Volumes cada vez maiores de lixo estrangeiro estão chegando às praias brasileiras. Coletas regulares ou pontuais encontraram embalagens dos mais variados produtos com rótulos internacionais em praias de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Embora as correntes marítimas possam transportar o lixo flutuante, como garrafas pet, embalagens de cosméticos e latas de bebida de um continente para o outro, a suspeita é de que o lixo de navios esteja sendo descartado no mar, próximo à costa do Brasil.
A quantidade de lixo internacional nas praias de São Paulo aumentou 500% em cinco anos, aponta levantamento da ONG Ecomov – Ecologia em Movimento. O total de embalagens de origem estrangeira recolhidas nas faixas de areia subiu de 220 em 2019 para 1.218 em 2024. O estudo levou o Ministério Público de São Paulo a abrir um inquérito civil para apurar a origem do lixo. A apuração está com o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) de Santos.
“Ouvimos as empresas cadastradas para retirar o lixo dos navios e houve consenso de que, nos últimos tempos, eles sentiram uma diminuição na requisição desses serviços”, disse a promotora pública Flávia Maria Gonçalves.

O Gaema avaliou também a questão das correntes marítimas e, segundo a promotora, há uma possibilidade real de que, havendo despejo irregular no trajeto, os resíduos poderiam chegar ao nosso litoral. “Consultamos o Ibama e a Marinha e não houve flagrantes. O mar, pela imensidão dele, protege esse despejo irregular, então isso ficou no campo da suspeita.”
A Marinha do Brasil esclarece que segue o que determina a Lei de Poluição da Águas e a Convenção Marpol, que regulamenta o descarte de lixo por embarcações, entre elas: registro detalhado de cada operação de carga ou incineração feita pela embarcação; segregação do lixo por tipo (papel, plástico, orgânico) e registro de eventuais lançamentos no Livro Registro do Lixo.
Questionada sobre eventual descarte de lixo nos oceanos, a Associação de Proprietários de Navios Asiáticos (ASA, em inglês), informou ter lançado uma iniciativa com foco em um transporte marítimo mais ecológico e seguro. O objetivo é adotar ações proativas para reduzir as emissões de carbono e todas as formas de poluição. Já o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) diz que, quando há ocorrências que configuram uma emergência ambiental, é feito acompanhamento local pela equipe de Emergências Ambientais.
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) diz que promove iniciativas que auxiliam no descarte correto dos resíduos sólidos, como membro da Força Tarefa Nacional GloLitter, que contribui na aplicação de melhores práticas para a prevenção e redução de lixo plástico marinho.
O Ministério de Portos e Aeroportos acompanha a questão e, em parceria com a Antaq, adota medidas para garantir a correta destinação dos resíduos gerados nos portos brasileiros.

Na praia da Estação Ecológica Juréia Itatins, entre Peruíbe e Iguape, que não tem frequência regular de turistas, foram encontrados mais de 500 resíduos e 210 foram identificados como embalagens estrangeiras. Entre os materiais inusitados estão um botijão de gás de origem chinesa, café de Taiwan, latas e garrafas de refrigerante da Coreia do Sul, Rússia e do Irã, e uma embalagem de ração humana da China.
A ONG, criada em 2011 e que atua em educação ambiental nas praias, começou a levantar o lixo estrangeiro em 2019. Desde então, foram identificados mais de 4,7 mil resíduos de outros países entre Ubatuba, no litoral norte, e Iguape, no Vale do Ribeira (litoral sul). “Começamos a observar uma quantidade crescente de lixo internacional em meio ao material que coletamos das praias. Isso nos levou a propor à promotoria da Baixada Santista uma análise desse material”, diz Rodrigo Azambuja, presidente da ONG.
As cidades de Peruíbe e São Vicente foram as que mais receberam lixo estrangeiro em suas praias, o que ele atribui às correntes marítimas que se deslocam de Santos para o sul. No período de setembro de 2023 a novembro de 2023, a organização registrou 1.218 unidades estrangeiras e foi possível identificar com segurança a origem de 493. Para isso, foram usadas ferramentas de identificação de marcas, logomarcas e comparativos com os produtos consumidos a bordo de navios.
A maioria – 51,6% - é de resíduos originários da China. “Os dados indicam que os navios se abastecem em portos do país de origem, atravessam os mares e despejam lixo em nossas águas”, diz Azambuja.
