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Como é a megaobra no coração da Amazônia suspensa pela Justiça?

Juíza vê ‘inviabilidade ambiental’ de BR-319, que liga Porto Velho a Manaus; Ibama afirma não ter sido intimado e Dnit diz avaliar providências. Governo tem citado estruturas para reduzir impactos

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Foto do author José Maria Tomazela
Foto do author Roberta Jansen

A Justiça Federal mandou suspender, na quinta-feira, 25, a licença prévia para reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR-319, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, no Amazonas. O trecho central, de 405 quilômetros, corta algumas das porções mais preservadas da Floresta Amazônica.

A decisão, de caráter liminar, foi dada pela 7.ª Vara Ambiental e Agrária do Amazonas, em ação movida pelo Observatório do Clima, rede de organizações da sociedade civil para a agenda climática. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que deu a licença prévia, ainda pode recorrer.

Com quase 900 quilômetros de extensão, a BR-319 corta a Amazônia diagonalmente, ligando a capital de Rondônia à do Amazonas. Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO - 31/08/2019

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Procurado, o Ibama informou que ainda não foi formalmente intimado sobre a liminar e irá se manifestar oportunamente, após tomar conhecimento da decisão.

O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), também no polo passivo da ação, já foi notificado e analisa o caso.

“Seguem em curso os estudos e projetos necessários para continuidade da licença ambiental, seguindo todos os requisitos prévios para avançar no empreendimento, cumprindo as condicionantes e respeitando as premissas ambientais”, disse, em nota.

Em abril, o Ministério dos Transportes havia dito ao Estadão que estudava incluir na obra estruturas que evitassem a degradação do bioma, como barreiras laterais para impedir o acesso à mata (leia mais abaixo). “Será uma rodovia com cercamento em áreas de floresta, com passagem de fauna subterrânea e aérea”, disse o ministro Renan Filho em junho.

Ambientalistas dizem que asfaltamento facilitaria o acesso de grileiros e madeireiros à região. A gestão Luiz Inácio Lula da Silva se comprometeu com uma meta de desmatamento zero na Amazônia até 2030 e apresenta a causa ambiental como uma das suas principais bandeiras em fóruns internacionais.

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Já defensores do projeto ressaltam a importância da ligação terrestre entre Manaus e Porto Velho, sobretudo para escoar a produção agropecuária.

Com cerca de 885 quilômetros de extensão, a estrada corta ou margeia 42 unidades de conservação estaduais e federais e 69 territórios indígenas. A ligação é a única por rodovia entre Manaus e a capital de Rondônia.

Trecho praticamente intransitável

A BR-319 foi construída em 1973, no regime militar, e permaneceu trafegável durante 15 anos. A partir de 1988, no trecho de floresta mais densa, a rodovia começou a desmoronar e está praticamente intransitável há mais de três décadas.

A Manaus-Porto Velho foi construída na época da ditadura, em um contexto de promover a ocupação da Amazônia de forma a garantir o controle estratégico sobre a região. A estrada foi aberta com a derrubada da mata e construção do leito carroçável entre 1969 e 1976, quando foi inaugurada pelo então presidente, o general Ernesto Geisel. O asfaltamento dos trechos principais logo começou a se deteriorar.

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Hoje, apenas o trecho entre Porto Velho e Humaitá, no sul do Amazonas, com 180 quilômetros, está pavimentado e em boas condições. Quem sai de Manaus também percorre sem grandes problemas cerca de 220 km. Daí em diante, a estrada tem trechos de asfalto destruídos e a maior parte em terra. Há também pontes avariadas.

Após décadas de abandono, em 2019 foi publicado publicado edital de licitação para contratar o projeto básico e executivo de engenharia para a pavimentação do trecho do meio. A licença prévia para o trecho foi emitida pelo Ibama em 2022.

Naquele ano, na campanha eleitoral, o então candidato Lula já havia acenado com a retomada das obras, durante entrevista a uma rádio de Manaus (AM). Ele disse ser “plenamente possível” fazer a conexão rodoviária. “O que nós não podemos é tentar achar que existe algum tema proibido. Não existe tema proibido”, defendeu.

