Pressionado pela alta de 31% do desmatamento no Cerrado no 1º semestre, o governo federal prepara um pacote de ações para tentar reverter a curva ascendente da destruição no bioma. Na pauta, estão o embargo de áreas derrubadas ilegalmente por meio do alerta de satélites, o aperto da fiscalização, a integração das bases de dados dos Estado e o incentivo econômico a produtores em dia com o Cadastro Ambiental Rural. Desde os anos 1970, o Cerrado é uma área de fronteira agrícola.
Assim como fez na Amazônia em junho com o lançamento da nova versão do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDam), o Ministério do Meio Ambiente deve lançar em setembro a reedição, atualizada, do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado).
O programa teve êxito no segundo mandato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), quando mirava a redução de 40% do desmate no bioma. A meta foi cumprida antes do tempo proposto, com a queda de 62,34%. Após três fases implementadas, acabou paralisado, em 2020, na gestão Jair Bolsonaro (PL).
“Já está havendo (embargo remoto, feito com uso de imagens de satélites) tanto na Amazônia, quanto no Cerrado. O problema (no Cerrado) é que parte expressiva da supressão de vegetação acontece com a emissão de autorizações pelos órgãos estaduais que, muitas vezes, não informam o Sinaflor e fica mais difícil fazer o embargo remoto”, disse ao Estadão André Lima, secretário extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente.
“Mas ele já existe e será feito em escala no Cerrado. Estamos preparando a estratégia para não correr o risco de embargar áreas (corretamente) autorizadas”, afirma o integrante da pasta comandada por Marina Silva.
Outra frente são incentivos econômicos e de crédito. O Plano Safra 2023, por exemplo, prevê 0,5% de redução na taxa de juros para produtores rurais que estiverem seus Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sem pendências e analisados. Essas já são, segundo Lima, “uma estratégia para diferenciar quem desmata ilegalmente de quem está se adequando à legislação”.
Diferentemente da Amazônia, o Cerrado tem regras ambientais mais permissivas. O Código Florestal, vigente desde 2012, permite que dentro de propriedades particulares o desmate legal seja de até 20% da floresta. Ou seja, a área de reserva natural precisa ser o equivalente a 80% da propriedade.
No Cerrado, o percentual para a reserva florestal, a área que não pode ser desmatada ou perder sua cobertura vegetal, vai até 35% da propriedade, no caso dela estar dentro dos limites da Amazônia Legal em uma área de transição. Se estiver fora desses limites, a taxa cai para 20%.
De acordo com Lima, não é estudada uma alteração da legislação, o que dependeria do Legislativo. O Congresso, nos últimos anos, tem se movimentado no sentido contrário: afrouxar normas ambientais.
O desmatamento no Cerrado tem outra diferença em relação à Amazônia. A maior parte da supressão de vegetação ocorre com o aval dos Estados. No 1º semestre deste ano, quase 77% da área desmatada no bioma foi registrada em imóveis rurais com o CAR.
O registro é público, eletrônico e nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais e tem como objetivo integrar as informações ambientais das propriedades com o monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.
“O que o PPCDam e o PPCerrado podem fazer agora é articular com os Estados o que já deveria ter sido feito há anos: a integração das bases de dados das autorizações de supressão de vegetação ou até medidas mais duras, como suspender autorizações com prazos de validades mais antigas”, afirma Lima. “Há Estados que autorizam com três, quatro anos de validade. Como não há base de dados consistente e confiável, eles perdem o controle.”
Cerrado está mais quente e menos úmido
O que está em jogo não é apenas o futuro da savana mais rica do mundo, mas da própria atividade agrícola, que em 2023 deve experimentar o 2º ano seguido de retração na participação do PIB nacional, conforme o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura (Esalq) da USP.
Pesquisa publicada na revista científica Nature neste mês mostra que as mudanças na circulação atmosférica e na evapotranspiração já reduziram em até 25% as chuvas no Cerrado. O segundo maior bioma do País, com mais de 2 milhões de hectares, é chamado de “berço dos grandes rios brasileiros” e de “caixa d’água do Brasil” por abrigar as nascentes de nove das doze bacias hidrográficas do País. Mais de 50% de sua área original já foi desmatada.
É no Cerrado que têm origem e estão, por exemplo, 78% das águas da bacia dos Rios Araguaia/Tocantins, 70% das águas da bacia do Rio São Francisco e 48% das águas da bacia do Rio Paraná. Não só isso. Aquíferos subterrâneos como o Bambuí, Urucuia e Guarani são alimentados por águas infiltradas no bioma.
“Essa perda (de pluviosidade) ocorre durante o ano todo, mas é mais notável nos inícios das estações seca e chuvosa, julho e novembro, com a diminuição da chuva e dos dias chuvosos”, diz o geógrafo Gabriel Hofmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor do estudo.
A constatação de Hofmann reforça outros alertas que parecem ainda inauditos. Em artigo também dele, publicado em 2021, na revista Global Change Biology, a conclusão não é mais animadora: desde a década de 1960, a temperatura média no Cerrado subiu de 2,2ºC a 4ºC e a umidade relativa do ar caiu 15%. Péssima notícia para a agricultura e para outros locais do País.
