Biólogo cruza 80 mil km na Amazônia atrás de botos: ‘Cheguei arrogante e vi que não sabia nada’

‘Estadão’ vai ao Peru acompanhar trabalho de cientista que mede efeitos da crise climática em uma das principais espécies da floresta; ele conta ainda sobre como aprendeu com a biodiversidade e as comunidades locais

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Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL A IQUITOS (PERU) - Durante um dia e meio navegando pelo Rio Amazonas a partir de Iquitos, no Peru, quase nada perturba o bom humor e o sorriso carismático do biólogo Fernando Trujillo.

O ar boa-praça do pesquisador colombiano só dá lugar à apreensão quando, depois de horas percorrendo o maior rio do planeta em direção a um de seus afluentes, o Nanay, declara ter contado ali menos de duas dezenas de golfinhos de rio - ou botos, como são mais conhecidos no Brasil.

O biólogo marinho colombiano Fernando Trujillo em busca por golfinhos de rio no Amazonas, em Iquitos, Peru Foto: Sofía López Mañán/Rolex

As aparições demoram, e ele sabe que esses mamíferos do topo da cadeia alimentar já foram bem mais abundantes.

Quando avistados, todos no barco apontam na mesma direção, chamando atenção para os dorsos cinzentos que cintilam brevemente fora d’água em movimento semicircular.

É difícil acompanhar os golfinhos, que nadam velozes em bando, saltam, e logo desaparecem. Mas Trujillo está habituado à busca e a contagem não é mero passatempo.

Boto emergindo do Rio Amazonas Foto: Fernando Trujillo/National Geographic

Com outros membros da Fundação Omacha, organização que criou, e cientistas da Iniciativa Golfinhos de Rio da América do Sul (Sardi, na sigla em inglês), mais de 80 mil quilômetros de rios já foram percorridos em sete países.

O objetivo é rastrear esses predadores emblemáticos da fauna amazônica, que vêm se tornando cada vez mais raros em toda a bacia.

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Todas as seis espécies de botos na Ásia e na América do Sul - locais de ocorrência natural desses animais - estão ameaçadas de extinção, segundo a organização internacional WWF.

Desertos de água

Trujillo foi nomeado em 2024 Explorador do Ano pela National Geographic e Rolex, que capitaneiam desde 2022 a expedição Perpetual Planet na Amazônia. O título é um reconhecimento aos quase 40 anos em que se dedica a acompanhar a evolução das populações de golfinhos de rio na Amazônia.

Ele foi um dos responsáveis pela criação, no início dos anos 2000, de uma metodologia para verificar a estabilidade ou flutuação dessas populações na bacia amazônica.

Embarcação no Rio Amazonas nas proximidades de Iquitos, no Peru Foto: Sofía López Mañán/Rolex

A técnica é usada há mais de uma década pela Sardi, mobilização que une cientistas e organizações pelo monitoramento e conservação de golfinhos fluviais na América do Sul.

Os cientistas seguem seguem um modus operandi preciso: colocam-se nas duas extremidades de uma embarcação e realizam percursos cobrindo uma área de até mil quilômetros de um rio, fazendo a contagem dos golfinhos que servirá para calcular a densidade populacional naquele trecho.

Eles já estiveram nos rios Orinoco, Amazonas, Tocantins e outros. “É como se fosse um censo de golfinhos”, compara.

O levantamento inclui também avaliações da saúde dos animais, em que as equipes os retiram da água para fazer exames de sangue e ultrassons.

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Hoje, há esforço de diferentes organizações na Amazônia em capacitar comunidades locais para fazer esse trabalho - com a crise climática, a translocação de botos doentes deve se tornar cada vez mais frequente.

No Brasil, nas regiões de Tefé e Coari (AM), 330 botos foram achados mortos em 2023 por causa, principalmente, da temperatura das águas, em evento sem precedentes. Neste ano, mais de 40 já morreram devido à seca recorde, segundo o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

As pesquisas buscam avaliar não apenas a saúde dos botos, mas também dos rios: por serem muito sensíveis à contaminação, eles são bioindicadores precisos da saúde ambiental dos ecossistemas.

As ameaças a seu habitat natural são muitas, entre elas a perda de conectividade dos rios amazônicos com hidrelétricas, desmatamento, mudanças climáticas e contaminação por mercúrio, muito usado na mineração ilegal. Como o Estadão mostrou, as autoridades têm usado até navio de guerra para caçar garimpeiros em Roraima.

Com isso, o “censo” feito pelos cientistas traz um diagnóstico alarmante: as populações de botos estão diminuindo por todos os lados da bacia amazônica.

O biólogo marinho Fernando Trujillo, avalia a saúde de golfinho de rio em cativeiro no Zoológico de Quistococha, em Iquitos, no Peru Foto: Estefania Rodriguez/National Geographic

No trecho do Rio Amazonas que liga Iquitos, no Peru, e Leticia, na Colômbia, o número de botos-cor-de-rosa diminuiu 52% e a de botos-cinza caiu 37% em três décadas, revela levantamento da Omacha.

“Ter menos golfinhos é indicador de que a saúde dos rios está comprometida”, afirma Trujillo. “São desertos d’água, áreas onde se vê a floresta e o rio, mas não golfinhos, peixes nem pescadores.”

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Alerta sonoro para afastar animais das redes de pesca

A convivência com humanos, em particular pescadores, é outro problema. Extremamente inteligentes e hábeis, os botos aprenderam a se aproximar das redes de pesca e a arrancar os peixes delas, e são vistos como “ladrões”. Isso gera conflitos, em que os animais são atacados e mortos, e também captura acidental de animais que ficam presos nas redes.

