Técnica milenar, com registros desde 4 mil anos a.C., as tatuagens podem ter diversos significados. Marcar a pele com tinta pode ser uma questão cultural, significar pertencimento ou ser apenas uma forma de decorar o corpo. No entanto, a arte de desenhar a pele engloba outros contornos, ligados à autoestima e a deixar marcas dolorosas do passado para trás – como para disfarçar cicatrizes ou reconstruir a aréola de mulheres mastectomizadas.
“As marcas contam histórias e a arte vem para embelezar e trazer segurança nos pontos que a cliente precisa, inclusive para mostrar que a sua beleza e força transcendem seus medos”, conta a tatuadora Raquel Gauthier. Desde 2018, ela se tornou especialista em tatuar locais do corpo com cicatrizes em seu estúdio em São Paulo – desde estrias e queimaduras a cicatrizes cirúrgicas ou acidentais.
O movimento, que começou a crescer nos últimos quatro anos no Brasil, mais do que apagar ou esconder as imperfeições busca ressignificar histórias. “As cicatrizes podem ser provenientes de diversas situações. A maioria delas vai de encontro com o padrão estético pregado ao longo dos anos. Isso faz com que as pessoas tenham uma grande dificuldade em lidar com as marcas, seja pelo significado delas, seja por simplesmente não gostarem do que veem”, explica a psicóloga Anna Flávia Lima. “Então, fisicamente falando, fazer qualquer tipo de correção acaba tendo um potencial de melhora muito grande.”
A relação do amor-próprio está ligada com a qualidade de vida e pode ter impactos na parte física e emocional. A estudante de psicologia Thais Aguirre, de 21 anos, sabe bem disso. Há dois anos diagnosticada com transtorno de personalidade borderline, a automutilação se tornou parte de sua vida desde os 13 anos. Com o tempo, os cortes viraram cicatrizes profundas em seus antebraços.
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“Como já havia tantos cortes em meu braço, era quase um gatilho para mim me machucar mais. Hoje eu não tenho coragem de estragar o desenho”, diz ela, que há dois anos desenhou flores sobre as marcas. “Comecei a me exibir para todo mundo porque eu pensava que o desenho da Raquel era muito bonito para ficar escondido. E aí com o tempo comecei a pensar que eu também era muito bonita para ficar escondida.”
Conforme a psicóloga Anna Flávia Lima explica, a cicatriz não é somente uma marca física, mas psicológica. “Além de lidar com toda a lembrança de um sofrimento que um dia viveu, ela ainda passa a ter de lidar com as marcas que ficaram nela. E a se reconectar com essa nova versão.”
Micropigmentação para casos de câncer de mama
Em 2017, depois de um exame de rotina, a coaching Gisele Gengo, de 47 anos, descobriu um câncer na mama esquerda. “Durante todo o tratamento, a gente esquece quem a gente é”, afirma. “O câncer sempre foi uma doença muito presente na minha vida. Meus avós, meu pai e meu sobrinho faleceram de câncer. Mas quando é você, o chão some.”
As respostas do seu corpo à quimioterapia e à radioterapia, assim como sua cirurgia de mastectomia, foram boas e, em pouco tempo, ela se curou. No entanto, ainda não se sentia como antes do diagnóstico. “Foi bem desafiador o processo. Demorei muito para conseguir me olhar no espelho depois da cirurgia. Ter a sensação de plenitude para mim era importante.”
Assim, ela optou pela reconstrução da mama e da aréola. A cirurgia reparadora é um direito garantido para as pacientes com câncer, tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto nos planos de saúde, mas a reconstrução da aréola e do mamilo pode ser mais burocrática. Por isso, muitos projetos e profissionais se dispõem a fazer o procedimento gratuitamente, como é o caso da Sabrina Beauty Innovation.
A reconstrução pode ser feita por cirurgia, que retira pedaços de pele para dar forma ao novo mamilo, por tatuagem ou por micropigmentação. “É inexplicável ver a reação das mulheres ao final do procedimento. É realmente muito emocionante e gratificante”, conta Sabrina, que desde 2015 faz atendimentos gratuitos mensais em São Paulo para mulheres que passaram por mastectomia.
Uma delas foi a analista de projetos Maythe Gimenez, de 39 anos, que teve câncer de mama aos 26. Um ano depois, ela descobriu outro tumor, na axila oposta. Maythe conta que sua relação com o corpo nunca foi das melhores, mas a reconstrução ajudou na sua autoestima. “Sempre tive vergonha do meu corpo, mas agora posso usar uma blusa de alcinha ou um decote sem medo. Ficou muito mais fácil viver, sabe? Sem ficar preocupada com as pessoas reparando em mim”, revela. “Eu me tornei uma nova pessoa.”
