Aos 75 anos, Nobuko Oshiro é a karateka mais bem colocada no ranking em Okinawa, no extremo sul do Japão. Ela recebeu o nono dan no início de 2023 e dedica-se ferozmente ao esporte. Seu dojo, que recebe alunos de todas as idades, tem as paredes cobertas por fotos suas em diferentes épocas, artigos sobre sua carreira e homenagens recebidas por suas contribuições à arte marcial.
Nobuko Sensei, como é chamada, começou ainda jovem e por acaso: praticava uma dança típica de Okinawa, que exigia joelhos e coxas fortes e, para isso, seu professor lhe recomendou o karatê. Nunca mais abandonou o esporte. “Pretendo praticar enquanto puder. O karatê se tornou meu marido, amigo e companheiro”, diz ela, em tom de brincadeira. Mais: tornou-se seu propósito de vida, o motivo pelo qual acorda todos os dias.
Os japoneses têm um termo para isso: ikigai, ou razão para viver, na tradução literal. Ter um propósito de vida foi apontado como um dos fatores responsáveis pela longevidade extrema encontrada nas blue zones.
Blue zones foi o nome dado a cinco regiões do planeta onde pesquisadores observaram que as pessoas vivem mais do que a média e com saúde. Nesses locais, não é incomum encontrar centenários cuidando do jardim, cavalgando, cozinhando ou trabalhando. O termo se refere às seguintes localidades:
- Nicoya, na Costa Rica;
- Loma Linda, nos Estados Unidos;
- Okinawa, no Japão;
- Icária, na Grécia;
- Sardenha, na Itália.
Visitei essas regiões em uma expedição de dois meses para buscar entender esse e outros pilares do envelhecimento saudável – além do propósito de vida, são tratados como pontos fundamentais ter uma alimentação saudável, ser ativo e manter bons relacionamentos. Essa é a segunda de uma série de três reportagens que explora essas questões.
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Afinal, o que é propósito de vida?
“O propósito de vida é um senso de direção e intencionalidade. É algo concreto, que pode ser traduzido em objetivos e metas”, explica Cristina Ribeiro, presidente da gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção Paraná, que desenvolveu sua tese de doutorado sobre o tema. “Uma pessoa com propósito tem uma direção na vida. Ela não está vagando, sem saber o que vai fazer.”
Estudos mostram que saber por que se vive traz inúmeros benefícios à saúde no envelhecimento. Uma revisão da literatura feita por um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista, do qual Cristina faz parte, mostrou que idosos que tinham um propósito de vida tinham menos risco para doença de Alzheimer, doenças coronarianas e cerebrovasculares e distúrbios do sono. Além disso, apresentavam melhor regulação emocional e bem estar de maneira geral.
“Quem tem propósito de vida cuida mais da saúde, faz exames regulares, adere mais a tratamentos, porque quer viver mais para atingir seus objetivos”, conta.
Mas e quando não se tem um ikigai tão claro e duradouro, como Nobuko Sensei? O que especialistas ressaltam é que o ikigai não precisa ser algo grandioso e definitivo. Ele pode ser simples e particular – um pequeno prazer da rotina diária, que traga alegria, motivação e realização, como receber a visita dos netos, encontrar os amigos ou cuidar do jardim.
É o caso Maria Moula, de 93 anos, residente da ilha grega de Icária, uma das regiões com maior número de centenários do mundo. O que a tira da cama todos os dias hoje é o trabalho em sua horta, espalhada em dois andares no terreno onde mora.
Baixinha, atarracada e falante, Marika, como é conhecida, cuida sozinha das verduras e legumes que cultiva, e dos quais tem imenso orgulho. O trabalho é árduo, mas Marika não se intimida: sobe e desce as escadas carregando a enxada, agacha sem dificuldades para colher os vegetais maduros, leva toda a produção para uma área reservada. Sua dedicação lhe rendeu fama no bairro. “Também cuido da horta de alguns vizinhos quando eles não estão. Assim faço um dinheirinho”, afirma.
Com seu ikigai, Marika mostra na prática o que as pesquisas apontam: idosos com um propósito de vida tendem a desenvolver mais habilidades e a ter mais engajamento social, todos comportamentos que ajudam na longevidade. Ao se dedicar à sua horta, Marika se mantém fisicamente ativa, consome alimentos saudáveis e socializa com outras pessoas.
Do outro lado dessa escala está Trinidad Espinoza, de 107 anos, moradora da Península de Nicoya, na Costa Rica, onde se encontra um excepcional número de centenários. Doña Trini, como é chamada, é o oposto de Marika. Extremamente frágil, move-se com dificuldade e recebe cuidados de sua filha Marta, de 70 anos. As duas vivem em condições precárias, mas Doña Trini quer continuar vivendo, apesar das necessidades.