Pescadores usam rede de pesca no Rio Amazonas nas proximidades de Iquitos, no Peru Foto: Sofia Lopez Mañan/Rolex

Contra isso, Trujillo e outros apostam na educação ambiental, mas há também soluções tecnológicas sendo postas em prática.

A pesquisadora brasileira Mariana Frias, coordenadora do Sardi e analista de conservação do WWF-Brasil, tem feito estudos com o uso de um dispositivo acústico para afastar os golfinhos das redes e minimizar esses conflitos.

Os testes utilizam uma ferramenta chamada LoudPinger, um objeto com formato semelhante a uma banana que emite uma frequência mais alta que aquela de comunicação dos botos, a cerca de 40 kHz. A ideia é que funcione como um sinal de alerta, incomodando os animais para que não permaneçam próximo às redes.

Seu uso mostrou resultados parcialmente positivos na bacia do Tapajós, mas ainda precisa de mais estudos. Com apoio da National Geographic e Rolex, Frias levou o projeto para a região de Manaus para seguir com a validação do LoudPinger como um meio de promover a paz entre botos e humanos.

“Os botos também têm direito de uso dos recursos e do habitat, que é a casa deles. O projeto busca melhorar a coexistência entre pescadores, que dependem do pescado para comércio e consumo diário, e os botos, que também dependem primariamente dos peixes como fonte alimentar”, diz ela.

Turismo para observar animais vira saída de preservação

Nos últimos quatro anos, Trujillo e sua equipe também têm rastreado os golfinhos de rio para identificar quais as áreas prioritárias a serem preservadas nos rios com a finalidade de proteger as espécies.

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“Agora sabemos que existem algumas áreas específicas, hotspots para os ecossistemas aquáticos onde é possível encontrar peixes-boi, ariranhas, jacarés, golfinhos”, afirma. Uma vez mapeadas, a ideia é pressionar por políticas públicas de conservação que incidam nestes locais.

Essa tem sido parte importante da atuação da Omacha: fomentar soluções em colaboração com as populações locais, como a consolidação de acordos de pesca, além de mecanismos internacionais de conservação, como definir sítios Ramsar (zonas úmidas de importância internacional) e os chamados Outros Mecanismos Espaciais Eficazes de Conservação (OMECs).

O boto-cor-de-rosa é um dos animais símbolo do bioma amazônico, mas sofre com ameaças a seu habitat que vão das mudanças climáticas a ataques de pescadores Foto: Sofia Lopez Mañan/Rolex

Nas negociações, Frias, Trujillo e outros pesquisadores atuam como “embaixadores” dos golfinhos de rio. Foi assim que conseguiram que 11 países, entre eles o Brasil, assinassem desde 2023 uma declaração global pela proteção das espécies ameaçadas desses animais.

Outra estratégia é tornar os botos atração do turismo sustentável, com a formação de centenas de guias locais. Segundo Trujillo, a atividade chegou a gerar mais de US$ 8,3 milhões (cerca de R$ 47 milhões) em um ano em um trecho de só 40 km do Amazonas na Colômbia.

O biólogo quer replicar e expandir o que tem dado certo para outras regiões. “Tem coisas positivas acontecendo em diferentes comunidades. A menor escala, a mais local, importa porque podemos trocar experiências e amplificar (as soluções)”, defende.

Cousteau na Amazônia e fuga de cidade do tráfico

Em meados dos anos 1980, o lendário explorador da vida marinha Jacques Cousteau fez uma expedição pela Amazônia. Nessa passagem, deu palestra na Universidade Nacional da Colômbia que marcou um jovem estudante de Biologia.

O explorador Jacques-Yves Cousteau foi pioneiro na divulgação do mundo submarino Foto: The Cousteau Society

“Dois anos depois, terminei num avião de carga, sem dinheiro, indo para a Amazônia”, conta Trujillo.

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A menção do mergulhador francês aos golfinhos de rio, ainda pouco estudados naquele momento, capturou a atenção de Trujillo. Foi em busca deles que aterrissou em Leticia, cidade amazônica na fronteira entre Colômbia e Brasil, que encontrou tomada pelo narcotráfico.

Assustado, seguiu para Puerto Nariño, pequeno povoado no qual trabalharia pelos próximos 37 anos e que hoje abriga o Centro de Conservação Amazônico Omacha.

“Cheguei com a arrogância do universitário que pensa que sabe tudo e me dei conta que não tinha ideia de nada. Os indígenas foram meus professores”, conta.

Trujillo passou a desenvolver pesquisas sobre os golfinhos de rio e, em paralelo, a trabalhar com educação ambiental em Puerto Nariño. Em 1993, fundou a Fundação Omacha e construiu uma estação biológica que se tornou o centro das atividades da organização.

Ao longo dos anos, foram muitos os desafios que o desestimularam, de falta de financiamento a ameaças de morte por contrariar interesses econômicos da indústria da pesca na Colômbia. Nos momentos difíceis, recebeu incentivos que o levaram a seguir.

Foram os indígenas Ticuna que o batizaram com a palavra que daria nome à organização, “omacha”.

Depois de muito estranhar ser chamado assim e de explicar que seu nome era Fernando, recebeu um dia a justificativa de que omacha era simplesmente boto, e de que ele seria um boto transformado em gente para proteger seus semelhantes. “Me pareceu uma metáfora muito linda: nos colocarmos na pele de uma espécie para fazer algo por ela.”

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*A repórter viajou a convite da Rolex, pela Iniciativa Perpetual Planet

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