Em março deste ano, o médico brasileiro Leonardo Riella comandou o primeiro transplante de rim de porco geneticamente modificado para um paciente humano vivo. O feito foi um marco no campo dos xenotransplantes, nome técnico dos transplantes de órgãos ou tecidos de uma espécie para outra.
Formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), o nefrologista atualmente é professor associado de Medicina e Cirurgia na Harvard Medical School e diretor de transplante renal do Massachusetts General Hospital, em Boston, onde ocorreu a cirurgia.
O paciente que recebeu o rim, um homem de 62 anos, acabou morrendo quase dois meses após o procedimento por conta de problemas cardiovasculares. O xenotransplante, no entanto, foi bem sucedido e abre caminho para ampliação do estudo clínico e posterior uso da técnica no tratamento de doentes renais.
Na entrevista a seguir, Riella fala sobre as especificidades da técnica, além do avanço em estudos para o desenvolvimento de drogas que diminuam as consequências da barreira imunológica e das rejeições. O nefrologista conta ainda sobre as investigações que apontam como a alimentação pode afetar o sistema imunológico e reduzir a rejeição a órgãos transplantados.
Qual a importância do xenotransplante para o avanço no atendimento?
O nosso objetivo é ter disponibilidade de órgãos de porcos geneticamente modificados como alternativa ao transplante humano, seja ele cadavérico ou de um doador vivo. O transplante humano é a situação ideal, mas a gente sabe que existe uma escassez enorme de órgãos e muitos desses pacientes infelizmente não estariam vivos ou bem de saúde para receber o transplante apenas daqui a alguns anos. Então, numa fase inicial, o xenotransplante seria uma alternativa à diálise. Porque a diálise, apesar de manter o paciente vivo, tem uma série de efeitos negativos na qualidade de vida e ainda gera um aumento da morbidade e mortalidade.
Agora que aconteceu o primeiro, quais os próximos passos para que o uso seja ampliado?
Foi feito um, que é um caminho atípico. Normalmente, um estudo é realizado em um número maior de pacientes, para entender efeitos positivos e negativos ou algum ajuste necessário dentro do ambiente de pesquisa. Nesse caso, não foi para o estudo clínico desde o início pela abordagem cautelosa do FDA (órgão americano semelhante à Anvisa), que queria ter certeza que não haveria grandes riscos para o paciente, em particular de doença infecciosa. Neste primeiro transplante, escolhemos um paciente muito doente. Mas, no estudo clínico, a ideia é selecionar quem a gente acredita que vá ter uma sobrevida melhor. Assim, vamos poder coletar informações por pelo menos um ano após a cirurgia para construir o caso e, no futuro, o xenotransplante poder se tornar um tratamento disponível para pacientes com doença renal terminal.
Conseguimos estimar um tempo para isso, considerando que os resultados do estudo sejam promissores e o tratamento seja aprovado?
Quando você está testando um tratamento em ensaio clínico, no mínimo, são uns três anos para recrutar e fazer o follow-up. Então, estamos falando em torno de cinco anos para estar potencialmente disponível para pacientes que precisarem de transplantes. Vamos também precisar de uma estratégia para que a técnica consiga se adaptar e chegar a outros países, não fique exclusiva para os Estados Unidos ou outros países que tenham a tecnologia.
Podemos vislumbrar xenotransplante para outros órgãos?
Sim. O nosso centro de pesquisa trabalha com xenotransplante de coração, de pulmão, de fígado e de ilhotas do pâncreas. Dentre esses órgãos, o rim é o que a pesquisa está mais avançada, seguido pelo coração. A ideia é que a gente possa usar mais de um órgão desses porcos geneticamente modificados.
Por que o porco?
Por algumas razões: ele tem tamanho e anatomia dos órgãos muito parecidos com os dos humanos, uma gestação curta, de três meses e meio, e consegue dar vários filhotes, de seis a dez. E a gente já consegue usar o órgão a partir do primeiro ano de vida. É uma maneira muito eficiente de escalar. Além disso, já se usa na medicina a válvula cardíaca e a cartilagem do porco, isto é, já existe uma aceitação. E ainda há um outro ponto: como o porco é mais distante da gente do que o macaco, por exemplo, o risco de transmitir doenças é menor.
Quando se fala em transplante, uma questão importante é a rejeição. Qual a diferença no risco de rejeição entre o transplante humano e o xenotransplante?
Hoje, o risco de rejeição no xenotransplante é igual ou maior. Rejeição é um desafio importante porque o sistema imune tem a capacidade de tentar diferenciar o que é próprio do que é externo. Atualmente, em todos os transplantes, a gente tem de usar drogas imunossupressoras que enfraquecem o sistema imune e tentam minimizar o risco de rejeição. O que a gente prevê, no futuro, é que esses órgãos de porcos geneticamente editados poderiam ter outras modificações genéticas para aumentar a compatibilidade e prevenir ou evitar que haja necessidade do uso de drogas imunossupressoras. É claro que precisaria de uma abordagem personalizada, porque todos nós somos diferentes e não dá para fazer um porco para todo mundo. Mas existe essa visão de que em 10 ou 20 anos haja até a eliminação completa da necessidade de usar medicamento para evitar a rejeição.
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Isso tem relação com o que se chama de “reeducação” do sistema imunológico?
São duas frentes que têm de ser desenvolvidas paralelamente. O sistema imune tem um sistema de regulação interna que previne que a gente desenvolva doenças autoimunes ou tenha uma resposta exagerada. O que a gente tem aprendido é que existem maneiras de aumentar essa regulação de forma seletiva. A gravidez é a forma mais fascinante de regulação e tolerância do organismo contra um ser estranho: a mãe não rejeita o feto apesar de ele ter material genético do pai, o que poderia ser visto como um transplante. O entendimento de como funciona essa regulação vai ser oportunidade para desenvolvermos drogas mais inteligentes que, em vez de enfraquecer, reeduquem o sistema imune.
Sua pesquisa também inclui investigações sobre como a alimentação pode afetar o sistema imunológico. O que já temos de descoberta?
Os alimentos têm uma capacidade enorme de alterar nosso sistema imune. Para dar um exemplo específico: a alimentação alta em sal tem um efeito extremamente negativo no sistema de imunorregulação. A gente fez experimentos em camundongos transplantados com alimentação normal e com a alimentação com maior volume de sal. A rejeição é muito maior na dieta rica em sódio.
O mesmo se observa com doenças autoimunes. Fizemos um estudo com 20 crianças com doenças autoimunes que impactavam o rim. Propusemos uma alimentação baixa em sal, só com orgânicos, nada processado e sem açúcar. Em quatro semanas, conseguimos diminuir em torno de 70% o grau de inflamação do sistema imune e algumas crianças tiveram resolução completa da doença do rim. Isso mostra como a dieta pode ter um impacto tão grande como o uso do medicamento. Por isso, nos pacientes transplantados, temos uma abordagem bem holística.
E os pacientes seguem? Porque é tão mais fácil tomar um medicamento do que mudar hábitos de vida…
Essa é a parte mais difícil, que as pessoas tenham uma consistência na mudança de comportamento. Mas não existe um caminho mais curto, é preciso influenciar todos esses parâmetros que afetam o sistema imune. Se você toma medicamento todo dia, mas se alimenta mal e não faz exercício físico, a tendência é ter um sistema imune mais inflamado, aumentar a chance de rejeição e piora o resultado final do transplante. Antes, a gente não entendia essa relação, mas agora temos evidências em modelos pré-clínicos e humanos. Um estilo de vida saudável é tão importante como um novo medicamento, uma nova terapia.
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