A mobilização de uma comunidade caiçara ajudou a salvar uma das belezas naturais, ainda preservadas, no arquipélago de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. No dia 8, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) freou uma tentativa de liberar empreendimentos em uma extensão de 25 quilômetros de praias e costões da ilha.
Por unanimidade, a Justiça declarou inconstitucional uma lei municipal que extinguia a reserva extrativista (resex) Baía dos Castelhanos, que abriga uma comunidade caiçara tradicional. São cerca de 300 moradores que vivem da pesca na região há quase dois séculos.
A decisão confirmou liminar de 1ª instância que já havia suspendido a lei, em novembro de 2022. A ação foi ajuizada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado, após representação do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério Público de São Paulo e da Associação dos Moradores da Comunidade Tradicional Caiçara da Baía dos Castelhanos (Amor Castelhanos).
“Estamos de parabéns pela decisão do tribunal”, diz a caiçara Angélica de Souza, presidente da associação Amor Castelhanos. Segundo Angélica, a defesa da área começou em 1997 e, após dez anos de luta, saiu em 2015 o termo de autorização de uso sustentável dos recursos da baía.
Além de veranistas e donos de hotéis e pousadas, a população de Ilhabela, de 35 mil habitantes, inclui 17 comunidades caiçaras centenárias, que vivem principalmente da pesca artesanal. São organizadas as comunidades de Castelhanos, Bonete e Jabaquara, mas há outras em processo de organização.
A reserva extrativista foi criada em 2020, não só para garantir os meios de subsistência, a cultura e as tradições da comunidade, mas também para assegurar a preservação de uma área de quase 1 milhão de m² distribuídos em uma faixa de 25 quilômetros de costa. Em agosto do ano passado, o prefeito Antonio Colucci (PL) enviou projeto de lei à Câmara Municipal revogando o decreto de criação da reserva. A lei foi aprovada em menos de 24 horas.
A criação da reserva extrativista Baía dos Castelhanos atendeu a uma antiga reivindicação das comunidades caiçaras de Ilhabela, pressionadas pelo avanço dos loteamentos urbanos. O MPF participou do processo que levou ao estabelecimento da unidade desde 2014, quando foram realizadas as primeiras reuniões sobre a regularização fundiária do território. A reserva abrange o maior remanescente de restinga de Ilhabela e uma extensa área de manguezais.
A região, que já sofre intenso processo de ocupação irregular, contempla três dos ecossistemas reconhecidos como patrimônio nacional pela Constituição – Serra do Mar, Zona Costeira e Mata Atlântica – é considerada Reserva da Biosfera pela Unesco, braço das Nações Unidas. Isso, segundo o MPF, a transforma em patrimônio natural de importância internacional.
Outra ameaça é a ocupação irregular. Como mostrou o Estadão, em dez anos quase dobrou a população que mora em assentamentos precários na ilha. Eram 6.203 pessoas em 2010 e o número subiu para 12,1 mil em 2020, segundo dados do Ministério Público.
Desde 2021, o MPF abriu investigação sobre a venda de áreas na Baía dos Castelhanos que não poderiam ser comercializadas por serem da União. A apuração continua.
Garçom em um quiosque da Baía dos Castelhanos, Pedro Morais contou que mora na comunidade desde 2003. “Nos últimos anos, o turismo aumentou, mas ainda é bem controlado. Eles chegam com os jipeiros ou em grupos pequenos e ficam no máximo quatro horas na praia. Muitos fazem trilhas e vão para as cachoeiras. Tem o Mirante do Coração e a Cachoeira do Gato, os locais mais procurados, além da praia, que tem uma faixa de areia em formato de coração.”
Lei fere a Constituição e ameaça patrimônio ecológico, diz TJ
A decisão do TJ-SP destaca que a lei municipal fere tanto a Constituição paulista quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a proteção de reservas como a Baía dos Castelhanos. “A aprovação do texto ocorreu de maneira açodada, sem a realização de audiência pública para que a população fosse consultada (especialmente a comunidade caiçara que habita a área), nem a apresentação de estudos técnicos que pudessem justificar a extinção da reserva”, diz o relator do caso, desembargador Jarbas Gomes, na sentença.
