RIO - Militar da reserva e atleta paralímpica, a canadense Christine Gauthier, de 52 anos, pede a instalação de rampas de acesso para cadeiras de rodas em sua casa há cinco anos. Como não conseguiu o benefício, mas insistia no pedido, o Departamento de Assuntos de Veteranos sugeriu que ela recorresse à lei do suicídio assistido, “já que estava tão desesperada”. Desde a edição da norma, em 2016, mais de 30 mil pessoas fizeram o mesmo no Canadá: mataram-se com assistência médica, sob amparo da lei. Em 2021, mais de 3% dos óbitos no país foram desse tipo.
A lei que regulamenta o suicídio assistido no Canadá é considerada uma das mais abrangentes do mundo. Na maioria dos países que legarizaram a prática, ela só é autorizada para pacientes com doenças terminais. Já em território canadense, desde março do ano passado, ela se estende a pessoas com deficiência ou que sofrem com fortes dores.
Este ano, também em março, a lei deve ser ainda mais ampliada, para abarcar pessoas com problemas como depressão. Além disso, já está em discussão a possibilidade de a lei chegar ainda a menores não emancipados que sejam considerados maduros o suficiente para escolher o tratamento de saúde ao qual querem ser submetidos.
“Estamos acompanhando as investigações e alterando protocolos para garantir o que parece óbvio para todos nós: não cabe ao Departamento de Assuntos de Veteranos, que deveria apoiar as pessoas que se alistaram para servir a seu país, oferecer assistência médica para a morte”, disse o primeiro-ministro do país, Justin Trudeau. “Isso é inaceitável.”
Suicídio por pobreza
O caso de Christine não é comum, mas tampouco é único.
O aposentado canadense Les Landry, de 65 anos, conseguiu a autorização de pelo menos um médico (são necessários dois) para recorrer ao suicídio assistido porque tem medo de se tornar um sem-teto.
Landry é paraplégico e sofre de diabete, o que o qualifica para fazer o pedido, mas admite que a pobreza foi o fator primordial na decisão de pôr fim à própria vida. Ele chegou a dizer que “não queria morrer”, mas não tinha condições financeiras para viver dignamente com o dinheiro da aposentadoria.
Os casos de Landry e Christine ganharam espaço na mídia canadense e internacional e abriram nova discussão sobre os limites da eutanásia. Será que o governo canadense não deveria ajudar os dois a viver com dignidade em vez de prestar assistência para que morram? Será que a abrangência cada vez maior da lei não acabaria por estimular o suicídio? E outra: pessoas que sofrem com transtornos mentais têm discernimento para tomar tal decisão?
Os defensores da legislação alegam que a lei está poupando de intenso sofrimento e dores excruciantes pessoas gravemente doentes. No ano passado, o premiado cineasta francês Jean Luc Godard, de 91 anos, recorreu ao procedimento na Suíça, um dos locais mais buscados para esse tipo de prática.
Os críticos, por outro lado, dizem que a liberalização excessiva da legislação desvaloriza experiências de vida significativas de pessoas com deficiência e oferece ao estado uma maneira fácil de se abster de suas obrigações com seus cidadãos mais vulneráveis.
“Não quero fazer generalização, nem minimizar o problema, mas essas situações correspondem exatamente àquilo que o magistério da Igreja sempre teve medo em relação à legislação pró-eutanásia: criar precedentes nos quais situações que poderiam ser trabalhadas de outras formas deixam de ser, porque a eutanásia aparece como a solução mais fácil”, diz o coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto.
O desembargador Diaulas Costa Ribeiro, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, especialista em bioética médica e membro da Comissão de Terminalidade de Vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), pensa de forma diferente.
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“Esses casos extremos são pontuais e ocorrem em outros lugares também”, afirma. “O problema é a hipocrisia. Precisamos lembrar da mistanásia, que é a morte de miseráveis, todos os dias, por falta de tudo, inclusive de assistência médica. Sabemos que pessoas morrem de fome e nada é feito.”
