Cerca de 85% do total de plasma produzido pelos bancos de sangue privados é descartado, de acordo com estimativas da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS). Os outros 15% são usados em transfusões de sangue. O plasma é a fração líquida correspondente a 55% do volume de sangue e pode ser usado para o desenvolvimento de novas tecnologias e na produção de medicamentos. Atualmente, somente o Poder Público, por meio da Hemobrás, pode processar o plasma brasileiro e transformá-lo em medicamentos para suprir o Sistema Único de Saúde (SUS). Na Hemobrás, não há desperdício de plasma.
De olho nesse cenário, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) sugeriu uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permitiria a coleta e o processamento de plasma humano pela iniciativa privada. Isso evitaria o desperdício e contribuiria para a produção de medicamentos usados para tratar, por exemplo, hemofilia, doenças renais, câncer, imunodeficiências, além de possibilitar cirurgias diversas. A proposta, chamada de PEC do Plasma, tramita no Senado Federal.
“São milhares de pessoas que precisam diariamente desses medicamentos. É indispensável, não tem substituto”, diz o presidente da ABBS, Paulo Tadeu de Almeida, apoiador da PEC. “E nem todos os pacientes que precisam de medicamentos hemoderivados têm acesso, ou conseguem menos do que o necessário”, argumenta.
Para conseguir alcançar a demanda necessária, o Brasil importa hemoderivados. Segundo o Ministério da Saúde, 30% dos medicamentos feitos com plasma que a pasta distribui no País estão nas mãos da Hemobrás, produzidos a partir do sangue coletado nacionalmente. Atualmente, a estatal envia a matéria prima para Áustria, Alemanha e França para o processamento do plasma, que volta para o País como medicamento. Os outros 70% da demanda nacional são importados de outros países, com a produção feita integralmente no exterior, por meio do plasma estrangeiro.
Resistência à proposta
Há forte resistência do governo e de alguns setores da sociedade acerca do assunto. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao Congresso Nacional que rejeite e arquive a PEC, se manifestando contrariamente à atividade privada na coleta e processamento de plasma humano, e que apresente projetos de lei que garantam subsídios financeiros à Hemobrás.
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Ao Ministério da Saúde, a entidade, que representa a instância máxima de deliberação do SUS, recomendou que se promova o fortalecimento da Coordenação Nacional de Sangue e de Hemoderivados (CNSH), encarregado da execução da política de atenção hemoterápica e hematológica (Lei do Sangue).
O CNS reitera os três pilares que orientam a política nacional de sangue, componentes e hemoderivados: “proteger a saúde e a segurança do doador; assegurar a qualidade, segurança, eficiência e viabilidade do sangue para transfusão, de plasma para produção de derivados do sangue; e proteger a segurança do paciente que recebe o sangue”.
O Ministério da Saúde, no mesmo sentido, se posiciona contra a proposta, afirmando que, se aprovada, pode refletir na diminuição de doações voluntárias para a rede pública de saúde, afetando os atendimentos, devido ao incentivo financeiro.
Além disso, a “desestruturação da cadeia de suprimentos na rede pública pode impactar na capacidade de oferta de sangue para regiões mais remotas e até em grandes centros – inclusive, o sangue coletado no Brasil poderá ser enviado para outros países, desabastecendo o mercado nacional”, completa a pasta.
Vender em vez de doar?
Um dos principais pontos de embate na discussão a respeito da entrada da iniciativa privada na coleta e processamento de plasma é a remuneração do que até então só é feito por meio de doações, uma vez que a comercialização de sangue, órgãos e tecidos é proibida pela Constituição Federal de 1988.
A PEC 10/2022 originalmente não englobava a comercialização do plasma, mas a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da proposta, sugeriu uma alteração para que passasse a ser permitida a coleta remunerada “para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias, produção nacional e internacional de medicamentos hemoderivados e outros, destinados a prover preferencialmente o sistema único de saúde, tanto pela iniciativa pública como pela privada”.
O CNS argumenta que a comercialização do plasma faria com que os parâmetros de segurança, qualidade e eficiência do material se perdessem frente à intervenção financeira. “Como fica a segurança do paciente que recebe esse sangue ou hemoderivado constituído a partir desse sistema que é balizado pela métrica financeira? É importante perceber esse elemento num país como o Brasil e com suas particularidades, onde vemos uma enorme desigualdade social e pobreza extrema, que pode servir de base para ampliar a exploração do povo brasileiro a partir da remuneração da doação de sangue”, diz a entidade, reforçando que a retomada da doação remunerada representa um retrocesso a um modelo que já existiu no Brasil, mas foi superado pela Constituição atual.
Outra preocupação é que, com a remuneração pela coleta, haja uma diminuição das doações, o que inviabilizaria a atuação da Hemobrás para fornecer medicamentos ao SUS.
A ABBS reconhece que “há uma dificuldade do ponto de vista filosófico” em relação à discussão sobre a comercialização do plasma, e por isso propõe a aprovação da PEC sem a possibilidade de pagamento, ou seja, as empresas não poderiam remunerar as coletas, mas poderiam processar o plasma para transformá-lo em medicamentos.
“Acreditamos que para o bem do País e para que a PEC passe, a palavra ‘remuneração’ poderia ser retirada”, afirmou o presidente da associação. Com isso, o problema da inviabilização do serviço público estaria resolvido, na visão dele. Sobre a segurança do material, Almeida diz que “este é o grande papel da Anvisa, que cuida tanto da iniciativa pública quanto da privada”.
