Como é o 1º programa público de boi rastreado com chip para frear desmatamento na Amazônia

Órgãos de controle do Pará terão acesso a informações como possíveis problemas sanitários ou condições de trabalho degradantes

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Por Aline Reskalla

Em meio aos impactos dramáticos das mudanças climáticas, como secas severas e incêndios sem precedentes, o Brasil corre o risco de ter mais 3 milhões de hectares de floresta desmatados na Amazônia até 2025, caso não sejam adotadas medidas eficazes de fiscalização da pecuária. Essa área é equivalente a 20 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

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A projeção faz parte de uma pesquisa recente do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), que calculou pela primeira vez a ameaça de destruição da floresta nas zonas potenciais de compra dos frigoríficos ativos na região.

A principal medida defendida pelo instituto para conter o avanço desse desastre ambiental é a rastreabilidade individual de todos os bovinos desde o nascimento, uma tendência global para uma pecuária sustentável que, embora ainda distante da realidade no Brasil, começa a dar seus primeiros passos no Pará.

Primeira identificação individual bovina promovida pelo governo do Pará foi realizada no município de Xinguara, na região de Integração do Rio Araguaia. Foto: Bruno Cruz/Agência Pará

No início do mês, o Estado lançou o primeiro programa governamental do País destinado a esse fim. Um boi chamado Pioneiro, de uma fazenda em Xinguara, recebeu dois brincos, um visual e outro eletrônico, marcando o que o governo estadual classifica como “um novo tempo da pecuária verde”.

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O chip funciona como uma carteira de identidade, segundo o qual os órgãos de controle terão acesso a informações socioambientais das propriedades por onde o animal passou, como possíveis problemas sanitários, desmatamento ilegal ou condições de trabalho degradantes, análogas à escravidão.

Exigências de mercado

Com o segundo maior rebanho do País, o Pará contabiliza 24,84 milhões de cabeças, distribuídas por cerca de 165,9 mil propriedades. Sua produção tem sido voltada para o mercado interno, mas há um movimento de retomada das exportações.

Para tanto, será necessário responder a exigências, como as do mercado europeu, que já não comprará mais produtos ligados ao desmatamento a partir de dezembro deste ano. A China, maior parceiro comercial do Brasil, também já sinaliza uma maior preocupação com os aspectos socioambientais associados aos produtos que importa.

A “brincagem” do boi Pioneiro é simbólica, pois o programa levará tempo para ser implantado em todo o rebanho. O plano é identificar individualmente os animais em trânsito até dezembro de 2025, e cobrir todo o rebanho bovino e bubalino do Estado até dezembro de 2026. Xinguara, município escolhido para o evento, possui um rebanho de mais de 500 mil cabeças de gado e três frigoríficos com selo de inspeção federal, habilitados a abastecer mercados nacionais e internacionais.

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Equipamentos utilizados para 'brincagem' de bovinos no Pará. Foto: Divulgação

O pecuarista Roberto Paulinelli, dono do Frigorífico Rio Maria, decidiu não esperar o poder público e implantou, ele mesmo, a rastreabilidade individual dos bois que adquire, em julho de 2023. Ele exporta para China e Europa, e contou ao Estadão que percebeu o endurecimento das exigências. “Tive medo de ser excluído do processo de exportação de uma hora para outra, então essa é uma garantia que eu tenho”, relatou.

Paulinelli buscou a assessoria de empresas especializadas para montar um modelo de rastreamento próprio, que já conta com 70 fazendas fornecedoras cadastradas. Ele também parou de comprar de propriedades que constam nas listas sujas de desmatamento e de trabalho escravo, atualizadas periodicamente pelos órgãos federais de controle.

Paulinelli afirma que hoje se sente mais tranquilo quanto ao futuro de seu negócio familiar, acreditando que está no caminho certo. Os benefícios, segundo ele, vão além da sobrevivência de sua atividade.

