Capivara filó: Por que é proibido domesticar animais silvestres no Brasil? Entenda

Animal motivou disputa judicial entre Ibama e influencer; criação de forma legal está condicionada à origem da espécie

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Foto do author Isabel Gomes

O recente caso que colocou a capivara Filó no centro de uma disputa judicial entre o influenciador Agenor Tupinambá e o Ibama fez ganhar força o debate sobre criar animais silvestres como bichos de estimação. No Brasil, a prática é limitada pela Lei de Crimes Ambientais, que proíbe a utilização, perseguição, destruição e caça de animais silvestres sem a devida permissão, licença ou autorização. Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, a restrição é uma via de mão dupla: visa a proteger tanto os animais, quanto a população.

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Segundo a Lei 9.605/1998, a criação de um animal silvestre de forma legalizada está condicionada à origem do animal, isto é, se é procedente de um criadouro autorizado pelo Ibama ou por órgãos ambientais ligados aos Estados. A pena prevista para o crime é de detenção de 6 meses a 1 ano e multa, podendo ser dobrada em casos mais graves, como crime praticado contra espécie em extinção.

A pena pode ser aplicada a quem “vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.” A norma ainda descreve que, no caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, o juiz pode deixar de aplicar a pena, a depender das circunstâncias.

Segundo Paulo Mota, médico veterinário integrante do Núcleo de Reabilitação da Fauna Silvestre da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a regulamentação existe para manter um controle e rastreabilidade de onde o animal foi criado e impedir o tráfico de animais. “Quando você não tem a origem do animal, você não sabe dizer se foi criado com boas intenções. O tráfico de animais é um grande problema no Brasil, uma das principais formas de tráfico seguido de drogas e armas. Esses animais morrem no caminho por condições inadequadas de transporte e cuidado”, explica o veterinário.

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Criação de animais silvestres veio à tona a partir do caso da capivara Filó e o influenciador Agenor Tupinambá.  Foto: Reprodução/Tiktok@joanadarc_am

De acordo com a organização não governamental WWF-Brasil, o Brasil é um dos maiores exportadores de animais silvestres de forma ilegal. Uma das explicações é a riqueza na biodiversidade brasileira, tornando o território uma fonte de animais para outros países. Entretanto, o crime também ocorre internamente. Segundo a organização, a maioria dos animais silvestres é capturada nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, mas a principal rota de transporte desses animais está no sentido da região Nordeste para a Sudeste.

De acordo com a ONG, as aves estão entre os animais mais procurados para compra e venda, especialmente papagaios, araras e periquitos. Outras espécies como onças, macacos, cobras, tartarugas, peixes, insetos e aranhas também são alvos de ações criminosas.

Riscos aos humanos incluem ataques

Levar animais silvestres para dentro de casa também pode representar riscos à saúde, explica Moira Ansolch, integrante do Grupo de Trabalho em Saúde da Sociedade Brasileira de Primatologia. “No momento em que você tira o animal da natureza, ele deixa de cumprir seu papel lá, de reproduzir, caçar, semear as florestas. Além do mais, você não sabe que tipo de doença você pode estar levando para sua casa. A pandemia surgiu justamente dessa interação desordenada com o meio natural”, relembra.

Doenças como tuberculose, febre amarela, raiva e verminoses estão entre as mais de 150 zoonoses que podem ser transmitidas nesse convívio sem cautela. No caso da capivara, por exemplo, há o risco da existência de carrapato, transmissor da febre maculosa, doença infecciosa que pode variar desde casos leves até formas graves, com elevada taxa de letalidade. “A própria covid-19 ficou comprovada que pode ser transmitida do humano para o animal. Se a gente começa a brincar de levar animal para casa, quem garante que não vai estar gerando uma covid-19 de outra espécie?”, questiona Moira.

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A especialista ainda chama atenção para o risco de ataques vindos dos animais. Por não serem domesticados, ao crescer, o comportamento instintivo dos bichos pode representar algum risco aos tutores. “Não quer dizer que vai atacar do nada, mas às vezes até um cachorro causa um acidente. A gente não tem uma previsibilidade de comportamento. Quando chega em idade reprodutiva, o animal quer exercer seus comportamentos, e aí que acontecem os acidentes, como às vezes se observa em zoológicos ou em circos”, explica.

Ilegalidade ameaça bem-estar do animal e equilíbrio da fauna

Se a retirada ilegal dos animais da natureza ocorrer em grande escala, os impactos ambientais são diversos. De acordo com o médico veterinário da UFPel, a ação pode provocar defaunação, termo utilizado quando há uma significativa queda do número de indivíduos de de espécies animais em seus habitats, por meio da ação humana. A ação pode provocar um desequilíbrio ambiental.

Para além dos danos à fauna, Mota destaca que animal escolhido como pet também pode ter seu bem-estar afetado por ser retirado de seu ambiente natural e da interação social com outros indivíduos da espécie. “Todo animal tem uma exigência mínima, que inclui questão alimentar, tamanho do recinto, enriquecimento ambiental, contato com indivíduos da mesma espécie.”

Moira também enfatiza o impacto na qualidade de vida do bicho, podendo gerar problemas nutricionais e de comportamento, por exemplo. “Mesmo os animais legalizados acabam tendo uma série de problemas. As pessoas não conseguem manter a dieta adequada. A vida livre tem uma dieta extremamente complexa, que é difícil de oferecer em casa”, argumenta. “Ou o animal muda de comportamento para se adequar àquela realidade, ou acaba não mudando o seu comportamento natural e acaba provocando acidentes.”

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A especialista chama o atenção para o papel das redes sociais na disseminação do comércio ilegal de animais. A Sociedade Brasileira de Primatologia promove a campanha “Macaco não é pet”, que defende a permanência dos animais em seu habitat natural. Segundo cartilha publicada pela sociedade, o comércio legal fomenta o tráfico, uma vez que quem compra exibe seus pets nas mídias, aumentando a busca por animais ilegais.

No caso da Filó, o influenciador Agenor Tupinambá ficou conhecido por mostrar sua rotina com a capivara. “Garanto que os erros que cometi foram inconscientes, sem má índole nem qualquer tentativa de exploração. Absolutamente nenhum vídeo com ela me trouxe qualquer resultado financeiro. Era apenas eu com um celular na mão, registrando a minha própria vida ribeirinha”, afirmou.

Nesses conteúdos, Moira alerta: “Se você publicar uma imagem com um animal, que tenha então um contexto, porque o primeiro comentário é sempre ‘eu quero ter um’. As pessoas têm que entender que animais não são mercadoria. Eles têm um papel na natureza, que definitivamente não é usar roupinha ou plaquinha no pescoço.”

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