SOROCABA - A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) autorizou a construção e operação de um aterro sanitário em distância inferior à permitida pela legislação de segurança do tráfego aéreo, no interior de São Paulo. O aterro construído pela Engep - Engenharia e Pavimentação Ltda, no município de Americana, está a 8,5 km do Aeródromo Municipal Augusto de Oliveira Salvação. A Lei 12.725/2012, do governo federal, instituiu a Área de Segurança Aeroportuária (ASA), definindo uma distância de 20 km a partir do centro geométrico da pista do aeródromo, em que a ocupação está sujeita a restrições especiais para a segurança dos aviões. Em um raio de até 10 km, são proibidas atividades como aterro sanitário, que tem alto potencial para atração de fauna, como os urubus.
+++ Cetesb nega licença ambiental para construção de termelétrica em Peruíbe
Conforme a Cetesb, a licença prévia para o aterro foi dada com base em ofício da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), datado de 13 de maio de 2008, informando não se opor ao empreendimento. Essa licença é anterior à lei federal, mas a licença de instalação, que permitiu o início das obras, foi dada em 2016, quatro anos após a vigência da lei. Já a licença de operação - que autoriza o aterro a receber lixo - só foi dada, a título precário, no dia 20 de dezembro de 2017.
+++ Obra em afluente finaliza projeto de despoluição do Rio Sorocaba
De acordo com o advogado Carlos Eduardo Ambiel, que defende grupos contrários à obra, o licenciamento deveria levar em conta as mudanças na legislação que ocorreram durante o processo, iniciado há dez anos.
+++ Estado de SP seca rio para encher tanques do Instituto de Pesca
"Quando foi dada a licença de instalação, autorizando o início das obras, em julho de 2016, a lei que proíbe aterros próximos de aeroportos já estava em vigor. Estamos tomando medidas administrativas contra o que consideramos um licenciamento irregular. Dependendo do resultado, podemos entrar com ações judiciais", disse Ambiel.
O advogado lembra que, em 2014, houve caso similar em Piracicaba, em que o MP consultou o Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Seripa), do Comando da Aeronáutica (Comaer), sobre um aterro sanitário que seria construído no Bairro Santo Antonio. O Seripa considerou que, por estar a 7,3 km da pista do aeródromo, o empreendimento não atendia os preceitos do Plano Básico de Gerenciamento de Risco Aviário. A obra foi vetada.
O processo de licenciamento do aterro de Americana, construído no entorno da Represa de Salto Grande, é alvo de duas ações judiciais e de um inquérito civil público no Ministério Público Estadual. O Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) apura se as licenças dadas pela Cetesb estão de acordo com a legislação. Conforme o Gaema, como algumas leis foram alteradas no curso do processo, será analisado se as exigências feitas pela Cetesb são compatíveis com o risco do empreendimento para o tráfego aéreo e o meio ambiente.
Represa
A região conhecida como pós-represa, onde fica o aterro sanitário, foi considerada Área de Proteção Ambiental Municipal de Americana (Apama) pela Lei 4.597 de 2008, que instituiu o plano diretor do município. Conforme o site da prefeitura, essa porção do território que corresponde à Represa de Salto Grande, até a divisa com Cosmópolis e Paulínia, teria uso predominantemente ambiental. Estão ali os maiores remanescentes de Mata Atlântica do município, que servem de refúgio para aves e animais ameaçados de extinção.
Para a vereadora Maria Giovana Fortunato (PC do B), que lidera um movimento pela revitalização da represa, o aterro é incompatível com a proposta de recuperação do manancial para servir ao lazer, ecoturismo e abastecimento público.
"O processo de licença ambiental não condiz com as leis atuais. Não foram considerados os impactos em Paulínia e Cosmópolis, que também serão afetados pelo aterro."
Segundo ela, há um esforço entre as prefeituras e o Estado para a despoluição da represa, em razão das carências hídricas da região.
A área pós-represa é considerada sensível do ponto de vista ambiental, estando entre os centros urbanos de Americana e Paulínia. A vereadora considera falta de visão estratégica e de compromisso com o futuro da cidade levar o aterro para a última área de Americana com potencial para receber empreendimentos com forte pegada ambiental e baixa taxa de ocupação.
