SÃO SEBASTIÃO - Uma espera de quase três décadas está próxima de chegar ao fim. O Arquipélago dos Alcatrazes, um dos lugares mais incríveis e menos conhecidos do litoral norte de São Paulo, deverá ser aberto para visitação pública no segundo semestre de 2017, um ano depois de ter sido transformado em Refúgio de Vida Silvestre (RVS), uma unidade de conservação federal. “É compromisso assumido; pode escrever aí”, disse ao Estado, em entrevista, o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Ricardo Soavinski.
O objetivo é abrir o refúgio “no mais tardar” em 2 de agosto, no primeiro aniversário de sua criação. “Temos condições de fazer, e vamos fazer. É prioridade absoluta”, prometeu Soavinski, um oceanógrafo de formação. O plano de manejo da unidade, necessário para que isso aconteça, está em fase avançada de elaboração e deverá ser aprovado já no primeiro semestre.
Alcatrazes fica a apenas 35 quilômetros da costa, visível no horizonte de algumas das praias mais badaladas do litoral norte de São Paulo, mas permanece um sonho distante para muitos moradores e veranistas da região. Desde o início da década de 1980, o arquipélago é usado como alvo para exercícios de tiro de canhão dos navios de guerra da Marinha, que detinha a jurisdição da área, restringindo o acesso.
Em 1989, um grupo de biólogos e fotógrafos ambientalistas lançou uma ofensiva científica para acabar com os bombardeios e transformar o arquipélago em Parque Nacional Marinho. A iniciativa, batizada de Projeto Alcatrazes, acabou se transformando em uma das mais longas e aguerridas campanhas do ambientalismo brasileiro.
O resultado, 26 anos depois, foi a criação do Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago dos Alcatrazes; uma categoria com regras mais restritivas do que as de um Parque Nacional Marinho, o que levou à preocupação de que a unidade poderia não ser aberta ao turismo, uma das demandas essenciais da sociedade civil, além do fim dos bombardeios.
Mas isso não aconteceu, e a contagem regressiva está aberta agora para o dia em que qualquer pessoa – e não apenas militares, cientistas ou pescadores ilegais – poderá contemplar de perto suas belezas naturais. “A visitação pública sempre foi a maior demanda social para essa área, e estamos trabalhando para atender a essa demanda o mais rápido possível”, diz a bióloga Kelen Leite, do ICMBio, chefe do núcleo de gestão integrada do RVS Alcatrazes e da Estação Ecológica Tupinambás – uma unidade que já existe desde 1987, mas cobre apenas algumas partes do arquipélago (fora da zona de tiro da Marinha).
Mundo perdido. A reportagem do Estado ajudou a organizar e acompanhou com exclusividade a primeira expedição científica a Alcatrazes desde a criação do refúgio, em setembro, com apoio da Fundação SOS Mata Atlântica.
Aproximar-se do arquipélago é como uma viagem no tempo. A ilha principal, de 170 hectares e 2,5 km de comprimento, se ergue do leito marinho como um “mundo perdido” de contornos pré-históricos. Milhares de fragatas, com mais de 2 metros de envergadura, voam em círculos sobre seus picos, como um enxame de pterossauros. Dos enclaves de mata mais abaixo, a sensação é que um tiranossauro pode surgir urrando a qualquer momento.
“Toda aproximação de Alcatrazes provoca um frisson na gente”, diz o biólogo Fausto Pires de Campos, de 70 anos, fundador e até hoje coordenador do Projeto Alcatrazes. Dinossauros mesmo, não há; mas o arquipélago abriga, sim, várias espécies endêmicas de répteis, anfíbios, plantas, aranhas e insetos que vivem ilhados lá e não existem em nenhum outro lugar do planeta.
“É um lugar muito mágico; impossível chegar lá e não se apaixonar, não querer preservar”, diz a veterinária Juliana Saviolli, 35, do Instituto Argonauta, que cresceu vendo a ilha no horizonte e sonhando com o dia que pisaria lá.
Para os turistas, o mais provável é que só possam colocar os pés na água. A proposta inicial é que a visitação pública seja limitada a atividades marinhas, como passeios de barco e mergulhos contemplativos, por causa de riscos e dificuldades logísticas de desembarcar nas ilhas.
Não que isso seja um problema. Mesmo sem contar com a opulência colorida dos recifes de corais típicos de águas mais tropicais, Alcatrazes tem mais espécies de peixes do que Fernando de Noronha: cerca de 250, comparado a 150 do arquipélago pernambucano. “Isso é para quebrar o paradigma de que só tem biodiversidade marinha no Nordeste”, diz o pesquisador Fabio Motta, do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “É importante que as pessoas conheçam para preservar; e dividir esse patrimônio com a sociedade.”
Leia aqui a reportagem especial multimídia completa.
Bombas foram derrotadas pelo conhecimento científico
Revidar bombas com conhecimento científico. Essa foi a lógica que orientou a “batalha” do Projeto Alcatrazes contra os bombardeios da Marinha desde 1989, quando o grupo organizou sua primeira expedição ao arquipélago.
“Desde o início, nossa estratégia foi mostrar a importância científica do lugar”, diz o fotógrafo Roberto Bandeira, um dos fundadores do projeto, que nasceu como uma iniciativa da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro. “A gente sabia que, para brigar com a Marinha, precisava ir além do oba-oba ambientalista.”
O problema para justificar o fim dos exercícios de guerra era que pouco se sabia sobre o arquipélago. O projeto, coordenado pelo biólogo Fausto Pires de Campos, do Instituto Florestal de São Paulo, passou então a garimpar apoio para organizar expedições e convidar cientistas a participar. Não faltou gente interessada. E logo começaram a surgir as descobertas: uma variedade enorme de espécies terrestres e marinhas, incluindo várias inéditas para a ciência e algumas que só existiam ali, como as agora famosas jararaca e perereca-de-alcatrazes, ambas criticamente ameaçadas de extinção.
“O Fausto viu que tinha que ocupar Alcatrazes pacificamente; que o jeito de afastar os bombardeios era com ciência”, lembra Rodrigo Leão de Moura, hoje professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou de várias expedições e ajudou a descrever grande parte da fauna marinha de Alcatrazes.
A estratégia deu certo. Levou quase 30 anos – e não foi o Parque Nacional que todos queriam –, mas o arquipélago finalmente virou uma área protegida e os bombardeios da Marinha estão definitivamente encerrados, pelo menos na ilha principal. A Marinha continua a atirar apenas numa ilha menor, a da Sapata, mantida fora da área protegida. “Não é o ideal, mas certamente estamos numa situação bem melhor”, diz o secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa. Segundo a Marinha, os exercícios são essenciais para aferimento das armas e treinamento da esquadra.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.