Houve um tempo em que a sua realidade, dentro de casa, na cidade, parecia pouco ou nada influenciada pelo que acontecia a milhares de quilômetros com uma espécie animal em perigo de extinção. Se o hábitat de uma arara-azul-de-lear, por exemplo, na caatinga baiana, estivesse em perigo, isso poderia até te sensibilizar, mas sua vida seguiria sem sofrer maiores consequências.
Em meio à pior crise sanitária global dos últimos cem anos, fica cada vez mais evidente que essa realidade não é o que parecia. Uma série de estudos vem apontando para a cada vez mais provável relação entre a atividade humana, a queda da biodiversidade no planeta e o surgimento de novos surtos e doenças. Essa é uma das hipóteses mais aceitas para a origem da covid-19, na China.
Assim, a queda da biodiversidade em escala global e o avanço da presença humana em áreas em equilíbrio estariam colocando não apenas fauna e flora em perigo, mas o próprio ser humano. Hoje, data escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para comemorar o Dia Internacional da Biodiversidade, o problema fica mais claro quando se olha para os dados mais recentes sobre a diminuição do número de espécies e o avanço do desmatamento.
Estatísticas da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), ligada à ONU, mostram que quase 1 milhão de espécies animais e vegetais estão ameaçadas de extinção no planeta. Algumas delas em perigo nunca antes visto na história humana. Se ainda assim sua vida parece poder passar ilesa a essa realidade, um estudo liderado pela University College London, publicado na revista Nature, em 2020, é uma má notícia. A pesquisa avaliou 6.800 comunidades ecológicas em seis continentes e concluiu que a ação humana em áreas nativas, seja pela agricultura, extrativismo ou avanço das cidades, resulta na óbvia extinção de algumas espécies e na permanência e aumento de outras mais propensas a hospedar patógenos potencialmente perigosos que podem "pular" para os humanos.
Mais de 3,2 milhões de registros de centenas de estudos ecológicos ao redor do mundo foram analisados. Florestas nativas, áreas agrícolas e urbanas entraram na pesquisa. Os resultados apontaram para o aumento de espécies conhecidas por hospedar doenças transmissíveis aos humanos de acordo com a diminuição da biodiversidade em geral. Roedores, morcegos e primatas são algumas delas. Os morcegos, aliás, são apontados como os mais prováveis hospedeiros originais do coronavírus transmitido em algum momento para humanos em Wuhan.
Em dezembro, uma equipe da Organização Mundial da Saúde (OMS) visitou o lugar atrás de evidências que pudessem ligar o centro de compras local ao surgimento da doença. Ali, ao menos quatro pessoas relataram uma estranha pneumonia sem causas conhecidas, em 2019. "É uma hipótese muito plausível", diz o biólogo e pesquisador do Centro Universitário Saúde ABC, da Faculdade de Medicina do ABC Gabriel Laporta.
Exemplos de perigosa interação não faltam. No caso dos vírus HIV, causadores da aids, e do ebola as evidências são fartamente registradas, afirma o pesquisador. "No caso do coronavírus ainda faltam mais evidências, mas é muito provável que esse 'spillover' (termo para a transmissão para seres humanos) tenha ocorrido pelo contato."
No Brasil, o aumento da incidência e a migração de doenças como a febre amarela também são claras evidências. Originária da Região Amazônica, se espalhou até atingir a Mata Atlântica, no litoral brasileiro. Entre 2016 e 2018, a Região Sudeste foi atingida por uma epidemia de febre amarela, mais de 2.500 casos foram registrados em seres humanos e mais de 1.500 em macacos, de acordo com o Ministério da Saúde. "As doenças vetoriais são bons exemplos dessa interação", afirma Laporta. Interação facilitada pelo desmatamento dos locais em que esses vírus e seus hospedeiros estão em equilíbrio natural. Para o biólogo, a pandemia do coronavírus coloca em xeque a manutenção da existência humana no planeta com os atuais níveis de consumo. "É um fator limitante. Há a possibilidade de termos atingido essa situação."
Nesse cenário, dados do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram que o perigo de novos surtos da doença e de outras desconhecidas não está fora de questão. Durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a Região Amazônica vem sofrendo a ação de desmatamento de forma sem paralelos nos últimos anos. Os alertas de desmatamento na área nos dois primeiros anos do governo Jair Bolsonaro foram, em média, 82% superiores à média dos alertas dos três anos anteriores. A alta é confirmada por outro sistema do Inpe, o Prodes, com dados oficiais.
Em abril, a região registrou também o maior índice de alertas de destruição para o mês em toda a série histórica, que começou em 2015 com a operação do satélite Deter B. O desmatamento cresceu 42% em relação ao mesmo mês do ano passado. Foram 581 km² até o dia 29, ante 407 km² em abril de 2020. Um total de 58 mil hectares de floresta, o equivalente a cerca de 58 mil campos de futebol, se perdeu em apenas um mês.
Longe da Amazônia, no entanto, está o bioma brasileiro com o maior número de espécies ameaçadas (1.989), a Mata Atlântica. Ou, nada menos do que 25% do total. A enorme biodiversidade local e de recursos ajuda a explicar a pressão sobre o meio ambiente local.
Ameaças
De forma geral, no País, o que mais ameaça as espécies animais e vegetais são a agropecuária, a expansão de áreas urbanas, produção de energia e a poluição, de acordo com dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Em alguns casos, no entanto, a beleza de uma espécie acaba sendo sua grande inimiga. Um estudo publicado nesta semana na revista Biological Conservation indica que a atratividade de um pássaro e a capacidade de vendê-lo em mercados legais são as duas principais motivações para o comércio ilegal na Indonésia. A pesquisa relaciona a atividade com a possibilidade de surgimento de novos vírus em seres humanos.
Se o mesmo se aplicar ao Brasil, o que parece ser fato, a ameaça a duas das mais bonitas espécies do País se explica. A arara-azul-de-lear (do começo desta reportagem) e a ararinha azul, ambas nativas da região da caatinga baiana.
Enquanto a primeira está atualmente em perigo de extinção, a segunda não existe solta na natureza desde 2000, quando o último espécime, um macho, não foi mais visto. Um amplo programa de conservação mantém a arara-azul-de-lear em menor perigo de desaparecer que sua quase homônima.
No Zoológico de São Paulo, ao menos cinco indivíduos são preparados para serem reintroduzidos em seu hábitat natural, diz a bióloga Fernanda Junqueira Vaz Guida, responsável pelo setor de aves do parque. No total, 16 dessas araras são criadas no local, longe da visitação pública, e outras 11 no Centro de Conservação da Fauna Silvestre do Estado de São Paulo, vinculado ao zoo. Há ainda em outros países da Europa como Espanha e Alemanha, onde também são criados para que se mantenha a variabilidade genética da espécie.
Livres existem cerca de 1.700 indivíduos no Brasil, número que já foi muito maior. "Eles vivem em uma região em que na época de baixa do coquinho de que eles se alimentam acabam atacando as plantações de milho. Muitos são mortos", diz a bióloga. "Hoje, há um trabalho de educação ambiental muito grande sendo feito para evitar que isso ocorra."
Na mesma região da Bahia, o ICMBio conseguiu em abril procriar os primeiros filhotes da ararinha-azul em 30 anos. Pode não parecer, mas notícias assim podem interferir positivamente na sua vida.
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