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Um blog sobre câncer de mama

Opinião | ‘Vai na Fé': o que a morte de Dora nos ensina sobre o privilégio de poder se despedir de quem se ama

Personagem de Claudia Ohana, que passou por um câncer terminal, mostra a importância dos cuidados paliativos para morrer com dignidade

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Foto do author Adriana Moreira
Atualização:

Dora, vivida por Claudia Ohana em Vai na Fé, da TV Globo, deve se despedir da novela das 7 no capítulo desta quinta-feira, 20. E, em mais um acerto do folhetim, seu câncer não foi usado como uma espécie de redenção ou punição para que um vilão se arrependa dos seus erros. Em vez disso, a novela de Rosane Svartman mostrou a importância - e o luxo - de poder se despedir de quem se ama.

Um diagnóstico de câncer não é uma sentença de morte - mas ela pode acontecer. Assim como pode acontecer em um acidente de carro, num AVC, num ataque cardíaco… No entanto, é inegável que descobrir um câncer nos aproxima da morte. Independentemente de ter ou não contato com a doença, você já parou para pensar como gostaria de se despedir desta vida?

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Em um trecho do livro Outra Biografia, Rita Lee discorre sobre a morte: “Por que há tanta gente que até se benze quando tocamos no assunto? A morte é a única verdade, e cada dia a mais vivido é um dia a menos que se vive. Pra que fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor?”

Em Vai Na Fé, Dora se despediu da vida cercada de amigos e familiares queridos. Ela permaneceu no seu lar, na pousada que tanto amava, em meio às árvores e no ambiente no qual sempre lhe pertenceu. E com direito a um show especial com Lui Lorenzo (José Loreto) e Lulu Santos.

Morrer amparada por quem amamos, no lar que amamos, é um dos maiores privilégios que se pode ter. Na vida real, Rita Lee também sabia que estava partindo, e preparou sua despedida. Ela também pôde fazer escolhas. Mas nem sempre é tão simples assim. Morrer em casa exige uma estrutura de cuidados que nem sempre é viável.

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Dora (Claudia Ohana) escolheu morrer em casa: na vida real, processo é complexo e vai além de ter uma família amorosa Foto: Estevam Avellar/Globo

O que são cuidados paliativos?

“O Brasil ainda tem uma cultura muito hospitalista”, diz a oncologista e paliativista Dalva Yukie Matsumoto, diretora do Instituto Paliar, escola de pós-graduação e cursos de extensão em cuidados paliativos. Segundo ela, faltam instituições e espaços nos quais o paciente possa ter uma alternativa para se despedir da vida sem ser num hospital, já que nem sempre é possível que o paciente morra em casa. “Morrer em casa é um privilégio que nem sempre depende do indivíduo e do amor da família. Depende também de assistência profissional, de uma orientação adequada”, explica ela.

Morrer em casa é um privilégio que nem sempre depende do indivíduo e do amor da família”

Dalva Yulkie Matsumoto, oncologista e paliativista

Segundo Dalva, é preciso desmistificar o conceito do paliativismo. “Cuidado paliativo não é só para quem está morrendo”, explica ela, completando que se trata de escolher as melhores alternativas para dar conforto ao paciente. Para ela, morrer com dignidade é um direito - e é importante que as pessoas entendam e falem abertamente sobre o assunto, sem medo ou tabus. “Tem um movimento grande de ter uma politica do SUS para oferecer cuidado paliatvo da maneira correta e com o suporte adequado”, diz.

Nesse sentido, Dalva coordena a Hospedaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal, em São Paulo, que hoje conta com dez leitos. “As clínicas solicitam o parecer e a gente vê se assume o caso. Quando os pacientes precisam de um cuidado mais intensivo, que não é dentro do hospital, mas as famílias não conseguem fazer isso em casa, a gente leva para a hospedaria. Melhorando, vai para casa. Se piora, interna.”

Segundo ela, o sistema tem vantagens para todos. O hospital oferece uma atenção mais complexa e mais cara, que nem sempre é necessária para o paciente terminal. “O ideal seria que a gente tivesse leitos de transição ou de cuidados paliativos em clínicas, ou em ambientes como uma casa mesmo, para pacientes que as famílias não conseguem se estruturar para cuidar deles na fase final”, explica ela. Dessa forma, inclusive, sobrariam mais leitos hospitalares para casos mais complexos.

Para isso, no entanto, Dalva explica que é importante ter uma equipe treinada, “mas num ambiente de baixa complexidade.” Na hospedaria, por exemplo, é possível fazer exames e administrar medicamentos, mas não há estrutura para procedimentos complexos, o que diminui custos.

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Novela x vida real

Dalva conta que se encantou pelo paliativismo depois que sua mãe e avó morreram de câncer. “Minha avó teve dois cânceres, o segundo aos 90 anos. Ela morreu serenamente, no quarto dela”, diz. “Ter familiares que morreram em casa, com dignidade, é um privilégio. Esse foi o empurrão que eu tive para ir para os cuidados paliativos”, conta.

A jornalista Juliana Kunc Dantas, que apresentou o podcast Finitude ao longo de sete temporadas e é cofundadora do Instituto Ana Michelle Soares, também viu em casa a diferença que os cuidados paliativos fizeram para seu pai, que morreu de câncer aos 88 anos. “Apesar da idade, ele era uma pessoa muito ativa, dava palestras, trabalhava. Mas no hospital era tudo no diminutivo, como se ele fosse um senhorzinho, porque só viam a idade dele no prontuário. Ele se incomodava muito com isso”, lembra.

Quando foi para os cuidados paliativos, Juliana conta que tudo mudou. “Perto da terminalidade, alguém olhou para ele pelo quem ele era”, diz. No paliativismo, há uma equipe multidisciplinar, que visa o conforto do paciente acima de tudo - o médico é apenas um dos profissionais envolvidos. “Eu digo que é a melhor condição na pior situação”, diz Juliana, que acredita que se morre muito mal no Brasil.

Ter familiares que morreram em casa, com dignidade, é um privilégio”

Dalva Yulkie Matsumoto


Além do pai, a avó materna de Juliana morreu de câncer no mesmo ano - segundo ela, também com dignidade. “Ela passou o tempo todo em casa, e internou (num hospital especializado em paliativismo) duas semanas antes de morrer”, lembra. Ela conta que, já próxima ao final, a avó parou de fazer xixi. “Em qualquer lugar, já passariam uma sonda. Mas a equipe avaliou que isso só traria sofrimento a ela. Decidiram que o melhor era administrar morfina. Ela morreu serenamente, dias depois. Foi um bocejo, e ela partiu.”

Apesar de prezar pela dignidade na morte de seus pacientes, Dalva não romantiza esse momento. “A morte não é bonita, a finitude é dolorosa e é importante que a família e o paciente seja acolhido por uma equipe muito bem formada e com conhecimento técnico”, diz. “Isso levanta a possibilidade de uma discussão que a gente não tem o hábito de fazer.”

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Opinião por Adriana Moreira

Jornalista especializada em Turismo e Bem-Estar. Colunista da Rádio Eldorado. Apaixonada por carnaval. Diagnosticada com câncer de mama em 2021, passou por quimio e radioterapia, e hoje segue se cuidando e fazendo exames regularmente

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