Sua família é a razão porque pede todos os dias a Deus que lhe dê mais anos. Quer estar aqui para poder conviver com seus familiares, espalhados pela Costa Rica – já são quatro gerações depois dela. Essa resiliência diante das adversidades e a capacidade de se adaptar a novas situações, apontam os pesquisadores, também são consequência de um propósito de vida bem estabelecido.
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O papel da espiritualidade
A fé apresentada por Doña Trini, aliás, é presente na vida da maioria dos idosos das blue zones. A crença em algo além de si mesmo, seja Deus, os antepassados ou uma força maior, foi identificada como um dos fatores que favorecem uma longevidade extrema e de qualidade.
Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Cagliari, na Sardenha, seguiu 95 idosos na blue zone italiana, que é predominantemente rural, e concluiu que aqueles que tinham mais religiosidade usavam-na como forma de lidar com o estresse e, por isso, se mostravam mais resilientes e otimistas.
Esses fatores colaboravam para uma boa saúde mental, já que idosos mais resilientes e religiosos apresentavam maior bem estar de forma geral.
Essa mesma pesquisa aponta para um outro aspecto benéfico da fé: o senso de comunidade e acolhimento proporcionado por ela, que se aplica não apenas dentro da própria congregação. Pesquisadores relatam que as práticas religiosas na blue zone italiana muitas vezes envolvem eventos e apresentações histórias coletivas, que reforçam a identidade social e o engajamento da comunidade, conferindo aos idosos um senso de propósito e pertencimento.
Para a italiana Virginia Melis, de 101 anos, a fé é uma prática que carrega consigo desde pequena. Embora não frequente mais a igreja tanto quanto gostaria, continua a participar das missas de domingo e lê diariamente a Bíblia, onde guarda uma foto de seu falecido marido. “Para mim, a graça do Senhor é e sempre será uma grande coisa”, diz.
Virginia crê que sua fé a ajudou durante toda a vida, inclusive a chegar à velhice com boa saúde. Dona de um senso de humor afiado, a idosa surpreende pela boa forma física e pela lucidez. Tem um aperto de mão firme, não tem problemas para se levantar e lembra-se com detalhes de histórias da juventude.
O impacto da fé na longevidade fica ainda mais evidente na zona azul em Loma Linda, na Califórnia, nos EUA, onde um terço da população faz parte da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Nessa comunidade, a espiritualidade extrapola os bancos da igreja e ganha contornos de estilo de vida: os fieis seguem os preceitos adventistas, que incluem uma dieta estritamente vegetariana, a abstenção de álcool e drogas, o descanso aos sábados e o servir o próximo através de atos voluntários. A fé também confere um forte senso de pertencimento à comunidade e garante uma rede de apoio aos seguidores.
“Existem várias razões para explicar a importância da parte espiritual na longevidade. Uma delas é relacionada ao comportamento. Uma pessoa que quer parar de beber e participa do grupo Alcoólicos Anônimos vai ver que o conceito deles é baseado numa força superior, que ajuda a mudar os hábitos. O mesmo se aplica à espiritualidade. Quando você ora, você tem contato com um poder superior e sobrenatural que vai lhe dar forças para mudar. Deus lhe dá forças para desenvolver novos hábitos e ter uma longevidade saudável”, relata Hildemar dos Santos, diretor do programa de cuidados preventivos da Universidade de Loma Linda.
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Para Gourdet Gaspard, 83 anos, a fé em Deus através da obediência aos seus mandamentos é a responsável pelo seu bom envelhecimento. Ele a coloca em prática com seu trabalho voluntário na International Student Pantry, organização não-governamental que fundou em 2010 para auxiliar universitários em necessidade na região de Loma Linda.
“A necessidade é enorme. Há alunos que moram em seus carros, que não têm o que comer nem como alimentar seus filhos. Como estudar em condições como essa?”, indaga com sotaque francês carregado, apesar de ter deixado o Haiti há décadas. “Quando começamos, fornecíamos alimentos semanalmente. Depois passamos a ajudar com outros itens, como móveis, carros e até mensalidades da universidade.”
Gaspard acorda todos os dias às 3h30 para articular a rede envolvida no auxílio a esses alunos. Ele enxerga o trabalho voluntário como seu propósito de vida e não pretende parar tão cedo, apesar de já estar em busca de alguém para treinar para o futuro.
“Esse trabalho é uma bênção. Quando você ajuda os outros, você também se ajuda. Não dá tempo de pensar em coisas negativas ou de ficar ocioso. Você continua trabalhando pelos outros”, diz ele.
Além de auxiliar os alunos com a ONG, Gaspard também é responsável por cozinhar o almoço dos fieis depois do culto de domingo na Loma Linda University Church, uma das maiores da cidade. Cuida da cozinha com esmero e sua comida é elogiada por todos.
“Minha vontade de ajudar é parte da minha espiritualidade. Eu nunca vou dormir nem começo meu dia sem agradecer a Deus. Não há dúvida de que isso me ajuda a envelhecer melhor. Sem Ele, eu não sei o que faria”, diz.
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