BELÉM – Cauan, de 27 anos, tem medo de denunciar que a comunidade quilombola onde vive foi invadida pelo Comando Vermelho (CV), considerada a principal força do narcotráfico na Região Norte: “Sabe como é”. Juraci, de 49, mudou sua rotina após viver problema parecido: “Entram armados dizendo que vão caçar e se escondem da polícia”. Maiara, de 46, teme a cooptação dos jovens pelo tráfico de cocaína: “Está tudo tomado. Teve até morte.”
Esses são alguns dos relatos coletados recentemente por Aiala Colares Couto, pesquisador da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele ouviu moradores de territórios quilombolas como os de Pitimandeua, Macapazinho e Itaboca, todos no Pará.
O Estado recebe nesta semana a Cúpula da Amazônia, que discute estratégias para redução do desmatamento e para o combate a crimes na região. As histórias dos moradores descrevem uma rotina de medo e impotência. Os nomes foram trocados por questões de segurança.
Levantamento da Rede de Observatórios da Segurança, que teve colaboração de Couto, aponta que os crimes contra indígenas e quilombolas dispararam no Pará. Foram 232 casos no ano passado, quatro vezes mais do que dois anos antes.
A alta se deve principalmente à atuação do Comando Vermelho, soberano na região metropolitana de Belém, e do Primeiro Comando da Capital (PCC), que tem se aliado a facções menores, como Comando Classe A e Revolucionários do Amazonas, para avançar pelo sul do Estado.
Ao Estadão, Couto afirma que três fatores explicam a alta da violência: o avanço do garimpo, do setor madeireiro e do narcotráfico. “Como são três dinâmicas criminais que se sobrepõem e muitas vezes se articulam nesses territórios invadidos constantemente, há maior vitimização desses grupos”, diz. “Isso coloca principalmente as lideranças e as pessoas que convivem diretamente na comunidade em risco.”
Foram contabilizados, conforme o relatório, 474 crimes em territórios indígenas e quilombolas de 2017 até 2022. Roubos, furtos e ameaças correspondem a 40,72% dos casos, mas também houve notificações de 47 homicídios nesses espaços e de 23 ocorrências de crimes sexuais. Os municípios de Moju e Acará, nos arredores de Belém, somam quase um terço das vítimas.
Pesquisadores afirmam que, enquanto o Amazonas é visto como a grande porta de entrada das drogas que vêm de Peru e Colômbia (com destaque para o escoamento pelo Rio Solimões), o Pará é um “corredor de exportação”, uma vez que o Estado tem portos, como o de Vila do Conde, em Barcarena, com grande capacidade de envio de carregamentos para África e Europa. A rota é disputada pelo crime organizado.
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‘Entram na vulnerabilidade da comunidade, e vão ficando’
“Quando o governo aperta o cerco aqui em Belém, dentro dos grandes bairros onde tem tráfico pesado, eles vão todos para as pequenas cidades. Lá, vão para a área rural, entram na vulnerabilidade da comunidade, e vão ficando”, diz Raimundo Hilário, coordenador executivo da ONG Malungu e liderança de uma comunidade quilombola em Salvaterra, na Ilha do Marajó (PA).
Segundo ele, o avanço da violência nas comunidades tradicionais gera uma rotina de tensão entre os povos tradicionais. Em resposta a isso, muitos passaram a adotar medidas de segurança extras nos últimos anos, em uma espécie, como ele próprio chama, de “liberdade forjada”. O medo entre os moradores é constante, relatam lideranças indígenas e quilombolas.
“A gente orienta que as pessoas andem em grupo, de cinco para cima. Não dá para sair com dois, não dá para sair só, porque eles já demonstraram poder grande de fogo”, conta Hilário. “Para o quilombola sair do território tem de dizer onde vai, o que vai fazer, que horas volta, por que vai. É humilhante.”
A gente orienta que as pessoas andem em grupo, de cinco para cima. Não dá para sair com dois, não dá para sair só, porque eles já demonstraram poder grande de fogo.
Raimundo Hilário, coordenador executivo da ONG Malungu e liderança de uma comunidade quilombola em Salvaterra
Essa rotina não é exclusividade do Pará: também pode ser observada em outros locais da Amazônia. Liderança indígena em comunidade do Amapá e coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Kleber Karipuna afirma que vários povos começaram a trabalhar de forma mais ativa para proteger suas comunidades e denunciar invasões de forma mais ágil.
