BRASÍLIA E BELO HORIZONTE - Seis vídeos obtidos pela reportagem do Estadão mostram pessoas sendo vacinadas na noite de terça-feira, 23, na garagem de uma empresa de transporte em Belo Horizonte. As imagens foram gravadas por vizinhos do local, que denunciaram um esquema clandestino de imunização contra a covid-19 pela viação Saritur. O vaivém ocorreu após as 20h, quando já estava em vigor o toque de recolher determinado pela prefeitura. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal de Minas investigam o caso.
Nesta quarta-feira, 24, a revista piauí mostrou que políticos e empresários de Minas teriam tomado a 1ª das duas doses da vacina da Pfizer contra a covid, e que eles compraram o imunizante por iniciativa própria, driblando o Sistema Único de Saúde (SUS), o que é ilegal. A compra de vacinas pela iniciativa privada é permitida, mas a lei prevê que haja doação para a rede pública enquanto não for concluída a imunização dos grupos prioritários. A 1ª remessa do imunizante para o governo federal, segundo o Ministério da Saúde, ainda não chegou ao Brasil.
A garagem mostrada nos vídeos fica no fim da rua Cláudio Martins, 100, no bairro Alto Caiçaras, na capital mineira. As imagens mostram uma aglomeração de carros em volta da entrada do local, que pertence à Saritur. Uma mulher de jaleco branco vai até o porta-malas de um carro, retira a vacina, e aplica nos motoristas. Alguns descem do carro para receber sua dose. Outros são vacinados dentro do próprio carro. Outra pessoa anota nomes em uma ficha, como se estivesse confirmando cada vacinação dada.
A Polícia Militar de Minas confirmou que esteve na terça no endereço da empresa após denúncia anônima. Segundo a corporação, seguranças do local disseram que houve “pequena reunião dos diretores”, mas que todos já haviam ido embora. Conforme a PM, uma pessoa, então, “acenou e em voz baixa” se identificou como a denunciante.
Ela relatou aos policiais que filmou a vacinação e viu cerca de 25 carros no local. Contou que uma mulher de jaleco branco aplicou doses também em crianças. A PM disse que acionou a vigilância sanitária e outros órgãos de fiscalização, mas que “nada foi constatado pelas equipes” após entrar na empresa. O boletim de ocorrência não cita o nome da empresa de ônibus. A reportagem esteve no local nesta quinta-feira, 25. Um funcionário disse que, no local, que não tem placas visíveis de identificação, funciona "uma das empresas da Saritur".
Segundo o MPF, caso tenha havido importação de vacinas antes da lei aprovada pelo Congresso Nacional para regulamentar as compras do insumo no exterior, os responsáveis podem ser enquadrados no crime de contrabando. Se o episódio ocorreu após a aprovação da lei, a denúncia pode ser por descaminho.
Em nota, a Secretaria de Saúde de BH disse que não ter recebido oficialmente o vídeo que a autora da denúncia à PM prometeu enviar. A pasta afirmou ainda que, "após minuciosa inspeção feita pela Vigilância Sanitária e a falta de evidências encontradas no local no momento da vistoria, não existe amparo legal para qualquer ação adicional da secretaria".
Conforme a revista, a 2ª dose estaria prevista para ser aplicada nas cerca de 50 pessoas, daqui a 30 dias. O custo das duas doses seria de R$ 600 por pessoa. O ex-senador Clésio Andrade, que também é ex-presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), foi um dos vacinados, segundo a piauí. “Estou com 69 anos, minha vacinação (pelo SUS) seria na semana que vem, eu nem precisava, mas tomei. Fui convidado, foi gratuito para mim”, disse ele, também ex-vice-governador de Minas, à revista.
O Estadão questionou Clésio Andrade sobre sua presença na vacinação realizada na garagem. Andrade negou. “Desconheço este assunto. Estou em quarentena aqui no sul de Minas. Tive covid”, escreveu. A reportagem insistiu no tema em relação à declaração que ele deu à revista. Andrade limitou-se a repetir a mesma mensagem. “Desconheço. Estou em quarentena aqui no sul de Minas. Tive covid.”
Por meio de sua assessoria, o ex-senador declarou também que não teria tomado a vacina. “Ainda não tomei a vacina e defendo as regras de vacinação do Ministério da Saúde. Aliás, repito que eu preferia que os idosos, como eu, dessem a vez aos mais jovens, que são obrigados a sair de casa para trabalhar.”
O Estadão fez diversos contatos com os donos da empresa Saritur, os irmãos Rômulo e Robson Lessa, apontados como os articuladores na compra da vacina, mas não conseguir retorno.
A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre o assunto. A pasta declarou que as doses da Pfizer/BionTech contratadas pelo governo federal ainda não chegaram ao Brasil. “A previsão do laboratório é entregar a primeira remessa a partir de abril ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) – que é a base da vacinação de todos os brasileiros contra a covid-19”.
A legislação sancionada em 10 de março, afirmou o ministério, autoriza Estados, Distrito Federal, municípios e setor privado a comprarem vacinas, desde que elas tenham registro ou autorização para uso emergencial no Brasil. Estados e municípios têm autonomia para aquisição das doses, mas elas devem ser encaminhadas ao PNI para serem distribuídas para todos os estados e Distrito Federal, de forma proporcional e igualitária, pelo governo federal.
No caso do setor privado, segundo a legislação, "as doses deverão ser integralmente doadas ao SUS enquanto estiver ocorrendo a vacinação dos grupos prioritários". Após essa etapa, metade da compra deve ser entregue ao SUS e a outra metade, aplicada gratuitamente. A pasta ressalta que a aplicação de todas as vacinas no País devem seguir o Plano Nacional de Vacinação.
Em nota, a Pfizer “nega qualquer venda ou distribuição de sua vacina contra a covid-19 no Brasil fora do âmbito do Programa Nacional de Imunização. O imunizante COMIRNATY ainda não está disponível em território brasileiro”, afirmou a empresa. “A Pfizer e a BioNTech fecharam acordo com o Ministério da Saúde contemplando o fornecimento de 100 milhões de doses da vacina contra a covid-19 ao longo de 2021.”
A revista piauí relata ainda que a enfermeira que aplicava as vacinas tinha se atrasado, porque estava imunizando outro grupo, em uma empresa controlada pela ArcelorMittal. Em nota, a Arcellor Mittal declarou que “nunca comprou nenhuma vacina para o combate da Covid-19 da Pfizer ou de qualquer outra empresa farmacêutica”.
“A empresa nunca fez nenhum contato com a Pfizer ou qualquer outra empresa do setor farmacêutico para compra direta de vacinas", diz a companhia. "A Abertta Saúde, empresa de gestão de saúde da ArcelorMittal, atua como posto avançado de vacinação do SUS junto às secretarias de Saúde de Belo Horizonte e de Contagem. Mas a empresa afirma desconhecer "qualquer atuação de seus profissionais em atos correlacionados à vacinação fora dos protocolos do Ministério da Saúde e do Programa Nacional de Imunização". / COLABOROU MARLOS ÁPYUS, ESPECIAL PARA O ESTADÃO
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