Mais de dez anos se passaram desde que o primeiro hambúrguer “in vitro” foi produzido pelo cientista holandês Mark Post, a um custo de cerca de US$ 325 mil (mais de R$ 1,8 milhão).
Embora a carne cultivada em laboratório a partir de células animais não tenha se espalhado pelas gôndolas de supermercado, as pesquisas feitas na universidade, em indústrias e startups têm avançado no Brasil.
Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a equipe da professora Rosana Goldbeck, da Faculdade de Engenharia de Alimentos, trabalha desde 2020 com resíduos da produção agrícola, desenvolvendo alternativas para tornar o meio de cultivo das células animais mais barato e sustentável.
Segundo estimativa do Good Food Institute, organização que promove o desenvolvimento de alternativas aos produtos alimentícios de origem animal, US$ 3 bilhões foram investidos na produção de carne cultivada no mundo entre 2013 e o ano passado.
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O custo do meio de cultivo é um dos maiores entraves para a produção de carne de laboratório. Isso porque seu principal componente, o soro fetal bovino, tem oferta restrita e difícil obtenção: é extraído do sangue de fetos bovinos por punção cardíaca.
São as proteínas desse soro que alimentam as células retiradas do animal, permitindo que se multipliquem. O insumo responde por quase 95% do custo do meio de cultura para a carne cultivada.
“(O uso do soro) envolve uma questão ética e de abate animal que não é desejada na produção de carne cultivada”, diz a engenheira química Bárbara Flaibam, pesquisadora na Unicamp e orientanda de Goldbeck.
Além da questão ética, fatores ambientais impulsionam o desenvolvimento da carne de laboratório, com a necessidade de conciliar a demanda da população em crescimento e a redução de emissões a nível global para enfrentar as crise climática.
Em 2023, o crescimento do rebanho bovino foi o principal responsável pela alta de emissões do setor agropecuário no Brasil, segundo relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg).
A agropecuária foi a segunda atividade que mais emitiu gases de efeito estufa no País, com 631,2 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Perde apenas para as mudanças de uso da terra, como a conversão de florestas em pasto, também impulsionadas pela pecuária.
O Brasil é o maior exportador, segundo maior produtor e terceiro maior consumidor de carne bovina no mundo, conforme relatório de outubro da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), empresa vinculada ao Ministério da Agricultura.
Girassol, cerveja e etanol
Estudos com sobras de culturas agrícolas, como soja e girassol, e produtos da biodiversidade, como babaçu e macaúba, realizados sob a orientação de Rosana, tiveram resultados promissores.
A pesquisa de mestrado de Barbara Flaibam mostrou ser possível substituir parte do soro fetal por proteínas vegetais hidrolisadas (“quebradas”) a partir de resíduos agrícolas, como farelo de soja e de amendoim.
Com o uso dos resíduos industriais, que têm alto teor proteico e grande disponibilidade no País, ela chegou a uma redução do soro fetal bovino de 10% para 1% na composição do meio de cultivo.
Em base seca, o soro fetal bovino custa de US$ 69 a US$ 159 por grama, enquanto os hidrolisados produzidos pela pesquisa da engenheira química têm custo calculado em US$ 0,20/g.
“A maior parte do soro é água. Quando reduz em base seca, perde muito e o soro fica mais caro ainda. Com os nossos hidrolisados, se verifica uma eficiência econômica no processo”, explica.
A pesquisadora alerta se tratar de estimativa inicial, feita em escala de laboratório, sem considerar fatores externos como mão de obra, transporte e armazenamento.
Agora, no doutorado, Barbara testa outros resíduos, como farelo de girassol, levedo de cerveja e sobras do etanol de milho, para verificar se é possível a substituição total do soro fetal bovino, além de diminuir ainda mais o custo do meio basal usado para o crescimento das células.
Além da possibilidade de contribuir com o avanço da produção de carne cultivada no País, a pesquisa pode dar destino a milhões de toneladas de subprodutos gerados anualmente pela produção agroindustrial.
“Há um agronegócio forte no Brasil, gerando quantidade grande de resíduos muitas vezes subutilizados: vai para ração animal ou é descartado. Mas poderia ser transformado nesses bioprodutos de alto valor no mercado”, diz Rosana.
- Mesmo com a complexidade, ela afirma que o processo deve consumir menos tempo e recursos naturais do que a pecuária extensiva.
- O valor nutricional da carne cultivada, segundo ela, é equivalente e pode até superar o da carne, diante da possibilidade de ter sua composição melhorada em laboratório.
- Já aspectos sensoriais, como o gosto e a textura que tornam a carne suculenta, ainda são um desafio, mas têm sido vistos avanços.
- Apesar das vantagens, a professora não vê o produto como substituto da carne convencional. “É uma tecnologia que vem pra complementar.”
Sabor de carne
Estudo feito na Coreia do Sul e publicado em julho na revista Nature aprimorou células animais in vitro com compostos associados à reação de Maillard — reação química entre aminoácidos e açúcares que dá ao alimento cozido sua cor escurecida e sabor apetitoso —, para replicar o paladar da carne convencional.
Como a carne cultivada tem perfil de aminoácidos distinto da carne convencional, eles não se comportam da mesma forma para produzir essa reação.
Para tentar corrigir esse problema, os cientistas das universidades Yonsei e Nacional Kangwon desenvolveram um composto contendo furano-2-ilmetanotiol, um dos produtos da reação de Maillard responsáveis pelo gosto da carne, “programado” para ser liberado quando a carne é aquecida a 150 °C. O composto foi acoplado a um hidrogel, material semelhante a uma gelatina que pode ser usado como um “andaime” para as células cultivadas.
A análise da composição química de odores mostrou que, na temperatura indicada, a carne de laboratório produziu compostos associados ao gosto da carne. A equipe sul-coreana planeja testar outras misturas e dar escala à tecnologia.
A carne de laboratório já está disponível para consumo em Cingapura e foi liberada nos Estados Unidos pela Food and Drug Administration (FDA, equivalente à Anvisa) e pelo Departamento de Agricultura (USDA) em 2023 para ser vendida.
Neste ano, autoridades de saúde de Israel deram o sinal verde à empresa Aleph Farms para a produzir bifes cultivados e o Reino Unido se tornou o primeiro país europeu a aprovar o produto, inicialmente para a alimentação de pets.
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