Já a advogada Luciana Dadalto, uma das maiores especialistas do País no tema, apresenta uma terceira forma de ver a questão. “O Canadá tem uma compreensão mais elástica do direito à morte digna, que não se restringe a uma doença terminal”, afirma ela, autora do livro Testamento Vital.
“O problema são as notícias recentes de pessoas recebendo ofertas de morte assistida, o que tira completamente a lógica da defesa da eutanásia e do suicídio assistido. A lógica é que seja uma escolha, não algo a ser ofertado por médicos para pessoas com deficiência física ou em situação de rua. Há uma linha muito tênue entre a morte assistida e uma situação em que é mais barato para o Estado facilitar a morte de pessoas do que cuidar delas. Esse é o grande gargalo do Canadá hoje”, diz.
Desde 2016, suicídios foram de mil a 10 mil por ano
Desde que a legislação passou a valer no Canadá, em 2016, o número anual de mortes por suicídio assistido saltou de 1.018 no primeiro ano para 10.064 em 2021 – o que representou 3,3% de todas as mortes no país no ano retrasado. Os números são de um relatório divulgado pelo próprio governo. Nesses seis anos de vigência da legislação, 31.664 pessoas morreram com assistência médica. O número excede o de 30.281 mortes por covid-19 no Canadá, em 2020 e 2021.
A despeito dos casos que ganharam as manchetes e reabriram a discussão sobre os limites do suicídio assistido, o relatório mostra que a maioria das pessoas (65,6%) que recorreram à prática em 2021 tinham câncer. Outros 18,7% sofriam de doenças cardiovasculares, além de moléstias respiratórias crônicas (12,0%) e doenças neurológicas (12,7%).
Apenas 2,2% das pessoas mortas com assistência médica naquele ano não tinham doenças terminais. Mesmo assim, 45,7% sofriam de doenças neurológicas graves.
No Brasil, as práticas de suicídio assistido, assim como de eutanásia (entenda a diferença entre as práticas na página seguinte) são consideradas crimes, o que se soma à condenação moral promovida por religiosos quanto à prática. A eutanásia (quando um médico administra o remédio letal ao paciente) é considerada homicídio simples. O suicídio assistido (quando o próprio paciente toma a droga indicada para morrer) é um crime contra a vida, descrito no artigo 122 como o ato “de induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar auxílio para que o faça”.
O suicídio assistido é legal em mais países, como Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Espanha e Colômbia, além de alguns Estados dos Estados Unidos. Em geral ele só pode ser requerido em casos de doenças terminais ou incuráveis, que gerem sofrimento insuportável ao paciente.
“A questão é mais cultural do que jurídica, portanto o problema não será resolvido mudando a legislação”, afirma Francisco Borba Ribeiro Neto. “O problema de fundo é que não sabemos conviver com a própria morte ou a morte de entes queridos, em decorrência de vivermos em uma sociedade que adquiriu uma série de poderes em relação ao bem-estar, mas não a sabedoria para se relacionar com esses poderes. Não temos a resiliência necessária para trabalhar de forma sábia com a situação. Diante disso, algumas legislações vão criar um tipo de problema e, outras, diferentes problemas.”
Eutanásia
A palavra vem do grego e significa “boa morte”. A eutanásia consiste na aplicação de uma dose letal de algum remédio por um médico que esteja acompanhando o tratamento de um paciente em estado terminal, sem perspectiva de melhora.
Suicídio assistido
Na morte assistida, é o próprio paciente que toma o remédio letal. É usado na maioria das vezes também por pacientes em estado terminal, que sofrem de doenças incuráveis.
Ortotanásia
Neste caso, não se trata de adiantar a morte. Mas tampouco adiá-la. A prática indica que, em casos terminais, sem prognóstico de cura, não se apliquem esforços terapêuticos inúteis.
Distanásia
A prática é também chamada de obstinação terapêutica. Quando não há prognóstico de cura para o paciente, mas, mesmo assim, sua vida é prolongada artificialmente com aparelhos e medicamentos.
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