Para ele, falta fiscalização nos navios e maior rigidez nos protocolos de operação e limpeza das embarcações. “O descarte irregular acontece na barra onde os navios permanecem à espera de atracar no porto. Os resíduos acabam sendo levados pela corrente sul para cidades distantes. Essa corrente ganha força no período de setembro a dezembro, quando encontramos mais embalagens no litoral”, disse.

Muitas embalagens chegam ainda dentro da data de validade do produto, 30 ou 40 dias após a data de fabricação, indicando descarte recente. No balanço dos resíduos internacionais recolhidos desde 2019, a China responde por 74,4%, seguida pela Malásia com 12,3% e Estados Unidos com 7,8%.
Veja quantidade de resíduos encontrados a cada ano:
- 2019: 220 resíduos (13 países)
- 2020: 400 resíduos (14 países)
- 2021: 600 resíduos (18 países)
- 2022: 900 resíduos (19 países)
- 2023: 1.300 resíduos 13 países
- 2024: 1.318 resíduos (20 países)
A Convenção Internacional para Prevenção da Poluição por Navios (Marpol), de 1973, que estabelece regras para o descarte de resíduos das embarcações, permite jogar o lixo orgânico, como cascas de frutas e restos de alimentos, no mar. Já o plástico e outros materiais precisam ser descartados corretamente nos portos.
A Marinha do Brasil diz que fiscalização da Lei de Poluição da Águas e a Convenção Marpol é feita por inspetores navais que vão a bordo das embarcações e verificam o livro, os documentos que comprovam a retirada do lixo por empresas credenciadas pelo porto e o local onde os resíduos são acondicionados a bordo. Quando constatado um grande volume de lixo armazenado, os inspetores determinam que o navio providencie sua remoção, acionando a agência marítima responsável para garantir o descarte correto no porto.
“Cabe ressaltar que o fato de embalagens serem encontradas na praia não significa necessariamente que tenham sido descartadas por navios. Infelizmente, o lixo encontrado nas praias possui diversas origens e pode ser resultado tanto da ação humana local, quanto de fatores ambientais”, diz, em nota, a Marinha.
A Capitania dos Portos de São Paulo, responsável pela jurisdição do porto de Santos, informou que até o momento não foi notificada, nem recebeu denúncias ou reclamações sobre eventual despejo de lixo por navios.

Para Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) e especialista em poluição marinha, a origem do fenômeno pode estar no descarte irregular de resíduos por embarcações, especialmente de transporte de cargas, mas também de passageiros e de pesca. “Quando as embarcações não separam o lixo adequadamente e misturam orgânico com reciclável, aquilo fica com um cheiro desagradável e insalubre. Ali tem garrafas, embalagens plásticas e, para se livrar do incômodo, eles jogam no mar.”
Segundo o pesquisador, o descarte pode estar associado também a fatores econômicos. “Os donos de embarcações acabam entendendo que, se eles chegarem com menos lixo nos portos, vão pagar menos pelo descarte. Então, antes de atracar, eles acabam jogando sacos e sacos no mar. Aí, a chance desse material chegar nas nossas praias é maior e vamos ter embalagens escritas em indiano, chinês, japonês, lixo internacional.”
A Autoridade Portuária de Santos (APS) diz que o descarte de lixo no mar é um problema mundial e, no Porto de Santos, não é diferente. “Entretanto, a suspeita levantada de que haja descarte para reduzir custo não é plausível, pois a destinação incorreta de lixo equiparado a lixo doméstico não traz economia relevante dentro do contexto de todos os custos envolvidos na operação portuária. O mais provável é que seja mesmo falta de conscientização dos riscos ambientais do lançamento de embalagens usadas no mar.”
Conforme a promotora Flávia Maria Gonçalves, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) de Santos, os navios de turismo são bem organizados em relação aos resíduos, mas preocupa a falta de controle sobre os navios mercados. “Fizemos duas vistorias em navios no porto, junto com Ibama, Cetesb e Autoridade Portuária e presenciamos como o processo funciona na prática. O Porto de Santos é o que mais protege. Estamos conversando com Antaq, Ministérios dos Portos, (Ministério) do Meio Ambiente para estudar uma legislação mais eficaz em relação a esses navios válida para todos os portos, senão fica essa coisa indefinida. Se o navio sai da Ásia com 100 tripulantes, é possível saber quanto de resíduos será gerado. Isso hoje não tem.”