Ele observa que a situação é ainda mais inquietante considerando-se a dimensão do patrimônio cultural e ecológico. No acórdão, ele afirma que o projeto do Executivo, que culminou com a aprovação da lei por maioria e em sessão única, tramitou em regime de urgência e foi finalizado em menos de 24 horas. Segundo ele, não foi dada oportunidade para manifestação da Procuradoria Municipal, apesar da complexidade do tema.
“Tampouco houve convocação prévia de audiências públicas: a comunidade ilhabelense, especialmente aquela que ocupa a área da reserva e que sofrerá o impacto direto da extinção, não foi convidada a manifestar-se a respeito, não lhe tendo sido propiciado contribuir com soluções e alternativas”, disse.
O relator afirmou ainda que projeto de lei não foi instruído com parecer técnico ou estudo que amparasse a decisão de extinguir a reserva,. “A norma aparta-se do traçado constitucional, vez que foi concebida sem participação popular e sem planejamento prévio, afronta os princípios da razoabilidade e da publicidade e desrespeita a proibição ao retrocesso socioambiental”, concluiu. A votação foi unânime pela derrubada da lei.
Na gestão anterior, o prefeito de Ilhabela, Toninho Colucci (PL), já havia tentado transferir essas comunidades para a área urbana, alegando que ali os caiçaras seriam melhor atendidos do que no isolamento em que estavam.
Ilhabela vai recorrer
Em nota, a prefeitura de Ilhabela informou que vai recorrer da decisão “dadas as falhas insanáveis que comprometem o ato de criação da Resex (Reserva Extrativista), como a falta de autorização e homologação pela Secretaria de Patrimônio da União, ou seja, é uma reserva feita em cima de área da Marinha, sem anuência da União para isso”.
Outra falha apontada pelo Executivo é a falta de definição da responsabilidade de cada ente federativo. “Na eventualidade de desapropriação das áreas tituladas de propriedade de particular, não foi definido no ato de criar qual ente (município, estado ou União) se responsabilizará pela indenização”, disse.
Segundo a prefeitura, a Resex foi criada sem ouvir a sociedade. Já a proposta de extinção foi discutida durante a revisão do Plano Diretor do município, ouvindo inclusive os moradores da região de Castelhanos, segundo a nota.
O presidente da Câmara de Ilhabela, Alessandro Vieira, o Alessando Abençoado, do PL, disse que a votação da proposta do Executivo que extinguiu a Reserva Extrativista Baía dos Castelhanos seguiu tramitação de urgência.
“No momento em que houve a votação havia um conflito entre os próprios moradores da comunidade, que nos procuraram solicitando a revogação, razão pela qual entendemos que a medida era necessária e urgente. Entretanto, reconhecemos os argumentos e respeitamos integralmente a decisão do Judiciário”, disse, em nota.
O projeto foi protocolado na Câmara na tarde de 16 de agosto de 2022 e aprovado na sessão noturna, no mesmo dia, por 7 votos a 2. Votaram contra a extinção da reserva os vereadores Felipe Gomes (Republicanos) e Raul Cordeiro (PSD). “As comunidades tradicionais que seriam afetadas não foram consultadas sobre o projeto, inclusive a comunidade caiçara que habita a área, sendo assim manifestei meu voto contrário. Este foi também o entendimento do Judiciário, que revogou a lei”, disse Cordeiro.
Em junho deste ano, o prefeito de Ilhabela, Toninho Colucci, virou alvo de uma ação civil pública por incentivar a população a desmatar o jundu, vegetação protegida que cresce ao redor das praias. Vegetação rasteira de restinga, o jundu protege a faixa de areia de erosões e ajuda a fixar as dunas.
Em audiência pública com moradores, em abril, Colucci sugeriu que cada um tirasse um pé de jundu por dia. A Procuradoria da República em São Paulo e o Ministério Público paulista entraram com ação em conjunto por danos coletivos. Também foi aberta investigação criminal. O prefeito contestou a ação. A prefeitura informou que ele não se manifestará sobre o caso.
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