Isso pode ter elo, por exemplo, com os ciclones extratropicais que têm afetado o Sul do País. “Parte da umidade vem direto da Amazônia, sem ser mais reciclada no Cerrado “, afirma o geógrafo.
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‘Matopiba’
Apelidada de Matopiba, a região que engloba Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (cujas iniciais dão origem ao acrônimo) concentra 81% da destruição do Cerrado no 1º semestre. A Bahia liderou o desmate com 28% do total no bioma, Maranhão (23%), Tocantins (18%), e Piauí (12%) completam o ranking. Metade da área com alertas de desmatamento no período estão em em 26 municípios.
No Matopiba, dados informados pelos Estados apontam que mais de 80% do desmatamento na região de janeiro a junho foi autorizado.
Nos últimos anos, municípios do oeste da Bahia são os responsáveis pelas maiores devastações. Cidades como São Desidério, Jaborandi, Barreiras, Correntina e Luís Eduardo Magalhães ocupam a ponta das listas.
É nessa região também que o rebaixamento do nível dos rios pelo uso intensivo na irrigação motiva, há pelo menos uma década, disputa entre as empresas de agronegócio local e pequenos produtores rurais. “Entre 1985 e 2021, houve redução de 68 mil hectares de superfícies cobertas por água no Cerrado, de acordo com o MapBiomas”, diz Hofmann.
Segundo o mesmo MapBiomas (plataforma que reúne universidades, organizações ambientais e empresas de tecnologia), em 36 anos o bioma perdeu quase 20% da vegetação original. Cerca de 26,5 milhões de hectares foram suprimidos. Campos, savanas e florestas foram trocados por pastagens e plantações - principalmente soja.
Dos cerca de 55 milhões de hectares destinados a lavouras no Brasil, 36 milhões são ocupados por plantações de soja. Isso corresponde a 4,3% do território nacional -área equivalente, por exemplo, a países como a Itália e o Vietnã.
Metade da produção brasileira da leguminosa, a commodity de maior exportação do País, está no Cerrado. Mas até quando ela será viável? Outra pesquisa, publicada este ano no International Journal of Agricultural Sustainability, mostra redução de 6% na produtividade da soja para cada alta de 1°C na temperatura.
Incentivo é fundamental, diz especialista
Para Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a reedição desses planos antidesmate, elaborados também a partir de consultas públicas, deve ser comemorada. Ela afirma, porém, que diminuir o desmatamento no Cerrado deverá ser mais difícil do que na Amazônia.
“Na Amazônia a maior parte do desmatamento ocorre em terras públicas e o desmatamento ‘legalizado’ representa porção pequena”, diz Ane, que também é do Núcleo de Governança de Uma Concertação Pela Amazônia. As unidades públicas envolvem, por exemplo, reservas federais de conservação ou territórios indígenas.
Segundo ela, serão necessários investimentos em diferentes áreas no Cerrado. “Não adianta só aumentar as ações de comando e controle (como as realizadas pelo Ibama). Principalmente para o Cerrado é importante ter incentivos econômicos, financeiros ou creditícios para que o produtor rural não se sinta estimulado a desmatar”, diz.
Segundo André Guimarães, também diretor do Ipam, restam no Cerrado cerca de 10 milhões de hectares em propriedades privadas que fazem parte da “cota” que pode ser desmatada. Essa área é equivalente aos Estados do Rio e Espírito Santo e sem algum incentivo a produtores rurais será difícil manter essa vegetação em pé.
“Não é simples; há também os fatores culturais e históricos. ‘Meu avó fazia assim (desmatava), meu pai também’”, afirma ele, membro do Grupo Estratégico da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura. Esse movimento é composto por mais de 300 representantes do agronegócio, da sociedade civil e da academia em defesa de uma economia de baixo carbono. Para ele, parte do agronegócio está ciente da urgência de responder a demandas ambientais e do clima.
Para Guimarães, há alternativas. Ele cita opções como o pagamento por serviços ambientais e a valorização do produto que vem de áreas não desmatadas, como exige agora a União Europeia. “O agro é quem tem muito a perder. E, ao mesmo tempo, tem muito a ganhar”, diz.
Procurados pela reportagem, a Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) e os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia não falaram.
Cidades também fazem pressão
Não só a agricultura pressiona o Cerrado. O bioma é o lar de 25 milhões de pessoas, distribuídas em 1.077 municípios - e o Centro-Oeste foi a região com maior alta populacional na última década, como revelou o Censo. No Distrito Federal, um exemplo do avanço da urbanização sobre a vegetação está na Área de Relevante Interesse Ecológico da Granja do Ipê.
Em fevereiro, a polícia do DF deteve e autuou o responsável por desmatar área de 3 mil m que seriam transformados em assentamento. Segundo o governo, lá “foram verificadas leiras feitas com os restos de vegetação, contando com material lenhoso de árvores nativas do cerrado, com indicativo de que a remoção dos indivíduos arbóreos havia sido realizada por maquinário de grande porte.”
O governo do DF afirma que o solo tinha sinais recentes de terraplanagem. “O responsável não foi encontrado no local durante as diligências, mas foi multado em R$ 127.118,95 e a área, embargada”, afirma órgão ambiental do DF.
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