Startups de IA oferecem ‘contato’ com pessoas mortas; especialistas em luto levantam preocupações

Tecnologia pode ser benéfica em alguns casos, mas há o risco de dificultar o enfrentamento da perda

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Por André Bernardo

Durante o pré-natal, Martha pede um minuto para a enfermeira, saca um smartphone da bolsa e começa a gravar o coraçãozinho do bebê. Terminado o exame, a primeira coisa que faz é compartilhar o áudio com o pai da criança, Ash. “É tão rápido, não é?”, espanta-se o rapaz. Martha está tão eufórica que deixa o celular cair no chão. E cai no choro quando ele se espatifa. Ao chegar em casa, tão logo o aparelho volta a funcionar, pede desculpas ao namorado: “Derrubei você…”, choraminga. “Está tudo bem. Não vou a lugar nenhum”, responde.

A cena acima é do episódio Volto Já (Be Right Back, no original), o primeiro da segunda temporada de Black Mirror, exibida em 2013. Escrita por Charlie Brooker, o criador da série britânica de ficção científica, a história antecipa a chamada tecnologia do luto, quando os vivos recorrem à inteligência artificial (IA) para interagir com os mortos. Não parece, mas Ash, o namorado de Martha, morreu semanas antes do exame pré-natal, em um acidente de carro. E ela, por indicação de uma amiga, decidiu “ressuscitá-lo” digitalmente.

Na tecnologia do luto, utiliza-se inteligência artificial para "recriar" pessoas que morreram Foto: Marco/Adobe Stock

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“A tecnociência atual é impulsionada não tanto para melhorar as condições da vida humana, mas para ultrapassar os limites da vida humana. No Ocidente, temos dificuldade para lidar com a finitude”, afirma Maria Cristina Franco Ferraz, doutora em Filosofia pela Universidade de Paris I-Sorbonne e coautora do livro Para Além de Black Mirror – Estilhaços Distópicos do Presente (N-1, 2020). “Perdas e mortes fazem parte da experiência humana”.

Nos Estados Unidos, já existem startups de IA que, a exemplo daquela retratada em Black Mirror, têm a proposta de ajudar os usuários a lidar com a morte de amigos e familiares. A StoryFile, com sede em Los Angeles, na Califórnia, é uma delas. Quem acessa seu site dá de cara com o simpático ator canadense William Shatner, de 93 anos. Por ocasião de seu aniversário de 90 anos, o eterno capitão James Kirk da franquia Jornada nas Estrelas (Star Trek) passou quatro dias na sede da empresa respondendo a mais de 600 perguntas.

Hoje, qualquer fã do ator pode perguntar o que quiser ao avatar dele. Quando Shatner partir (toc-toc-toc), seus netos poderão “interagir” com o avô através de bate-papos virtuais. “Uma ótima história pode responder a centenas de perguntas”, explica Valorie Jones, diretora de tecnologia da StoryFile.

O ator canadense William Shatner, de 93 anos, gravando com a IA StoryFile Foto: Divulgação StoryFile

Tudo começou, ela conta, em 2010, quando trabalhava no Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade do Sul da Califórnia (USC) e foi apresentada à Fundação Shoah, fundada pelo cineasta Steven Spielberg em 1994 para coletar testemunhos de sobreviventes do Holocausto. Logo, ela teve a ideia de registrar esses depoimentos em vídeo e, em seguida, disponibilizá-los para museus do país inteiro. Sete anos depois, fundou a StoryFile.

“Clonar sua avó é fácil. Já existe tecnologia para recriar tanto a sua voz quanto a sua aparência. Difícil é convencer as pessoas a dedicar algumas horas do dia para se conectar com entes queridos enquanto eles ainda estão vivos”, avisa. “Amanhã, pode ser tarde demais”.

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Ainda não existem no Brasil startups como StoryFile, HereAfter AI e You, Only Virtual que, através de mensagens de texto, chamadas de vídeo ou interações holográficas, ajudam os que ficaram a dar um último adeus para os que partiram. Mas, se existissem, Lucinha Araújo, de 88 anos, não sabe dizer se contrataria os serviços delas para matar as saudades do marido, o produtor musical João Araújo (1935-2013), e do filho, o cantor e compositor Agenor de Miranda Araújo Neto (1958-1990), o Cazuza.

“Não há inteligência artificial que seja capaz de superar a perda de um marido ou de um filho”, garante a fundadora da Sociedade Viva Cazuza. “O luto existe e, por mais doloroso que seja, é preciso enfrentá-lo.”

