A cada desastre causado por uma tempestade, a resposta aparece sempre na ponta da língua: “não esperávamos por uma chuva como essa”, ou “choveu muito acima do esperado”. Mas alertas e informações – até mesmo sobre o crescimento de eventos extremos – existem para que o poder público se prepare para evitar mortes como as 65 causadas pelo temporal no litoral norte paulista em fevereiro. Nesta semana, foi a vez de a cidade de São Paulo sofrer no temporal – uma idosa morreu em um carro submerso em Moema, na zona sul.
Na Grande São Paulo, a frequência de chuvas extremas triplicou em uma década, conforme dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O órgão federal é o responsável por elaborar as Normais Climatológicas do Brasil. Entre a primeira e a segunda décadas deste século (2001/2010 e 2011/2020), os temporais acima de 100 milímetros passaram de dois para sete dias a cada dez anos. Já a chuvas fortes, acima de 80 mm, foram de 9 para 16 dias. Um milímetro de chuva equivale a um litro de água por metro quadrado.
A alteração no padrão de chuvas na região metropolitana fica ainda mais evidente quando se compara a última década com o período inicial da análise do Inmet (1961-1970). O número de dias com chuva acima de 50 mm passou de 37 para 47, enquanto as precipitações acima de 80 mm foram de 3 para 16 dias (13 dias a mais). As tempestades acima dos 100 mm se repetiram 7 vezes no período mais recente. Já nos anos 1960, o cenário era outro: nenhuma ocorrência.
Eventos climáticos extremos são aqueles que ocorrem fora dos padrões para uma determinada região e que têm consequências para a população local. Secas prolongadas, ondas de frio ou de calor acentuadas e chuvas torrenciais, como a que deixou 18 mortos e mais de mil desalojados em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, em janeiro de 2022.
Fora dos padrões, mas não dos registros, essas informações são públicas. Os dados são resultado da análise dos valores médios de variáveis meteorológicas calculados para um período relativamente longo e uniforme, compreendendo no mínimo três décadas consecutivas, e representam as características médias do clima em um local. Com base neles, políticas públicas de habitação, saneamento e prevenção de desastres podem ser planejadas.
Os mesmos dados também revelam de forma inequívoca para os climatologistas os efeitos diretos do aquecimento global: eventos extremos mais frequentes e mais intensos. “Há mais de 20 anos os modelos climáticos têm nos avisado e é exatamente o que está acontecendo agora”, diz Paulo Artaxo, físico da USP, uma das maiores autoridades mundiais do assunto. Os exemplos são tão evidentes quanto as alterações climáticas, afirma o autor de um dos capítulos do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, das Nações Unidas).
A tempestade que atingiu o litoral norte de São Paulo chegou a 626 mm em São Sebastião. Significa que, em 24 horas, caiu quase o triplo de água na comparação com a média histórica de chuva esperada para fevereiro na cidade. No município vizinho de Bertioga, chegou a 682 mm, recorde já registrado no País. Em fevereiro de 2022, em Petrópolis, na serra do Rio, 241 morreram quando a cidade foi atingida por 530 mm de chuva em 24 horas – a precipitação mais alta já notificada até o verão deste ano.
No Sul e no Norte, temporais mais intensos
Recordes negativos se sucedem no Brasil e no exterior: frio recorde e nevascas devastadoras nos Estados Unidos e Canadá, a onda de calor sem precedentes durante um inverno na Europa, as inundações no Paquistão que deixaram mais de 1,2 mil mortos, segundo as Nações Unidas.
O IPCC traçou como limite, até o fim do século, a alta de 1,5ºC na temperatura ante o nível pré-Revolução Industrial. O aquecimento global já é de 1,1ºC e, dizem os especialistas, e 2025 é o limite para conter as emissões de gases estufa e evitar uma catástrofe climática.
O Brasil, em 2022, registrou a maior alta nas emissões de gases estufa em 19 anos, resultado do desmatamento, segundo levantamento do Observatório do Clima. Dessa forma, aos menos os climatologistas como Artaxo não se surpreendem com a mudança no regime de chuvas. Belém, a capital do Pará, Estado com o maior desmatamento da Amazônia em 2022, é outro exemplo disso.
Quando se compara as décadas de 1991-2000 e a de 2011-2020, segundo os dados do Inmet, observa-se que o número de dias com chuva acima de 50 mm passou de 75 para 110. As chuvas acima de 80 mm também se tornaram mais frequentes, passando de 15 para 26 dias. Já as que excedem os 100 mm se mantiveram estáveis (de 8 para 7 dias).
No outro extremo do País, outra realidade parecida. Em Porto Alegre, o padrão pluviométrico hoje é distinto do que era nos anos 1990. Comparando dados do Inmet da última década (2011/2020) com o período de 1991/2000, nota-se aumento de ocorrências de chuva acima de 50 mm (21 dias a mais), 80 mm (6 dias a mais) e 100 mm (2 dias mais). Ou seja, há mais dias com chuvas mais fortes na capital gaúcha.
Esse excesso pluviométrico anual que esses eventos extremos causam não se distribui de forma homogênea, explica o climatologista José Marengo, coordenador geral de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão responsável por alertar as defesas civis estaduais em caso de perigo. Entre esses dias de chuvas extremas, pode haver longos períodos de seca.
Pobres são os mais vulneráveis, diz IPCC
Os resultados do Inmet que balizam as Normais Climatológicas do Brasil são parecidos com os encontrados por outros estudos que mostram, por exemplo, o aumento de dias secos na Amazônia e em Pernambuco e a concentração de até 30% do volume pluviométrico anual no Rio de Janeiro em apenas 6 dias do ano.
Para além das alterações nos padrões de chuva, em comum é quem costuma ser mais atingido. Quase 4 mil pessoas já morreram por causa de deslizamentos de terra no Brasil desde 1988, segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). O diagnóstico é feito também pelo IPCC: populações mais pobres são as mais vulneráveis e as mais afetadas pelo aquecimento global.
“O desastre sempre tem três componentes: a ameaça (o volume da chuva, por exemplo), a vulnerabilidade da população (o nível de infraestrutura e segurança do local) e a exposição ou perfil do grupo (idosos e crianças, por exemplo)”, diz Marengo.
“Os riscos climáticos afetam a todos, no caso de São Sebastião afeta a população, a Rio-Santos, os oleodutos da Petrobrás que passam por ali. Se um deles fosse atingido poderia ainda ter acontecido um desastre ambiental. Precisa do envolvimento de diferentes frentes”, afirma.
Na terça-feira de carnaval, após a tragédia de São Sebastião, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, esteve no Cemaden para debater a implementação de um plano nacional para a intervenção em mais de mil municípios prioritários – grande parte deles com moradias precárias, em áreas de encosta. Uma das medidas seria a criação de um estado de emergência climática para esses locais.
Para Artaxo, a situação começará a mudar também quando os responsáveis forem punidos pelas mortes. “Em São Sebastião, há um mapeamento das áreas de risco. É preciso apurar as responsabilidades ou vamos apenas ficar assistindo a população de baixa renda, sempre a mais atingida, chorar seus mortos”, diz. “O que vemos agora é resultado do aumento de apenas 1ºC. Quando aumentar mais, vai ficar muito mais sério. A cobrança tem de ser proporcional.”
“Não esperávamos por uma chuva como essa”, “choveu muito acima do esperado” ou algo parecido não cabem mais no mundo de eventos extremos que a própria humanidade construiu. “A justificativa do poder público não faz sentido”, diz Artaxo.
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