Tartarugas, baleias e lixo
No município de Belmonte, sul da Bahia, a empresa de celulose Veracel mantém um terminal marítimo para o transporte de sua produção e realiza um trabalho de sustentabilidade, monitorando tartarugas, baleias-jubarte e a pesca. Isso inclui a retirada de lixo, especialmente plásticos, das praias por representar ameaça a esse ecossistema. “Começamos a observar que estava chegando muito lixo internacional na área da Veracel e passamos a tentar saber de onde vem. Registramos material de 23 países, em sua maioria de países asiáticos”, conta a bióloga Carolina Kffuri, especialista em responsabilidade social da empresa.
Atualmente, esse trabalho é feito em uma extensão de 35 quilômetros, de Belmonte à foz do Rio Preto. Para a pesquisadora, o lixo tem chegado à região com a Corrente do Brasil, uma corrente oceânica do Atlântico Sul que tem um movimento paralelo à costa leste da América do Sul. “Quando a corrente chega à Bahia, ela se divide, uma parte vai para o Norte e outra para o Sudeste. É uma corrente sazonal que, em nossa região, bate na costa entre abril e setembro. É quando encontramos a maior quantidade de lixo estrangeiro nas praias”, disse.
Uma parceria com a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) vai permitir uma análise mais científica desse material e produzir um relatório que será enviado às autoridades. “Nossa ideia é que o estudo possa servir de base para políticas públicas sobre essa questão”, diz a bióloga. Ela relata um achado surpreendente no local conhecido como Mangue Alto. “Ali existem muitas dunas e, ao fazer a coleta, verificamos que havia muito lixo sob as camadas de areia, e também lixo estrangeiro. Esse ‘garimpo’ está permitindo ter uma noção mais detalhada de quanto o problema é antigo.”
Leia também
Lixo até nas dunas
No Rio Grande do Norte, a Companhia de Serviços Urbanos de Natal (Urbana), que faz um trabalho regular de limpeza das praias, passou a monitorar o lixo estrangeiro recolhido junto com os detritos nacionais. São principalmente garrafas pet, embalagens de refrigerantes, cerveja, energéticos e biscoitos vindos de países da Ásia e da África, como China, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia e Egito. Parte do lixo foi retirada de uma área de desova de tartarugas, na Via Costeira.
Em Natal, na praia do Segredo, localizada no Parque das Dunas, unidade de conservação ambiental, os garis da empresa registram regularmente a chegada de embalagens de produtos fabricados em países orientais. São embalagens plásticas principalmente de bebidas e produtos de limpeza. Também foram achados produtos fabricados nos Estados Unidos e países africanos, mas os asiáticos são a maioria.
O lixo asiático foi encontrado também, entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano, nas praias de Muriú, em Ceará-Mirim, Cabo de São Roque, em Maxaranguape, e Búzios, em Nísia Floresta, todas na orla potiguar. A coleta foi realizada pela Associação de Proteção e Conservação Ambiental Cabo de São Roque, entidade que faz mutirões de limpeza a cada 15 dias nesses municípios.
Correntes do Atlântico
Uma análise feita em 2022 por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) em resíduos plásticos encalhados na costa cearense constatou que mais de 78% dos itens tinham origem no continente africano. Os resíduos chegaram à costa do Estado trazidos pela Corrente das Agulhas, que é uma corrente transcontinental. A coleta aconteceu na Praia de Jericoacoara, Praia do Futuro e Porto das Dunas, pontos turísticos do litoral nordestino.
Quase 10 quilos de material flutuante foram analisados e 78,5% eram da África, contra apenas 15,7% do Brasil, sendo o restante de outros países. Os pesquisadores usaram um software de modelagem para determinar a trajetória dos resíduos e a simulação indicou que os itens teriam origem nas águas do Rio Congo, o segundo maior da África, depois do Nilo, e foram trazidos à costa brasileira através das correntes do Atlântico.
A pesquisa apontou que os Estados localizados entre Alagoas e o Pará, ou seja, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão também recebem materiais plásticos do Congo. Como o lixo plástico é impermeável à água e muito leve, o transporte desse material pelas correntes oceânicas acaba sendo quase que automático.
Para Maria Christina Araújo, especialista em poluição marinha e gestão costeira da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o Oceano Atlântico é uma via de tráfego intenso de navios mercantes e turísticos que podem estar descartando lixo no mar. “Lixos leves, como o plástico, são carregados pelas correntes e vêm para o Brasil. Além do Rio Grande do Norte, acontece na Bahia, Ceará, Fernando de Noronha (PE) e outros Estados. Isso tem relação com os padrões de correntes locais, mas também pode ser que os navios estejam descartando lixo no mar, porque não há fiscalização”, diz.