Segundo um levantamento da Sociedade Brasileira de Mastologia, a mastectomia é necessária em 50% dos diagnósticos de câncer de mama – muitas vezes, a aréola também é retirada. “Sempre que possível, a gente tenta preservar o mamilo, mas quando não é, retiramos”, explica a ginecologista e mastologista Priscila Beatriz.
Atenção à qualidade da pele
Nesses casos, a atenção deve ser redobrada com a qualidade da pele, antes de um procedimento estético, explica a head do Centro de Referência da Mama do Hospital A. C. Camargo, Fabiana Makdissi. “Você pode ter a pele muito fina ou uma espessura mais grossa. A musculatura pode variar, assim como tratamentos específicos que deixaram os tecidos mais inflamados, como a radioterapia.”
A dermatologista e membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia Maria Luiza Pires de Freitas adiciona que qualquer pele cicatrizada tem uma vascularização e uma inervação alterada, o que também pode mudar a resposta à tatuagem. “A pele não pode estar com nenhuma ferida em processo inflamatório para estar apta a ser tatuada. É preciso considerar também possíveis alergias, infecções e risco de cicatrização inadequada. Por isso, é tão importante uma consulta prévia com a dermatologista para tirar dúvidas de predisposição e cuidados que devem ser tomados.”
A necessidade do aval médico é uma premissa indispensável para os tatuadores que trabalham nessa área. “Normalmente, a gente fala que a partir de um ano seria o ideal para começar a fazer um projeto de tatuagem em cima da cicatriz, mas depende. Tem de ter certeza que realmente está cicatrizado”, esclarece Amanda Arissa, tatuadora do Venice INK, especialista em tatuagens em cicatrizes.
“É necessário um estudo da área que será tatuada, principalmente na questão da cor escolhida para a realização da arte, já que em algumas situações pode gerar variações dependendo do tom da cicatriz”, completa a tatuadora Carolina Oliveira, também do Venice INK.
Pós-tatuagem, os cuidados continuam. “Limpeza rigorosa, uso frequente de pomada para cicatrização, evitar o contato com água de piscina e banheira nos primeiros 15 dias, assim como a exposição solar”, adverte a dermatologista.
Mudanças internas
Outros cuidados são os internos. Afinal, o processo de recuperação do amor-próprio começa antes de dar os primeiros passos para dentro do estúdio. Claro que ele é individual e único, mas sempre envolve vulnerabilidade e troca com o profissional.
Foi isso o que passou confiança para a profissional de Recursos Humanos de 44 anos Patrícia Oliveira. Ao conhecer o tatuador Yurgan Barret, a conexão foi imediata. “Ele foi muito educado e discreto. Eu me senti bem, em nenhum momento me senti constrangida. Só fiquei muito emocionada”, conta ela, uma das participantes do projeto Y Rosa. Nele, desde 2017 o tatuador oferece gratuitamente a reconstrução de aréola por meio de tatuagem realista.
“Eu estudei para aprender sobre colorimetria, para chegar à cor mais próxima possível do original e conseguir replicar o efeito que dá a sensação de 3D no bico”, analisa ele, que demora cerca de 2h com cada cliente. “Tem muita conversa, entendimento do que elas querem e o que esperam do desenho. O processo todo é bem emotivo. Ver a forma como elas se sentem mais felizes é muito bom.”
O estúdio de tatuagem vira quase uma terapia – para a cliente e para o profissional. “Eu achava que estava mudando a vida das pessoas e hoje, quando paro para pensar, está acontecendo uma mudança comigo. Existe uma conexão, na qual elas levam um pouco de mim, mas deixam um pouquinho delas. É muito especial”, conclui a tatuadora Raquel Gauthier.
Para a psicóloga Anna Flávia, a tatuagem pode mudar a forma como alguém olha para a própria história. “Muitas vezes, a pessoa tem uma sensação de pertencimento daquilo que ela pode ter passado a vida inteira buscando. É uma forma de contar a sua narrativa com um novo significado”, reflete. Gisele, que reconstruiu a mama, conta que o processo fez com que ela se olhasse de forma diferente. “Você não é uma mama, você não é um cabelo, você não é uma fase da sua vida. Você é muito mais do que tudo isso.”
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