O novo relatório do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) revela que 80,5% das crianças de 6 a 23 meses (quase 2 anos) consomem ultraprocessados e que esse tipo de alimento corresponde a 20,5% da energia na dieta nessa faixa etária.
Os números são ainda maiores entre aqueles de 24 a 59 meses (de 2 a quase 5 anos). Nessa idade, o consumo de ultraprocessados — alimentos industrializados associados a um maior risco de doenças como obesidade e câncer — chega a 93% e essa categoria representa 30,4% da energia.
Os dados foram obtidos pelos pesquisadores em visitas domiciliares realizadas entre 2019 e 2020, em 123 municípios dos 26 Estados e no Distrito Federal. Ao todo, foram estudadas 14.558 crianças e 12.155 mães biológicas.
O consumo de algum alimento ultraprocessado pelas crianças foi observado em 80,8% das casas na área urbana e em 75,8% na área rural, com maiores taxas entre pretos (85,7%) e pardos (81,8%) do que entre aqueles que se declararam brancos (77,9%).
“Percebemos diversos recortes por cor, em que a população negra tende a comer de forma menos saudável, e nas áreas rurais, onde a alimentação é um pouco mais saudável do que nos centros urbanos”, afirma a nutricionista Elisa Lacerda, pesquisadora do Enani e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ela explica que a dieta das crianças foi analisada considerando a ingestão de todos os tipos de alimento, posteriormente divididos em subgrupos:
Crianças de 6 a 23 meses de idade (quase 2 anos)
- 48% da energia proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados
- 21,5% - leite materno
- 20,5% - alimentos ultraprocessados
- 5% - ingredientes culinários
- 3,2% - fórmulas infantis
- 1,8% - alimentos processados
Crianças de 24 a 59 meses de idade (de 2 a quase 5 anos)
- 55,3% da energia proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados
- 30,4% - alimentos ultraprocessados
- 8% - ingredientes culinários
- 4,4% - alimentos processados
- 1,9% - leite materno
- 0,1% - fórmulas infantis
Em relação aos ultraprocessados, foram considerados os seguintes itens nas perguntas feitas pelos pesquisadores: refrigerantes; outras bebidas açucaradas (suco industrializado, de caixinha, água de coco em caixinha, guaraná natural ou xarope de guaraná, refresco de groselha, suco em pó ou suco natural de fruta com adição de açúcar); salgadinhos de pacote (incluindo chips); biscoito/bolacha doce ou salgada; guloseimas (bala, pirulito, outras); iogurtes; pão industrializado (como pão de forma, bisnaguinha, pão de hambúrguer); farinhas instantâneas de arroz, milho, trigo ou aveia; carnes processadas (hambúrguer, presunto, mortadela, salame, nuggets, linguiça, salsicha); e macarrão instantâneo.
Açúcar
Outro ponto destacado na pesquisa é o consumo de açúcar. Dos 6 aos 23 meses, a ingestão de doces foi observada em 60,6% das crianças, com uma média de 50,3 g/dia. Quanto às bebidas açucaradas, a frequência de consumo foi de 57,5% e o consumo médio, de 380,2 g/dia.
O cenário piora dos 24 aos 59 meses: aqui, a frequência de consumo foi de 80,4%, com consumo médio de 82,5 g/dia. O consumo por crianças residentes no Sul (104,6 g/dia) foi maior do que o de residentes no Norte (76,9 g/dia), Sudeste (79,4 g/dia) e Centro-Oeste (78,5 g/dia).
“Por mais que recomendemos que a família se alimente de forma saudável, numa vida corrida e cheia de estresse é muito mais fácil dar um bolinho pronto de chocolate do que comprar algo fresco e preparar”, lamenta Elisa.
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A recomendação, lembra Marisa Coutinho, nutricionista do Hospital e Maternidade Santa Joana, é evitar alimentos doces e/ou industrializados antes dos 2 anos de idade. “Consideramos esse marco porque geralmente é quando a criança interage mais com os amigos, vai para aniversários de colegas, e começa a querer comer o que os outros comem. Antes disso, o ideal é nem ter esses alimentos em casa.”
Marisa acrescenta que percebe o aumento de peso dos seus pacientes em consultório, muito por conta da má alimentação. Apesar disso, ela reforça que é possível alterar a dieta se todo mundo que convive com a criança colaborar em fazer escolhas mais saudáveis.
Os produtos ultraprocessados
Esse grupo é composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. São, por exemplo, as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos.
Recentemente, uma revisão de pesquisas envolvendo quase 10 milhões de pessoas encontrou uma associação entre o consumo exagerado desse tipo de produto e mais de 30 problemas de saúde. As evidências apontam que esse hábito está ligado a questões como sobrepeso, obesidade, diabetes, doenças cardíacas, câncer e até distúrbios mentais, como ansiedade e depressão.
Vale destacar que, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a manutenção de uma alimentação equilibrada depende de não abusar de sódio, açúcares e gorduras saturadas. O problema é que a maioria dos ultraprocessados contém justamente esses nutrientes em grandes quantidades.
Enani 2024
O Enani é financiado pelo Ministério da Saúde e coordenado pela UFRJ em conjunto com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Federal de Goiás (UFG).
Ao todo, a coleta de dados de 2019 e 2020 gerou oito relatórios sobre o comportamento alimentar das crianças brasileiras, e novas entrevistas começaram a ser realizadas para o Enani 2024, ainda sem data de lançamento.
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