Além de conseguir enviar sua carne para China e Europa, ele já recebe um pequeno bônus de R$ 1,20 por arroba do couro dos animais abatidos. “Ainda é pequeno porque começamos a rastrear no ano passado, e o abate ocorreu quando o animal tinha 2 anos. Os dados completos do bezerro de origem só estarão disponíveis daqui a uns 6 meses. Aí vai valorizar mais.”

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Para o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a rastreabilidade individual é um marco fundamental em um momento de agravamento das mudanças climáticas e de maior compromisso com a sustentabilidade dos sistemas agroalimentares.

Marina Guyot, gerente de Políticas Públicas do Instituto, explica que um dos grandes desafios do setor pecuário é avançar com um sistema de rastreabilidade da origem do gado, dentro de uma estrutura produtiva que envolve o intenso trânsito de animais entre fazendas, desde o nascimento até o abate.

“Atualmente, com base nos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das Guias de Trânsito Animal (GTAs), os frigoríficos conseguem controlar apenas a ponta da cadeia de fornecimento, ou seja, as fazendas de onde os animais saem para o abate. Com esse novo sistema, será possível rastrear toda a trajetória de cada animal e descartar aqueles que tenham nascido ou sido engordados em propriedades com ilícitos socioambientais ou desmatamento”, acrescenta Guyot.

Marina Guyot, gerente de Políticas Públicas do Imaflora, durante evento de brincamento do boi Pioneiro, no Pará Foto: Jotta/Imaflora

O Imaflora entende que o programa lançado pelo Pará é “uma oportunidade de aperfeiçoamento histórico e necessário para o setor, com o poder de impulsionar a transição da pecuária para uma nova realidade, livre de irregularidades ambientais e com ganhos de produtividade”.

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“Dada a associação da pecuária com desmatamento e violações de direitos humanos, a sociedade começou a demandar mais transparência do setor, além de informações sobre o frigorífico, a cadeia produtiva e os fornecedores indiretos. Hoje, essa cobrança parte dos próprios bancos, da indústria do couro, do varejo e do consumidor final. Para isso, é preciso da rastreabilidade”, avalia a especialista do Imaflora.

No lançamento do programa, no dia dia 2 de setembro, o governador do Pará, Helder Barbalho, disse: “O processo de integridade de cadeia parte para que nós possamos fazer rastreabilidade individual de todos os animais, sejam búfalos ou gado no nosso estado até dezembro de 2026. Todos estando ‘brincados’, ‘chipados’, para que nós possamos garantir a transparência produtiva, possamos garantir com que a indústria da carne, os abatedouros, os frigoríficos, possam saber a origem deste animal, do nascimento até o abate”, destacou o governador do Estado.

A Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará) vai credenciar Operadores de Rastreabilidade (OPR) para compor o sistema estadual, o SRBIPA. Os OPRs serão devidamente cadastrados e habilitados dentro do SRBIPA, com objetivo de assegurar o manejo adequado e garantir a qualidade da identificação individual dos animais.

Os técnicos da Agência de Defesa vão orientar os produtores quanto às boas práticas de identificação animal, fiscalizar o cumprimento da portaria, para assegurar o manejo adequado e garantir a qualidade da identificação individual de bovinos e bubalinos.

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Política nacional de rastreamento individual

A gerente do Imaflora defende a implementação de uma política nacional de rastreamento individual, como a que está sendo implantada no Pará. Segundo ela, diversas entidades apresentaram, neste ano, uma proposta nesse sentido ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), elaborada pela Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável e pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

A proposta delineia uma política pública nacional, definindo claramente as responsabilidades tanto do governo quanto do setor privado, que inclui pecuaristas, indústria, varejo e organizações financeiras. “Esses agentes serão incumbidos da provisão, controle, implementação e uso das informações de rastreabilidade individual de bovinos em um sistema aplicável em todo o território nacional, de maneira eficaz e progressiva, considerando as variáveis territoriais e culturais do Brasil”, diz o texto apresentado ao Mapa.

