O paulista Flávio Cardoso sempre adorou acarajé, só não imaginava que o bolinho de feijão redondo, macio por dentro e crocante por fora, renderia a ideia de um projeto inédito. Há dois anos, o químico e a mulher, a mestre em Educação Carolina Heleno, reaproveitam o óleo de dendê utilizado pelas baianas de acarajé em Salvador para a produção de sabões e sabonetes naturais. Até o fim de 2024, os fundadores da startup ÓiaFia! reaproveitaram quatro toneladas de dendê.
A reciclagem desse líquido dourado, que sustenta as bases da culinária baiana, tem gerado um ciclo capaz de reduzir o índice de contaminação das águas: despejado na água, o dendê contamina o ecossistema para espécies marinhas. A ÓiaFia! calcula ter evitado a contaminação de 60 milhões de litros de água.
Em Salvador, 3,5 mil pessoas (a maioria delas mulheres negras) trabalham como baianas de acarajé, mas a taxa de reciclagem do óleo utilizado nos quitutes é menor que 10%, segundo a ÓiaFia!. Em 2021, Flávio e Carol bolaram um plano para aumentar esse percentual e tornar essa engrenagem lucrativa.
Naquele ano, plena pandemia da covid-19, os dois estavam trancafiados em casa, com tempo para refletir sobre velhos incômodos. Em especial, a quantidade de lixo jogado nas ruas e a falta de coleta seletiva.
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“A gente também estava com muita dificuldade com o descarte do óleo”, recorda Flávio, que é doutor em Biotecnologia. Os aborrecimentos foram o empurrãozinho para que os dois pensassem no novo negócio. A conversão de óleos em sabão já é conhecida, mas, depois de pesquisas, o casal descobriu a falta de espaço do dendê na cadeia produtiva da limpeza.
“Tínhamos uma inquietação: queríamos fazer produtos que se comunicassem com as diferentes identidades da Bahia, com capacidade de impacto real. E nada melhor do que começar pelas baianas de acarajé.”
Cada uma delas dava um destino para os dezenas de litros de óleo que utilizavam diariamente. “Guardei por um ano esperando que alguém chegasse para pegar”, contou uma delas. “Coloco detergente e jogo fora”, disse outra. Resumo: ninguém sabia bem o que fazer, e o destino mais certeiro do dendê usado era a água.
Em 2022, já com nome e CNPJ próprios, a ÓiaFia! finalizou a primeira tiragem de sabão. A produção, desde então, é artesanal, em um espaço reservado na casa de Flávio e Carol. O processo de transformação do dendê em sabão dura no máximo 10 minutos, mas ainda são necessários mais 20 dias para a secagem e cura. Ou seja, para deixar o produto no ponto.
Quando isso acontece, não há qualquer cheiro de acarajé. O odor do dendê é neutralizado pelos óleos naturais misturados à fórmula, sendo substituído por um aroma que lembra a citronela, aquela plantinha que vai na composição de diferentes produtos de limpeza. Os produtos não levam componentes nocivos à pele, como parafinas e parabenos.
Ao testarem os itens, as quatro baianas de acarajé que participaram do projeto piloto deram o “ok”. Todas aprovaram os produtos, mas indicaram que seria interessante alguma contrapartida. Hoje, eles compram dendê de 27 baianas. Cada litro custa R$ 1. “Bom lembrar que elas utilizam muitos litros por dia”, ressalta Flávio.
O sabão custa R$ 9,90 e os sabonetes R$ 29,90 (dura 50 banhos), no site da startup. A cada coleta, que acontece nas residências e nos tabuleiros das baianas de acarajé, a ÓiaFia!, que conseguiu apoio de editais e parceiros, também dá kits para as baianas, com insumos para o trabalho delas, como papéis de acarajé.
“Isso é o importante das iniciativas de impacto: elas precisam ser desenvolvidas com as comunidades, não para as comunidades. É uma troca”, afirma o representante da startup.
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Iniciativa promove mudanças na rotina das baianas
Depois do dendê, a startup também investiu em outras matérias-primas com apelo cultural: licuri, barbatimão e alecrim. “Então, se você fomenta um projeto desse, você ajuda o meio ambiente, com um produto de qualidade, que não agride a pele também. Estamos criando uma cadeia de valorização de pessoas, desenvolvemos produtos que comunicam histórias.”
A ÓiaFia! também atua em parceria com a Universidade Federal da Bahia (Ufba) em um projeto chamado “Baianas Sustentáveis”, voltado para o desenvolvimento do empreendedorismo sustentável das baianas. Uma delas é Maryjane Santos, 63, que monta seu tabuleiro no Terreiro de Jesus, no Centro Histórico da capital baiana, há 52 anos. “Comecei cedo, ajudando minha madrasta”, lembra.
O descarte do óleo de dendê era uma questão para a qual ninguém dava solução. “Um tempo deixei para umas meninas de escola que passavam pedindo para projetos em colégios”, recorda. Mas a quantidade de óleo usado se sobrepunha à demanda e Maryjane chegava a encher litros e litros de vasilhames com óleo de dendê usado.
“Agora a gente sabe para onde mandar, o dendê não cai na água. Isso é bom”, comemora a baiana, que executa o conceito de sustentabilidade como pode. No endereço onde trabalha, por exemplo, ela é a primeira a vender versões veganas do vatapá, caruru, abará e, claro, do acarajé.
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