Em abril de 2024, o Observatório do Clima entrou com ação civil pública pedindo a revogação, com o argumento de que ela desconsiderou dados técnicos, análises científicas e pareceres do próprio Ibama elaborados ao longo do licenciamento, apontando o risco de destruição da floresta.

Na liminar, a juíza Maria Elisa Andrade disse que a licença prévia contraria 15 anos de “reconhecimento técnico categórico” de que a obra é ambientalmente inviável. “Não estamos a tratar de outra questão senão a inviabilidade ambiental do empreendimento da BR-319, independentemente de quem seja responsável por tais políticas públicas de controle e prevenção do desmatamento”, escreveu.

Logo, prosseguiu a magistrada, “não se trata de ‘pré-condicionantes ao licenciamento’, mas de verdadeira inviabilidade ambiental da obra, até que o cenário de governança ambiental e fundiária seja drasticamente fortalecido por diferentes atores públicos”.

Segundo ela, o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) foi subdimensionado. “Em última análise, o subdimensionamento dos impactos ambientais de grandes empreendimentos tende a esvaziar compromissos nacionais assumidos para mitigar a crise climática”, afirmou. Caso a decisão seja descumprida, foi fixada multa de R$ 500 mil.

Conforme Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, a licença prévia que foi suspensa atestou a viabilidade de uma obra que gerava muita degradação.

Ainda segundo ela, ex-presidente do Ibama na gestão Michel Temer (MDB), não há condicionantes no projeto que assegurem o controle da explosão do desmatamento que a pavimentação da estrada vai causar. “A importância dessa decisão é gigantesca”, diz. A ação ainda será julgada no mérito.

Governo diz prever estruturas para evitar consequências ambientais na estrada, que liga Porto Velho a Manaus Foto: Reprodução/ Relatório do Grupo de Trabalho da BR-319

Estudo publicado na Environmental Monitoring and Assessment, assinado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), diz que a reconstrução da BR-319 aumentaria a perda de vegetação ao longo da rodovia e também nas estradas vicinais conectadas em 60% até 2100, em relação ao desmate no cenário projetado sem a reconstrução.

“Trata-se de região crítica para a preservação da floresta e, ao mesmo tempo, vulnerável, com muitas terras públicas não destinadas”, disse ao Estadão o cientista Philip Martin Fearnside, do Inpa, principal autor do trabalho, em entrevista em abril.

“Os grileiros estão esperando a construção da estrada, fazem grande lobby por isso, é importante termos um modelo matemático que mostre o enorme impacto da obra”, continuou o biólogo, que fez parte do painel da Organização das Nações Unidas (ONU) que ganhou o Nobel em 2007 por alertar sobre a crise climática.

Do ponto de vista climático, um aumento do desmate da Amazônia nessa proporção teria impacto significativo nos chamados “rios voadores” – imensos volumes de vapor de água que vêm do Oceano Atlântico, ganham corpo na Amazônia e seguem para os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e, algumas vezes, até o Sul.

Já o professor de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Augusto Rocha disse que a discussão é conduzida de forma superficial e polarizada. Para ele, a ausência do Estado em uma região intocada, com acesso terrestre comprometido, também abre espaço para atividades ilegais.

“Não se trata de fazer uma rodovia a qualquer custo, cometendo os mesmos erros cometidos na Transamazônica, sem salvaguardas ambientais. Mas tampouco devemos deixar a floresta completamente intocada. Temos de enfrentar o assunto tecnicamente”, afirma.

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Ministério previa conceito de estrada-parque

Em abril, o Ministério dos Transportes informou ao Estadão que trabalhava com o conceito de estrada-parque, o que preservaria a floresta e das comunidades locais.

  • A via teria barreiras laterais de até quatro metros de altura, com poucos acessos à mata, e apenas com passagens para os animais.
  • Teria também ao menos três portais de monitoramento.
  • Outras medidas eram estudadas, como proibir o trânsito de caminhões levando madeira não certificada, por exemplo, ou maquinário pesado usada para o desmate.

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