No Brasil, um dos primeiros livros a refletir sobre o tema é Legado Digital – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital (Appris, 2023). Sua autora, a psicóloga clínica Nazaré Jacobucci, mestre em Cuidados Paliativos pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, explica que o luto não é um obstáculo a ser superado e, sim, uma experiência a ser vivida. E que, mais cedo ou mais tarde, todos nós, sem exceção, teremos de vivê-lo.

Por essa razão, ela pondera que, se o enlutado recorre a uma interação virtual qualquer, é porque ainda não assimilou sua perda. “Por mais difícil que seja, disfarçar ou tentar alterar o vazio deixado pela ausência física de quem se ama pode ser perigoso porque adia o enfrentamento de algo inevitável: a morte”, adverte.

O avatar do ator canadense William Shatner, de 93 anos, criado pela empresa StoryFile.  Foto: Divulgação StoryFile

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Especialistas em luto admitem que o recurso até pode ser benéfico em casos específicos de morte repentina ou violenta, mas ressaltam: com o devido suporte psicológico e por pouco tempo.

“Quando perdemos alguém que amamos, aprendemos a conjugar o tempo no passado, presente e futuro. O que temos visto em relação à IA é que essa conjugação deixa de existir”, alerta a psicóloga Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (LELU), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e diretora científica da Associação Brasileira Multiprofissional sobre o Luto (ABMLuto). “O luto só é saudável quando o enlutado vive a perda, mas segue adiante. Movimento, sim; estagnação, nunca!”

A psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre a Morte (LEM), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), concorda com Nazaré quando diz que o luto não se supera nunca. Na melhor das hipóteses, aprende-se a aceitá-lo ou a conviver com ele. E faz uma consideração importante: o luto é um processo individual. Não existe o jeito certo ou errado de vivê-lo. Cada um tem o seu.

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“Por mais fiel que seja ao original, o simulacro será sempre um simulacro. Não é, nem nunca será, a pessoa amada que se foi”, alerta Maria Júlia. “Se causar dependência emocional, pode causar sofrimento em vez de trazer alívio.”

A psicóloga clínica Mariana Magalhães, uma das organizadoras do livro Lutos (Summus, 2024), que ouviu o relato de enlutados famosos como o cantor Gilberto Gil, a médica Margareth Dalcolmo e a vereadora Mônica Benício, chama a atenção para o perigo do uso da IA – seja em episódios de luto ou não.

Ela cita o caso de um adolescente que tirou a própria vida nos Estados Unidos depois de se apegar emocionalmente a uma personagem da série Game of Thrones, Daenerys Targaryen, recriada por IA. Apaixonado por “Dany”, como chamava carinhosamente o chatbot, o jovem parou de jogar basquete ou de assistir à Fórmula 1. Sua mãe processou a startup Character.AI por homicídio culposo e negligência.

“O uso de uma tecnologia que cria a falsa sensação de que se está em contato com alguém que morreu me parece bastante delicado. A interação não ocorre com a pessoa que morreu, mas com uma máquina que reproduz seu comportamento. Não há como controlar, por exemplo, o que será dito por essa máquina”, ressalta Mariana. “Há outros problemas, como reproduzir falas e imagens sem o consentimento de quem morreu”.

Presidente da Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases), Terezinha Guedes Máximo reconhece que, no curto prazo, interagir com a versão digital de quem morreu pode até parecer benéfico – afinal, oferece uma sensação temporária de conforto. Mas, no longo prazo, pode dificultar o enfrentamento da realidade e trazer prejuízos à saúde mental.

“Não acredito que a IA possa resolver assuntos pendentes. Quando uma pessoa morre, leva consigo respostas, segredos e projetos”, afirma. “No caso do suicídio, uma das perguntas mais recorrentes é: ‘Por que aquilo aconteceu?’. A IA pode até sugerir hipóteses, mas nunca vai apresentar soluções”.

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No futuro, interagir com o avatar de quem partiu pode ajudar quem ficou a aceitar sua perda e a viver seu luto. Por enquanto, nada melhor do que levar flores ao túmulo, ouvir sua música favorita ou rever fotos antigas.

“Não querer sentir dor ou sofrimento é algo próprio do ser humano. Não seria diferente quando se perde alguém”, observa a psicóloga Samantha Mucci, coordenadora do Programa de Acolhimento ao Luto (Proalu), do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O importante é não julgar. Em vez de julgamento, o enlutado precisa de acolhimento. Vamos demonstrar que não está sozinho.”

Onde buscar ajuda

Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar

Iniciativa criada pela Unicef para oferecer escuta para adolescentes de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

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SUS

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

Mapa da Saúde Mental

O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

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