Já o secretário de atenção especializada em saúde do Ministério da Saúde afirma que a produção de hemoderivados por empresas privadas, sem a remuneração da coleta, é um “falso dilema”. “Nunca haverá várias fábricas no Brasil, porque o setor privado não entra em furada econômica, [é um negócio que] não tem escala. O que vai acontecer é processar no exterior e vender no País”, afirma Helvécio Magalhães. “Se tiver mais uma fábrica, será pública, uma extensão da Hemobrás”, defende.
O presidente da Hemobrás, por sua vez, afirma que “se querem parar com descarte de plasma na iniciativa privada, é só entregar o excedente (que seria descartado) para a Hemobrás transformar em hemoderivado”. “Hoje, deliberadamente, não fazem isso, o que poderia evitar qualquer tipo de desperdício”, argumenta Antônio Edson Lucena.
Fábrica à vista
A previsão da Hemobrás é de que uma fábrica nacional de hemoderivados (atualmente em construção) entre em funcionamento em 2025. Em 2026, a fábrica deve atingir seu pleno desempenho e, então, parar de enviar plasma para ser processado no exterior.
“Estamos trabalhando para capacitar a Hemobrás para processar, até 2026, 500 mil litros de plasma (o dobro da capacidade atual, de 250 mil litros). Isso representa mais de 60% da demanda atual do Ministério da Saúde e já deixaria o Brasil em uma situação confortável para não depender do exterior, que é o que acontece com a maioria dos países, que dependem de importação”, diz o presidente da estatal.
Mesmo com a fábrica finalizada, a capacidade produtiva da Hemobrás não abarca toda a demanda brasileira, fazendo com que o Ministério da Saúde ainda tenha que completar a distribuição de hemoderivados com importação de medicamentos produzidos no exterior com plasma estrangeiro.
“A autossuficiência brasileira vai se dar com o término da fábrica. Uma coisa é importar a maior parte da demanda total, outra é depender de 20%. Mesmo importando (uma parcela pequena), é tecnicamente correto falar em autossuficiência”, diz o secretário de saúde.
Lucena reforça que, caso seja necessário, expandir a Hemobrás para aumentar sua capacidade de processamento é “fácil”, dado que a estrutura maior já estará finalizada (em 2025), e então seria preciso “somente expandir as etapas menores”. Segundo ele, com uma expansão, a estatal poderia alcançar capacidade de processamento de 1 milhão ou mais litros de plasma.
O presidente da ABBS, por sua vez, argumenta que, ao não permitir a comercialização do plasma, o Brasil acaba importando de outros países, cuja produção vem justamente de coletas remuneradas. Almeida defende que se houvesse uma indústria nacional, o País teria “mais remédio por um preço menor” e deixaria de depender do mercado externo. “Metade do valor do medicamento é a matéria prima (plasma)”, afirma, sugerindo que o preço para produzir os medicamentos seria bastante inferior ao pago nas importações.
Segundo a Hemobrás, ao alcançar uma produção totalmente nacional da parcela de hemoderivados pela qual a estatal é responsável, o custo dos medicamentos produzidos pela empresa vai baratear em torno de 40%.
“Na pandemia, os EUA fecharam a torneira, e aí tivemos que comprar, em situação de urgência, de outros países, como China e Índia, sem que houvesse tempo para o controle excelente que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) faz”, acrescenta Almeida, defendendo a independência nacional na produção dos biofármacos por meio da entrada da iniciativa privada brasileira no espaço hoje ocupado por empresas estrangeiras.
A Hemobrás confirmou que, durante a pandemia, o Brasil comprou, como exceção, hemoderivados de empresas que não tinham aval da Anvisa, devido ao desabastecimento interno. No entanto, tal importação foi feita diretamente pelo Ministério da Saúde, referente à parcela de medicamentos que não utiliza o plasma brasileiro e, portanto, não passa pela Hemobrás.
O presidente da ABBS pontua ainda o incentivo à economia da produção pelo setor privado brasileiro. “Cria indústria, gera emprego e imposto, produz tecnologia nacional e não tem evasão de divisas. Tudo isso ficaria dentro do território nacional”, diz. “Se temos demanda da medicação, temos que possibilitar que todos possam atuar. A iniciativa privada é complementar ao SUS”, defende, acrescentando que não existe razão sanitária que justifique a atual restrição.
Situação global
De acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 56 dos 171 países reportados produzem medicamentos hemoderivados por meio do fracionamento do plasma recolhido internamente. Um total de 91 países relatou que todos os medicamentos derivados de plasma são importados, 16 países disseram que nenhum hemoderivado foi usado durante o período analisado (ano de 2015 ou 2017) e 8 países não responderam à pergunta.
Vários medicamentos derivados do plasma estão na “Lista Modelo de Medicamentos Essenciais da OMS”, considerados mais eficazes e seguros para atender às principais necessidades de um sistema de saúde. No entanto, muitos deles estão em escassez a nível global.
Uma resolução da Assembleia Mundial da Saúde insta os Estados-membros a estabelecer, implementar e apoiar programas de sangue e plasma coordenados a nível nacional, geridos de forma eficiente e sustentável, de acordo com a disponibilidade de recursos, com o objetivo de alcançar a autossuficiência. “É da responsabilidade dos governos individuais garantir um fornecimento suficiente e equitativo de medicamentos derivados do plasma, nomeadamente imunoglobulinas e fatores de coagulação, que são necessários para prevenir e tratar uma variedade de condições graves que ocorrem em todo o mundo”, diz a OMS.
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