O Brasil tenta, nos últimos anos, acelerar o processo de descarbonização do transporte coletivo, um dos caminhos para frear as mudanças climáticas. Uma das principais apostas nessa área, a troca dos ônibus convencionais por elétricos, tem esbarrado em dificuldades como o alto custo dos veículos e a infraestrutura de operação.
Em termos de eletrificação do transporte coletivo, estamos atrás de vizinhos sul-americanos. Segundo o radar E-BUS, plataforma que monitora o uso desses veículos na América Latina, o Chile tinha 2.310 ônibus elétricos em dezembro de 2023, seguido por Colômbia (1.590) e México (654). O Brasil tinha apenas 444.
O Novo PAC Seleções, lançado em setembro, prevê R$ 10,6 bilhões e condições especiais de financiamento para municípios e Estados renovarem suas frotas de trens e ônibus – em especial, para comprar veículos elétricos.
No Brasil, ao menos 16 municípios ou regiões metropolitanas têm esse tipo de veículo circulando, de acordo com o E-BUS. E, segundo o governo federal, mais de 50 municípios e regiões metropolitanas contam com recursos liberados para aquisição de ônibus elétricos via PAC.
A previsão total do governo é de 2.296 novos veículos deste tipo. Mas parte dos Estados e municípios ainda não fechou contrato de financiamento e aquisição e, mesmo que todos o façam, o país ainda seguirá muito atrás proporcionalmente; a população brasileira é cerca de 10 vezes maior que a chilena e quatro vezes maior que a colombiana.
- Salvador, que até dezembro de 2023 tinha oito ônibus elétricos em circulação, deve adquirir ao menos mais 94 via PAC. Segundo o secretário de Mobilidade da cidade, Fabrizzio Muller, já foi construído um terminal elétrico público, com capacidade para carregar 20 ônibus simultaneamente;
- Campinas estuda contratar financiamento para comprar 258 ônibus elétricos, maior oferta via PAC. Em seguida, vem Uberlândia, com a possibilidade de compra de 216 veículos elétricos. Em Belo Horizonte, assim como em Porto Alegre, podem chegar a 100. A prefeitura de Campinas diz que “analisa as questões financeiras legais para que os recursos sejam utilizados, incluindo meios de contratação”.
Em São Paulo, cidade com maior frota total de ônibus - e também de veículos elétricos -, a Prefeitura não aderiu ao PAC nacional, mas firmou compromisso em 2023 de eletrificar 20% da sua frota de ônibus até o fim de 2024. Isso significaria saltar de 220 ônibus elétricos para 2,4 mil em um ano, mas, até o início de junho, só chegaram às ruas mais 160.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo disse “direcionar esforços para o uso de transporte coletivo de matriz energética limpa” e destacou ter a maior frota de transporte público “movida à energia elétrica”. Desde outubro de 2022, acrescentou a gestão Ricardo Nunes (MDB), “a compra de ônibus movidos a diesel para a frota municipal não é mais permitida na cidade”.
A SPTrans informou que as concessionárias estão firmando contratos para a implementação de infraestrutura de carregamento nas suas garagens, “já que são responsáveis por fazer os investimentos necessários”. “A SPTrans segue cobrando de todos os envolvidos a conclusão da implantação da infraestrutura necessária para a eletrificação da frota, que trará importantes benefícios à população.”
Segundo gestores e especialistas, entre os desafios das cidades brasileiras para eletrificar a frota, estão:
- Alto custo para compra dos ônibus elétricos, que têm valor cerca de três vezes maior do que os ônibus convencionais;
- Necessidade de criar infraestrutura adequada para receber esses ônibus, como centros de recarga, o que exige articulação com companhias de energia e envolve maior custo inicial;
- Necessidade de reajuste da operação, considerando o tempo que o ônibus precisa para se recarregar, e a qualificação da equipe mecânica para a manutenção dos veículos;
- Ajustes nos contratos de concessão do serviço de transporte público, já que grande parte das operadoras diz não ter recurso financeiro para investir em ônibus elétricos. Segundo eles, a mudança demanda verba pública e não pode depender só de investimento da concessionária.
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Transporte é setor-chave para reduzir emissões de poluentes no Brasil
Para especialistas do setor, a proposta federal de destinar recursos exclusivamente para a renovação de frota de ônibus e, em especial, compra de modelos elétricos, é um “acerto”. Mas ainda falta uma política nacional mais ampla e comprometida, de fato, com a eletrificação e melhoria do transporte. Até o momento, a decisão tem ficado na mão das prefeituras, sem legislação que as obrigue ou as incentive mais significativamente.
Em adicional, por causa da pandemia, muitos municípios deixaram a troca dos veículos convencionais em segundo plano nos últimos anos. Ou seja: restou uma frota que, além de poluidora, está envelhecida, com motores menos regulados e pior conforto aos passageiros.
“Estamos atrasados”, diz o engenheiro de produção e professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Roberto Marx, especialista no tema. “Não é só uma questão de renovação da frota – que, claro, é um aspecto muito importante – mas de melhora geral no transporte público.”