Os grupos usam tecnologias para incrementar as chamadas “andanças”, espécies de rondas pelos territórios. “Tem uso de equipamentos como drones, para fazer monitoramento aéreo; GPS, para tirar coordenadas; câmeras fotográficas. Muitos atuam até com aquela câmera de sensor na mata”, diz.
PCC e Comando Vermelho cooptam jovens em comunidades
O promotor de Justiça Bernardo Albano, que coordena o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Acre, afirma que as facções buscam cooptar jovens nas comunidades. “Se a rota passa em terra indígenas, há a cooptação para que haja a passagem e a estocagem de entorpecentes”, afirma. Lideranças indígenas são ameaçadas para não intervir.
O pesquisador Aiala Colares Couto cita a necessidade de melhorias em infraestrutura, monitoramento e educação. “Para poder impedir que esses grupos estabeleçam comunicação com essas comunidades e, ao mesmo tempo, se instalem”, aponta
Como mostrou o Estadão, relatório divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) aponta que o avanço do tráfico impulsiona a ocorrência de crimes ambientais na Amazônia, com a ocupação irregular de terras, extração de madeira e garimpo ilegal.
A sobreposição de vários tipos de crime, apontam especialistas, virou “regra básica” na região, tamanha a expansão dos grupos de narcotraficantes.
Apuração do Ministério Público do Pará aponta que, sozinho, o Comando Vermelho tem cerca de 11 mil faccionados só no Estado, segundo balanço de junho. A cada doze meses, cerca de mil novos integrantes entram no braço paraense da organização. Nos dois últimos anos, 137 suspeitos foram denunciados pelo órgão por organização criminosa.
Autoridades focam em desintrusão de terras e desarticulação de facções
Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) montou um comitê interministerial de Desintrusão de Terras Indígenas, que reúne órgãos da administração pública federal e da sociedade civil organizada para a retirada de invasores das comunidades tradicionais. No fim do 1º semestre, integrantes do grupo começaram a se reunir para pensar ações no Vale do Javari (AM) – o prazo para apresentar as medidas é de 180 dias.
Em nota, o ministério diz que esse trabalho já identificou a situação de emergência tanto na terra indígena Yanomami (RR), quanto na região dos Munduruku (PA), devido ao garimpo ilegal.
“Nossa atuação tem sido efetivar as desintrusões, coibir novas invasões e punir os infratores que invadem terras indígenas”, afirma. No fim de junho, o órgão concluiu a desintrusão do território indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará, atendendo a uma decisão judicial.
Sobre a proteção de lideranças indígenas, a pasta afirma que dialoga com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para a incluir lideranças no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. Além disso, o governo ajuda em “escoltas policiais em situações específicas de lideranças que não podem circular sem apoio policial.”
Em evento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em junho, o chefe da Secretaria de Inteligência e Análise Criminal da Polícia Civil do Pará, delegado André Costa, disse que 55 pessoas são acompanhadas rotineiramente em programa de proteção do Estado. “A gente faz o acompanhamento não só somente de pessoas ligadas a ameaças do extrativismo vegetal, mas de indígenas e da população quilombola”, disse. Outros 53 casos estavam em análise.
Conforme balanço da Polícia Civil do Pará, 2,6 mil toneladas de cocaína foram apreendidas de janeiro a junho, quase o dobro de todo o período do ano passado (1,4 tonelada). A maior parte do material (2 mil toneladas) foi capturada em rotas fluviais.
O Comando Militar do Norte do Exército disse, em nota, que realiza operações em coordenação com as agências e órgãos de segurança. “Destacam-se as Operações Verde Brasil e Samaúma, cujo foco das atividades é o combate a crimes ambientais, como desmatamento e garimpo ilegal”, afirmou. “Especificamente nas terras indigenas, o Comando Militar do Norte tem cooperado no combate a ilícito, realizando ações na faixa de fronteira.”
Também em nota, a Polícia Federal afirmou que conduziu 14 operações especiais de repressão qualificada em terras indígenas este ano, resultando em R$ 1,9 milhão em bens apreendidos, além de 26 prisões em flagrante. “Além disso, foram cumpridos 13 mandados de prisão preventiva, quatro mandados de prisão temporária e 82 mandados de busca e apreensão”, disse.
O órgão também afirmou contribuir com operações de desintrusão e para desestruturar “logística, administrativa e financeiramente organizações criminosas especializadas em crimes de mineração ilegal e outros delitos”.
*Repórter viajou a Belém (PA) em junho a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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