"O município joga fora a oportunidade de ter ali uma expansão urbana sustentável. Um aterro sanitário inviabiliza, pelo tamanho da área que ocupa e pelo impacto que representa, os bons projetos que foram pensados para a região."
O município joga fora a oportunidade de ter uma expansão sustentável. Um aterro sanitário inviabiliza bons projetos pensados para a região.
Maria Giovana Fortunato, vereadora
Orgânicos
Caminhões carregados com lixo já circulam pela Estrada Municipal Ivo Macris em direção ao aterro sanitário de Americana. A estrada passa perto da barragem da represa e está cheia de buracos. Cada solavanco da carroceria deixa em pânico e assentada Eunice Pimenta, 55 anos, uma das lideranças do Assentamento Milton Santos, à beira da vicinal. "Se cai lixo ou chorume por aqui, adeus certificação", diz.
A lavradora conta que 24 das 80 famílias assentadas trabalham com produção orgânica. "Penamos quase dois anos para conseguir o certificado e, a qualquer deslize ou um simples indício de contaminação da água, podemos perder a certificação", disse.
O assentamento usa água do Córrego Jacutinga, afluente do Jaguari, formador do Rio Piracicaba, para irrigar suas lavouras. Eunice já viu sacos de lixo caídos na estrada e marcas do chorume que escorreu dos caminhões. As nascentes que alimentam o córrego têm seus "olhos d'água" - locais em que a água brota da terra - nas imediações do aterro. "Muitas delas já foram enterradas pelos tratores para a plantação de cana, mas o que sobrou precisa ser preservado. É questão da nossa sobrevivência", afirma.
Os legumes e hortaliças cultivados no assentamento são colocados em cestas e entregues aos consumidores na cidade a R$ 22 por unidade. Desde que o governo federal congelou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), as cestas garantem a renda dos assentados. "Estamos sendo cobrados pelos nossos clientes sobre a proximidade do lixão", disse. Os assentados entraram com ação de iniciativa popular contra o aterro na Justiça de Americana, pedindo o embargo das obras em razão do risco ambiental. O pedido de liminar foi negado, mas a ação ainda será julgada no mérito.
O aterro está a menos de três quilômetros de bairros como o Monte Verde, onde a família do comerciante Leandro Gomes Barbosa, de 31 anos, mantém sua padaria há uma década. "Estão passando com lixo aqui na frente e a gente já vê muito urubu." Para Rosângela Lima Sampaio, 47 anos, da núcleo Sobrado Velho, tombado pelo patrimônio municipal, o trânsito de caminhões vai piorar as condições da estrada, já precária. "Há alguns anos a ponte aqui do lado caiu e ficamos mais de um ano isolados. O asfalto não foi feito para trânsito pesado." Jucicleide Pinheiro Araujo, 30 anos, chama a atenção para o risco de acidente. "Se tomba um caminhão de lixo, contamina tudo, pois há muitas nascentes que vão para a represa ou o Rio Atibaia."
Na Praia dos Namorados, em Americana, o aguapé cobre as beiras da represa de Salto Grande, formada pelo barramento do Rio Atibaia, e denuncia a presença de esgotos. "A poluição vem de Atibaia e Paulínia e fica retida pela barragem, mas o lago ainda tem muito peixe e ninhais de aves. É impressionante como a natureza se recupera, só que não devemos abusar. Construir um depósito de lixo bem aqui, na área das nascentes, é um abuso e tanto", disse o presidente da Organização Social de Interesse Público (Oscip) Barco Escola da Natureza, João Carlos Pinto.
O barco, com capacidade para 48 passageiros, leva estudantes para conhecer as belezas do lago, num roteiro de 16 quilômetros. O projeto "Navegando nas Águas do Conhecimento" atende 13 mil alunos por ano, mas está em risco desde que perdeu o patrocínio da Petrobras, no ano passado. A prefeitura retomou as obras de revitalização da Praia dos Namorados, paradas desde 2014. "Esse lugar é lindo, mas se estivesse menos abandonado, talvez o aterro não viesse para cá", diz o jardineiro Valdimir Lisboa dos Santos, 55 anos.