A lógica é de que, quanto melhor for o transporte coletivo, mais as pessoas trocarão os seus carros pelo ônibus e metrô, diminuindo assim o total de emissões no transporte.
“(Chile e Colômbia) só conseguiram chegar a números expressivos de frota elétrica porque houve uma mobilização e um incentivo nacional forte para isso”, afirma Iêda Oliveira, diretora do setor de veículos pesados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
O transporte rodoviário é o 3º maior responsável pelo total de emissões de gases poluentes no Brasil, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa, do Observatório do Clima. Fica atrás apenas do desmatamento e da agropecuária (sobretudo o “arroto” do boi).
“Estamos trabalhado no mapeamento do cenário de transportes brasileiro para montar uma política nacional e escutando a sociedade civil. Também fazendo estudos de modelagem, com apoio da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), para entender quantos ônibus serão necessários, entre outras coisas”, diz Adalberto Maluf, secretário nacional do Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental.
- Na plataforma Brasil Participativo, a população pode votar e criar propostas para o Plano Clima, que envolve, além dos transportes sustentáveis, propostas contra o aquecimento global.
O Ministério dos Transportes informou ainda, em nota, que, por meio da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), estuda os impactos dos veículos elétricos no País e possíveis ajustes necessários à legislação para que passem a circular regularmente. Em abril, segundo o órgão, foi iniciada a fase de testes em campo de caminhões elétricos pesados no Brasil.
“O governo federal lançou neste ano o Programa Nacional de Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que estabelece, entre outras medidas, créditos financeiros para empresas que investirem em pesquisas, desenvolvimento e produção tecnológica que contribuam para a descarbonização da frota de carros, ônibus e caminhões”, complementa a nota.
Como acelerar esse processo?
No Brasil, um ônibus elétrico custa até três vezes mais do que um convencional e demanda investimento em infraestrutura de recarga, o que costuma afastar empresas de ônibus em um primeiro momento. O fato de o País ter uma indústria - tanto de ônibus tradicionais quanto elétricos - também cria um cenário mais complexo do que o visto nas nações vizinhas, por exemplo.
“Chile e Colômbia compravam ônibus (convencional) do Brasil até que a China começou a oferecer modelos elétricos por preço similar ao convencional. E como esses países não têm parque industrial de diesel, como nós temos, para fazer pressão contrária à eletrificação, foi mais fácil para eles fazerem a mudança”, diz Iêda, também diretora executiva da Eletra, principal empresa brasileira de ônibus elétricos.
Para baratear, Maluf diz que uma saída – estudada pelo governo federal – seria padronizar modelos de ônibus elétrico, a exemplo do que já é feito em outros países. Isso, junto à maior demanda desencadeada pelo incentivo nacional, permitiria produzir em maior escala, reduzindo custos de produção e, consequentemente, o preço final do produto.
Para reduzir os custos com infraestrutura, uma das soluções é o compartilhamento de pontos de recarga. Em cidades como São Paulo, onde a frota é grande e há várias empresas operando, é possível criar pontos que cobram por tempo utilizado na tomada, aponta Iêda.
Assim, os ônibus do transporte público podem ser carregados à noite. Já caminhões e outros veículos pesados durante o dia, pagando individualmente pela energia - a tecnologia e a voltagem necessárias para abastecer um veículo pesado elétrico são diferentes das de um carro elétrico.
Conjunto de alternativas vai de bicicleta e metrô a biocombustível
Virgínia Tavares, coordenadora de eletromobilidade da World Resources Institute (WRI) Brasil, entende que é a criação de uma composição de vários elementos de transporte sustentável e/ou público que vai ajudar o País a reduzir as emissões.
“O transporte coletivo tem uma prioridade, mas é importante que as pessoas também tenham boas alternativas de fazer os seus deslocamentos a pé e de bicicleta, por exemplo. É preciso compor uma distribuição econômica do espaço comprometida com a redução de emissões”, diz a executiva.
Marx, da USP, concorda. Segundo ele, a simples substituição de veículos a diesel antigos por mais modernos, chamados Euro 6, já possuem um impacto grande na redução de emissões. E o investimento em trens e metrôs também têm parcela significativa.
O ônibus elétrico tem grande apelo no transporte coletivo porque aumenta a eficiência energética desse transporte e, pelo veículo circular sempre dentro de uma mesma região, é mais fácil fazer a recarga elétrica. O mesmo serve para caminhões de carga e descarga que rodam uma área limitada.
Já para longas distâncias rodoviárias, os especialistas defendem o avanço dos estudos sobre o biodiesel, o biometano e o biogás, para que estes sejam utilizados cada vez mais nestes veículos.
O Estadão mostrou que o Brasil é um dos países com grande potencial em combustíveis sustentáveis, devido à sua experiência com o etanol, ao desenvolvimento do agronegócio e à oferta de matérias-primas.
Segundo a consultoria McKinsey, a demanda por biomassa, matéria orgânica vegetal ou animal capaz de gerar os biocombustíveis, no mundo deve aumentar dez vezes até 2050. No Brasil, esse mercado potencial pode significar quase US$ 40 bilhões (R$ 200 bilhões) até 2040.
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