O Estadão procurou o ministério na tarde da última sexta-feira, por e-mail, para saber o status da proposta na pasta, se está em análise e se há perspectivas para implantação. Na manhã de segunda-feira, o órgão retornou dizendo que entraria em contato assim que tivesse um posicionamento das áreas responsáveis, mas não o fez até a publicação desta reportagem.

O pecuarista Maurício Pompéia Fraga Filho, presidente da Associação dos Criadores do Estado do Pará (Acripará), defende que a regularização ambiental deve caminhar junto com a implantação da rastreabilidade, caso contrário, muitos produtores serão excluídos e forçados para o mercado informal, o que traz riscos à sanidade animal e à saúde pública. Segundo ele, cerca de 40% dos produtores do Estado têm passivos ambientais.

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“É importante lembrar que o problema maior está no passivo ambiental. As exigências são claras: não podemos vender para frigoríficos signatários do TAC se houver desmatamento após 22 de julho de 2008. Quem desmatou antes dessa data tem a chance de compensar em outras áreas, mas quem desmatou depois precisa restaurar o local. O que mais pesa é o desmatamento posterior a 2008″.

Ele se refere ao acordo conhecido como Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne, que completou 15 anos em agosto. Criado em 2009 com o objetivo de coibir ilícitos na cadeia pecuária da Amazônia, o TAC tem como respaldo uma lei federal de 2008, que tornou os frigoríficos corresponsáveis por irregularidades em sua cadeia de fornecimento, como as fazendas de engorda e de terminação, das quais os animais saem para o abate.

A linha de base do acordo visa coibir a compra de gado originado de áreas de desmatamento ilegal, de áreas protegidas ou com embargo ambiental e de propriedades que figurem na lista de trabalho análogo à escravidão. O TAC da Carne abrange atualmente seis dos nove Estados da Amazônia Legal – Acre, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins.

Ao longo de 15 anos, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) juntou esforços com o Ministério Público e mapeou 158 plantas frigoríficas, das quais 111 são signatárias do TAC e 50 participaram do primeiro ciclo unificado de auditoria, realizado em 2023. Todos eles integram atualmente a plataforma Boi na Linha, que reúne e uniformiza procedimentos e parâmetros, em protocolos que evoluem gradativamente.

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Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais, intitulado Cenários para a Pecuária de Corte na Amazônia, afirma que a produção de carne na Amazônia tem historicamente crescido graças à expansão de pastagens. “É fácil notar uma correlação positiva entre pastagem e desmatamento: quase 85% das áreas desmatadas encontram-se em pastagens.”

Já em 2015 o estudo ponderava que, como a pecuária estava relacionada, como causa ou não, ao desmatamento, cresce também uma pressão para que os produtores produzam com sustentabilidade ambiental. “Embargos à carne brasileira, que antigamente eram decorrentes de barreiras sanitárias, atualmente consideraram o contexto ambiental, incluindo a discussão sobre desmatamento, ineficiência do uso da terra por sistemas de pecuária extensiva e emissão de gases de efeito estufa (GEEs)”.

Além disso, a pecuária também é responsável por aproximadamente 18% dos GEEs emitidos no mundo. Dentre os gases de efeito estufa produzidos pela pecuária, os mais significativos são COz, CHa e N20. Grandes quantidades de GEE são provenientes do metano emitido pela fermentação entérica dos ruminantes, da queima de resíduos agrícolas, da decomposição da matéria orgânica e do uso de combustíveis fósseis.

Segundo Marina Guyot, do Imaflora, muito da associação da pecuária com desmatamento não está no fornecedor direto do frigorífico, mas sim em toda a cadeia anterior. A implantação de um modelo que cubra toda a cadeia, desde o nascimento do bezerro, dentro de uma legislação específica, com tecnologia e compromisso do setor, é sem dúvida uma poderosa ferramenta para reduzir a conversão de vegetação nativa, a invasão de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs), além de outros requisitos socioambientais de produção.

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