O arquipélago de Fernando de Noronha é protegido por unidades de conservação, entre elas o Parque Nacional Marinho, onde só atividades de pesquisa e turismo são permitidas sob supervisão. Em 2018, um trabalho das pesquisadoras Ana Carolina Grillo e Thayná Mello identificou em praias desertas, de difícil acesso, embalagens de produtos não comercializados no Brasil, em idiomas estrangeiros, principalmente asiáticos, mas também em inglês e espanhol.
Mais navios asiáticos
Em praias dos Estados do Sul, a situação se repete. No ano passado, uma expedição liderada pela ONG Eco Local Brasil retirou 13 toneladas de lixo das praias, algumas de difícil acesso, entre o litoral do Paraná e de Santa Catarina. Grande parte era lixo estrangeiro. As coletas aconteceram entre as praias do Ervino e Grande, em São Francisco do Sul, e Sumidouro, Barra do Sul, Araquari e Barra Velha, no litoral norte catarinense. No Paraná, houve coleta nas praias de Guaratuba e Matinhos. Foram achados rótulos de mais de 50 países, entre eles China, Japão, Malásia e Turquia.
Turra explica que a prevalência do lixo asiático se dá porque a Ásia tem hubs muito fortes de comércio marítimo e o Brasil tem intensa relação comercial com países como a China. “Os navios que levam carne e soja para lá se abastecem de produtos como shampoo, pasta de dente, garrafa de água, iogurte, e depois todo esse lixo vem parar aqui”, diz. O controle é muito difícil, segundo ele. “Se a gente vê um navio que vem da Venezuela derramar óleo no mar e poluir 3 mil quilômetros de praia sem ser identificado, isso dá uma dimensão da dificuldade.”
A Associação de Proprietários de Navios Asiáticos (ASA, em inglês), informa ter lançado a iniciativa ASA 2023 com foco em um transporte marítimo mais ecológico e seguro. O objetivo é adotar ações proativas para reduzir as emissões de carbono e todas as formas de poluição. “Nossos membros operam suas embarcações estritamente de acordo com as regras internacionais sobre descarte de resíduos”, diz.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) diz que, a princípio, a competência para efetuar a limpeza rotineira das praias é municipal. Quando há ocorrências que configuram uma emergência ambiental, é feito acompanhamento local pela equipe de Emergências Ambientais do Ibama. Caracterizada uma emergência ambiental de grandes proporções, a ocorrência pode vir a ser tratada por uma força-tarefa, como ocorreu com a presença de óleo nas praias do Nordeste, em 2019 e 2020.
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) diz que regulamenta a prestação de serviços de retirada de resíduos das embarcações em águas sob jurisdição nacional em portos públicos nas instalações portuárias. No entanto, a agência não tem competência para fiscalizar a gestão dos resíduos quando estes se encontram dentro das embarcações de longo curso.
Apesar disso, a Antaq promove iniciativas que auxiliam no descarte correto dos resíduos sólidos, como membro da Força Tarefa Nacional GloLitter. O Projeto de Parcerias GloLitter, lançado em 2021 pela Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) e pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), ajuda países em desenvolvimento a prevenir e reduzir o lixo marinho. O Brasil é um dos dez principais países parceiros.
O Ministério de Portos e Aeroportos acompanha a questão e, em parceria com a Antaq, adota medidas para garantir a correta destinação dos resíduos gerados nos portos brasileiros. Além do controle nas instalações portuárias que recebem os resíduos, uma integração com sistemas internacionais, como uma plataforma da IMO, permite rastrear e monitorar a gestão de resíduos das embarcações. A pasta trabalha na definição de diretrizes para afretamento de embarcações estrangeiras sustentáveis que passarão a operar na cabotagem brasileira com compromissos ambientais e climáticos, durante o tempo de permanência da embarcação estrangeira no País.
A Autoridade Portuária de Santos (APS) informou que, no porto, a retirada de lixo, inclusive os resíduos de operação e manutenção do navio, tem um procedimento específico, o Programa de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, que objetiva minimizar os impactos negativos daquele descarte, com diretrizes para coleta, segregação, acondicionamento, armazenamento, transporte e destinação final.