 600 perguntas.
Hoje, qualquer fã do ator pode perguntar o que quiser ao avatar dele. Quando Shatner partir (toc-toc-toc), seus netos poderão “interagir” com o avô através de bate-papos virtuais. “Uma ótima história pode responder a centenas de perguntas”, explica Valorie Jones, diretora de tecnologia da StoryFile.
Tudo começou, ela conta, em 2010, quando trabalhava no Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade do Sul da Califórnia (USC) e foi apresentada à Fundação Shoah, fundada pelo cineasta Steven Spielberg em 1994 para coletar testemunhos de sobreviventes do Holocausto. Logo, ela teve a ideia de registrar esses depoimentos em vídeo e, em seguida, disponibilizá-los para museus do país inteiro. Sete anos depois, fundou a StoryFile.
“Clonar sua avó é fácil. Já existe tecnologia para recriar tanto a sua voz quanto a sua aparência. Difícil é convencer as pessoas a dedicar algumas horas do dia para se conectar com entes queridos enquanto eles ainda estão vivos”, avisa. “Amanhã, pode ser tarde demais”.
Ainda não existem no Brasil startups como StoryFile, HereAfter AI e You, Only Virtual que, através de mensagens de texto, chamadas de vídeo ou interações holográficas, ajudam os que ficaram a dar um último adeus para os que partiram. Mas, se existissem, Lucinha Araújo, de 88 anos, não sabe dizer se contrataria os serviços delas para matar as saudades do marido, o produtor musical João Araújo (1935-2013), e do filho, o cantor e compositor Agenor de Miranda Araújo Neto (1958-1990), o Cazuza.
“Não há inteligência artificial que seja capaz de superar a perda de um marido ou de um filho”, garante a fundadora da Sociedade Viva Cazuza. “O luto existe e, por mais doloroso que seja, é preciso enfrentá-lo.”
No Brasil, um dos primeiros livros a refletir sobre o tema é Legado Digital – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital (Appris, 2023). Sua autora, a psicóloga clínica Nazaré Jacobucci, mestre em Cuidados Paliativos pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, explica que o luto não é um obstáculo a ser superado e, sim, uma experiência a ser vivida. E que, mais cedo ou mais tarde, todos nós, sem exceção, teremos de vivê-lo.
Por essa razão, ela pondera que, se o enlutado recorre a uma interação virtual qualquer, é porque ainda não assimilou sua perda. “Por mais difícil que seja, disfarçar ou tentar alterar o vazio deixado pela ausência física de quem se ama pode ser perigoso porque adia o enfrentamento de algo inevitável: a morte”, adverte.
Especialistas em luto admitem que o recurso até pode ser benéfico em casos específicos de morte repentina ou violenta, mas ressaltam: com o devido suporte psicológico e por pouco tempo.
“Quando perdemos alguém que amamos, aprendemos a conjugar o tempo no passado, presente e futuro. O que temos visto em relação à IA é que essa conjugação deixa de existir”, alerta a psicóloga Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (LELU), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e diretora científica da Associação Brasileira Multiprofissional sobre o Luto (ABMLuto). “O luto só é saudável quando o enlutado vive a perda, mas segue adiante. Movimento, sim; estagnação, nunca!”
A psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre a Morte (LEM), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), concorda com Nazaré quando diz que o luto não se supera nunca. Na melhor das hipóteses, aprende-se a aceitá-lo ou a conviver com ele. E faz uma consideração importante: o luto é um processo individual. Não existe o jeito certo ou errado de vivê-lo. Cada um tem o seu.
“Por mais fiel que seja ao original, o simulacro será sempre um simulacro. Não é, nem nunca será, a pessoa amada que se foi”, alerta Maria Júlia. “Se causar dependência emocional, pode causar sofrimento em vez de trazer alívio.”
A psicóloga clínica Mariana Magalhães, uma das organizadoras do livro Lutos (Summus, 2024), que ouviu o relato de enlutados famosos como o cantor Gilberto Gil, a médica Margareth Dalcolmo e a vereadora Mônica Benício, chama a atenção para o perigo do uso da IA – seja em episódios de luto ou não.
Ela cita o caso de um adolescente que tirou a própria vida nos Estados Unidos depois de se apegar emocionalmente a uma personagem da série Game of Thrones, Daenerys Targaryen, recriada por IA. Apaixonado por “Dany”, como chamava carinhosamente o chatbot, o jovem parou de jogar basquete ou de assistir à Fórmula 1. Sua mãe processou a startup Character.AI por homicídio culposo e negligência.
“O uso de uma tecnologia que cria a falsa sensação de que se está em contato com alguém que morreu me parece bastante delicado. A interação não ocorre com a pessoa que morreu, mas com uma máquina que reproduz seu comportamento. Não há como controlar, por exemplo, o que será dito por essa máquina”, ressalta Mariana. “Há outros problemas, como reproduzir falas e imagens sem o consentimento de quem morreu”.
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Presidente da Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases), Terezinha Guedes Máximo reconhece que, no curto prazo, interagir com a versão digital de quem morreu pode até parecer benéfico – afinal, oferece uma sensação temporária de conforto. Mas, no longo prazo, pode dificultar o enfrentamento da realidade e trazer prejuízos à saúde mental.
“Não acredito que a IA possa resolver assuntos pendentes. Quando uma pessoa morre, leva consigo respostas, segredos e projetos”, afirma. “No caso do suicídio, uma das perguntas mais recorrentes é: ‘Por que aquilo aconteceu?’. A IA pode até sugerir hipóteses, mas nunca vai apresentar soluções”.
No futuro, interagir com o avatar de quem partiu pode ajudar quem ficou a aceitar sua perda e a viver seu luto. Por enquanto, nada melhor do que levar flores ao túmulo, ouvir sua música favorita ou rever fotos antigas.
“Não querer sentir dor ou sofrimento é algo próprio do ser humano. Não seria diferente quando se perde alguém”, observa a psicóloga Samantha Mucci, coordenadora do Programa de Acolhimento ao Luto (Proalu), do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O importante é não julgar. Em vez de julgamento, o enlutado precisa de acolhimento. Vamos demonstrar que não está sozinho.”
Onde buscar ajuda
Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:
Centro de Valorização da Vida (CVV)
Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.
Canal Pode Falar
Iniciativa criada pela Unicef para oferecer escuta para adolescentes de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.
SUS
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.
Mapa da Saúde Mental
O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.
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