Processo seguiu após consulta à Anac, diz Cetesb
A Cetesb informou que, durante a análise do projeto, verificou que o terreno do aterro estava inserido em Área de Segurança Aeroportuária do Aeroporto de Americana. No entanto, o licenciamento prosseguiu em razão do parecer favorável dado pela Anac, condicionado à adoção de medidas preventivas e corretivas quando à atração de urubus durante a disposição dos resíduos. "Além disso, está previsto um programa de monitoramento e controle de avifauna, a ser implementado durante o período de operação do empreendimento", informou a agência ambiental.
Já a Anac disse que apenas acompanha, mas não atua em processo de autorização de aterros sanitários. Conforme a agência, cabe aos municípios exercer o poder de reprimir implantações ilegais e que infringem a Lei n.o 12.725/2012. "De acordo com essa lei, atividades atrativas de fauna dentro da ASA estão sujeitas à aplicação de restrições especiais, que podem comprometer desde a sua adequação até a cessação das operações. Cabe à autoridade municipal a aplicação de sanções administrativas às atividades que estejam em desacordo com a legislação", pontuou.
Em nota, a prefeitura de Americana afirmou que o licenciamento foi feito pela Engep junto aos órgãos do governo estadual, cabendo à empresa e ao Estado cuidar dos aspectos técnicos relativos ao empreendimento. Segundo a nota, a área escolhida não é de responsabilidade da prefeitura, por se tratar de terreno particular. "É preciso destacar, no entanto, que a distância entre o aeroporto e o terreno é maior do que em relação a outro aterro da região", informou o município, sem citar a que aterro se referia.
Procurado pela reportagem, o Serviço Regional de Proteção do Voo de São Paulo informou não ter recebido qualquer solicitação da autoridade municipal sobre o empreendimento, "portanto, não existe processo em andamento referente a sua regularidade com relação à segurança de voo".
Controle
Sobre as ações judiciais e a investigação do MPE, a Cetesb informou que, desde o dia 20 de dezembro, o aterro sanitário de Americana está autorizado pela Cetesb a receber lixo, mas a licença de operação foi dada a título precário, ou seja, por um período de até 180 dias para que seja testada a eficiência dos sistemas de controle da poluição ambiental. As licenças prévia e de instalação tinham sido dadas em 2011 e 2016, respectivamente.
Conforme a Cetesb, os potenciais impactos no ambiente, incluindo contaminação do solo e das águas subterrâneas, bem como alteração da qualidade das águas superficiais, foram tratados no licenciamento ambiental prévio e as medidas mitigadoras e compensatórias solicitadas foram atendidas pela empresa. Entre elas se incluem implantação e manutenção de sistema de coleta, armazenamento e destinação de líquido percolado (chorume) para estação de tratamento de efluentes externa.
Também foram exigidos sistemas de drenagem de águas pluviais temporárias e coberturas diária e final dos resíduos, além de programa de monitoramento da qualidade das águas superficiais. A agência ambiental informou que o Comitê da Bacia Hidrográfica do Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) não se opôs a concessão de licença prévia ao aterro.
Durante o processo de licenciamento, segundo a Cetesb, foram atendidas 55 exigências técnicas feitas para garantir a segurança ambiental - fauna, flora, recursos hídricos, solo e ar -, além da sanitária e aeroportuária. "Assim, o projeto do aterro, da forma em que foi aprovado, implantado (impermeabilização e demais proteções) e como está operando, com recobrimento diário, tratamento de chorume e gases, entre outros aspectos técnicos, prevê a segurança ambiental, sanitária da população e a segurança aeroviária", concluiu.
Em todo o Estado de São Paulo, operam 36 aterros sanitários urbanos privados, licenciados pela Cetesb. O aterro de Americana ocupa área de 277 mil metros quadrados e deve receber cerca de 230 toneladas de resíduos por dia. Até o final de 2017, a prefeitura mantinha contrato para levar o lixo para um aterro privado em Paulínia. Atualmente vigora um contrato emergencial com a Engep, que já recebe o lixo da cidade.
A prefeitura informou que ter o aterro no próprio município implica em economia no tempo e nos custos do transporte. O Estado entrou em contato com a assessoria de imprensa da Engep, que informou ter enviado os questionamentos feitos pela reportagem à diretoria, A Engep preferiu não se manifestar.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.