Pelo segundo ano consecutivo, 2020 registrou recorde de assassinatos de ativistas ambientais e do direito à terra no planeta: foram 227, segundo relatório divulgado nesta semana pela organização não governamental Global Witness. Do total, 75% dos casos foram registrados na América Latina.
O Brasil aparece em 4º, com 20 vítimas — metade delas de povos tradicionais, sendo oito indígenas e dois ribeirinhos. Uma leve melhora, se comparado com a edição anterior, referente a 2019, quando foram registrados 24 ataques letais no País. A Colômbia lidera, com 65 mortos, seguida pelo México, com 30, e pelas Filipinas, com 29.
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"Houve uma queda muito pequena nos ataques registrados no Brasil, mas os números permanecem inaceitavelmente altos, como estão desde que começamos a registrar", diz ao Estadão a consultora sênior da ONG Laura Furones. Segundo ela, "os números podem flutuar e flutuam", ou seja, uma variação ainda não indica tendência — seria preciso aguardar mais alguns anos para observar se a queda se mantém. "Crises como a pandemia de covid podem afetar o relatório de dados", cita ela, ressaltando que mesmo com diminuição de mortes, houve ainda casos de ataques não letais contra ativistas e comunidades indígenas no Brasil.
Dentre as vítimas de 2020, segundo o relatório, 70% delas foram atacadas em retaliação por estarem militando na proteção de ecossistemas específicos, como florestas. O restante foi assassinado durante o trabalho, por serem profissionais que atuam diretamente no monitoramento de rios, áreas costeiras e oceanos.
"Esses dados nos dizem uma série de coisas. O clima e a justiça social estão interligados: à medida em que a crise climática continua a sair de controle, as ameaças contra os defensores da terra e do meio ambiente estão piorando", comenta Laura. "Há conexão clara entre o colapso climático e a violência contra as pessoas."
Segundo a última edição do Painel Intergovernamental sobre o Clima da ONU (IPCC), a Terra está esquentando mais rápido do que era previsto e se prepara para atingir 1,5ºC acima do nível pré-industrial já na década de 2030, dez anos antes do que era esperado. Com isso, haverá eventos climáticos extremos em maior frequência, como enchentes e ondas de calor. No Brasil, isso vai causar mais secas e incêndios no Centro-Oeste e no Nordeste, além de menor produção de alimentos.
América Latina é líder de registros
"A América Latina tem sido, de forma consistente, a região mais afetada por essas questões. Com muita frequência, as pessoas que defendem sua terra e nosso planeta sofrem criminalização por parte de governos, intimidação em suas comunidades e assassinatos", diz Marina Commandulli, assessora de campanhas da Global Witnes, em comunicado à impresa.
Na avaliação da organização, a postura do poder público contribui para que os números continuem altos. A gestão Jair Bolsonaro tem sido alvo de críticas por enfraquecer a legislação de combate a crimes ambientais e na estrutura de proteção a indígenas. Procurada para comentar o relatório, a Secretaria de Comunicação do governo federal disse que o assunto deveria ser tratado com o Ministério do Meio Ambiente. As pastas de Meio Ambiente e da Justiça não comentaram.
Sete dos dez países que lideram o ranking são latino-americanos. Somados, quase 75% dos ataques registrados no Brasil e no Peru ocorreram na região amazônica. Dentre todos os casos registrados em 2020, um terço teve como vítimas representantes de povos tradicionais, principalmente indígenas. No Brasil, quem compila os dados é a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em evento sobre a Amazônia em 1975.
Para Jeane Bellini, ex-coordenadora e agora na equipe de documentação da CPT, essa escalada contra os indígenas é um indicativo da "pressão crescente" em virtude dos conflitos por posse de terra nas regiões tradicionalmente ocupadas por eles. "Os novos processos demarcatórios (de terras indígenas) foram suspensos e nem os concluídos foram assinados", afirma.
Segundo levantamento da ONG, que tabula e publica os dados desde 2012, desde que foi assinado o Acordo de Paris sobre alterações climáticas, em 2014, quatro defensores ambientais são mortos por semana em todo o planeta. Acredita-se, contudo, que haja subnotificação, principalmente considerando países em que há restrições a liberdade de imprensa.
Especialistas alertam para a vulnerabilidade dos ativistas ambientais
"A violência e os conflitos em torno da luta pela terra e, mais recentemente, por água, já são velhos conhecidos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais do Brasil", comenta, ao Estadão, a bióloga Louise Nakagawa, pesquisadora da área de Sustentabilidade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os conflitos por terra no País mais do que dobraram de 1985 a 2019, passando de pouco mais de 600 para quase 1,3 mil ocorrências. "No caso da água é ainda pior. Enquanto em 2002 havia menos de dez ocorrências, em 2019 foram registradas mais de 500", diz Louise.
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"Se por um lado, são afetadas pelo aumento dos desmatamentos, queimadas, uso de agrotóxicos e dilapidação dos recursos florestais, o que gera enormes impactos socioeconômicos, não apenas para esses povos, mas para toda a sociedade brasileira, por outro, sofrem com a completa inércia, e muitas vezes conivência, do Estado", acrescenta a pesquisadora.
Pesquisadora na Universidade de Brasília, a antropóloga Luísa Molina ressalta ao Estadão que o relatório é um alerta para que não só o meio ambiente seja preservado, mas que "as condições de vida das lideranças do campo, sobretudo indígenas e outras comunidades tradicionais" sejam acompanhadas.
O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antonio Eduardo Cerqueira de Oliveira, também destaca o peso de discursos "preconceituosos e racistas" do governo Bolsonaro contra os povos tradicionais, "incitando a população" contra esses grupos.