‘Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido’, diz Carlos Nobre sobre crise climática

Biomas brasileiros estão gravemente ameaçados pelo aquecimento global; Pantanal deve perder toda a sua área alagada antes mesmo do fim do século

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Foto do author Roberta Jansen
Atualização:
Foto: Pedro Ivo Prates/Estadão
Entrevista comCarlos NobreClimatologista e referência internacional em estudos sobre aquecimento global

Referência internacional em estudos sobre aquecimento global, o climatologista Carlos Nobre está apavorado. Em entrevista ao Estadão, ele conta que a crise climática explodiu um pouco antes do que os próprios cientistas previam. Tudo indica que 2024 deve bater mais um recorde de temperatura.

As ondas de calor e as secas intensas assolam o planeta. O Brasil arde em chamas. Se em maio o Rio Grande do Sul ficou quase inteiro debaixo da água, em setembro São Paulo sufocou sob espessa camada de poluição.

Incêndio já queimou quase metade da área da Floresta Nacional de Brasília, em área do Cerrado Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nobre construiu grande parte da carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e também foi diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ambos federais. Para ele, todos os biomas brasileiros estão severamente ameaçados e alguns deles, como o Pantanal, podem até mesmo deixar de existir em algumas décadas.

Primeiro brasileiro a integrar o grupo Planetary Guardians (ou Guardiões do Planeta), que reúne pesquisadores para estudar a catástrofe ambiental, ele vê diferenças entre as chamas que se espalham e o que é registrado em outras partes do mundo, como Estados Unidos, Canadá e Europa.

Na região do Baixo Solimões visitada pelo presidente Lula, na Amazônia, seca atinge nível recorde Foto: Ricardo Stuckert/Presidente da República

Como não há recorrência de raios, segundo os especialistas, a origem do fogo é criminosa. “Entre 95% a 97% são causados pelo homem.” Para dar conta disso, a resposta do poder público precisa melhorar: mais brigadistas, mais investigação policial, de forma a desmobilizar o crime organizado, e também tecnologia para detectar os focos. “É uma guerra e temos de começar a combatê-la.”

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Veja os principais trechos da entrevista:

Temos uma seca recorde, temperaturas elevadíssimas, e fogo se alastrando por todo o País. Já vivemos algo parecido antes?

Nesse nível não. Esse é o máximo que já experimentamos. A crise explodiu. Temos a maior temperatura que o planeta experimentou em 100 mil anos. Desde que existem civilizações, há dez mil anos, nunca chegamos nesse nível, em que todos os eventos climáticos se tornaram tão intensos e muito mais frequentes. São secas em todo o mundo, tempestades, ressacas e, agora, a explosão desses incêndios.

Infelizmente, não é só aqui. No ano passado, tivemos grandes incêndios no Canadá, nos Estados Unidos, no sul da Europa. A diferença é de que lá o fogo foi causado por descargas elétricas. Aqui não: praticamente não teve nenhuma descarga elétrica. Entre 95% a 97% são causados pelo homem. A seca e as temperaturas elevadas estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Isso ajuda o fogo a se propagar. Mas os incêndios são criminosos.

Os índices de poluição em São Paulo atingiram níveis recordes esta semana. Isso se deve mais ao tempo seco ou à alta de queimadas? O que pesa mais nesse processo? Isso deve se agravar?

É uma soma de todos esses fatores. Sempre, nesta época do ano, enfrentamos o fenômeno da inversão térmica nas cidades muito urbanizadas, que esfriam muito no inverno durante a madrugada e no início da manhã. O ar quente que fica mais acima impede o ar frio de subir, fazendo um bloqueio. A poluição das chaminés, das indústrias, dos ônibus, dos caminhões fica presa nesse bloqueio atmosférico. Isso já traria uma enorme poluição, mesmo que não houvesse queimadas, mas quando somamos a questão meteorológica com um número recorde de queimadas, temos essa situação.

Há alguma adaptação possível?

Temos que mudar culturalmente, botando milhões de paulistanos para andar de máscara, como na época da pandemia.

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Na gestão Jair Bolsonaro, a alta de queimadas no Pantanal e na Amazônia foi atribuída a problemas na fiscalização e resposta do governo federal. Agora o governo Lula diz priorizar o meio ambiente e o número de focos de incêndio é ainda maior do que havia no passado. O que está acontecendo? O governo federal tem falhado no combate aos incêndios?

É um pouco mais complicado do que isso. Em 2023 e 2024 tivemos, sim, uma grande redução do desmatamento na Amazônia, na Mata Atlântica e até no Cerrado. Aparentemente as políticas (de combate ao desmatamento) estão sendo razoavelmente bem implementadas. Mas, então, por que as queimadas estão explodindo? Porque, tudo indica, os incêndios são criminosos. Aqui no Brasil, menos de 3% foram causados por descargas elétricas. Agora, lógico, quando alguém bota fogo na floresta quando está seco e quente, as chamas se espalham mais rápido. Por mais que o desmatamento tenha sido reduzido, os grupos que fazem desmatamento ilegal e a grilagem de terras, e que estão sendo reprimidos pelo Ibama, ICMbio e polícia, continuam agindo.

O climatologista Carlos Nobre integra o grupo internacional "guardiões do planeta", que estuda as mudanças climáticas. Foto: Ale virgilio

Há previsão de quando a situação melhora?

Do ponto de vista climático, não temos previsão. Se as emissões não forem reduzidas drasticamente, não tem jeito. Agora, considerando que as queimadas no Brasil são criminosas, penso que, antes de mais nada, é um problema de polícia.

O satélite não ajuda? O que pode ser feito para prevenir os incêndios?

O desafio é enorme. O criminoso bota fogo na mata em um minuto. O satélite só detecta o fogo quando ele já atingiu de 30 a 40 metros quadrados, ou seja, entre uma hora e meia a duas horas depois. O sistema detecta o fogo, mas mesmo que a polícia saia correndo, não conseguirá prender o criminoso, ele já não estará mais lá. Os próprios produtores agrícolas contrários às queimadas terão de se envolver, usar mais drones, tecnologia. A polícia precisa ter mais eficácia em atacar o crime organizado. E o número de brigadistas precisa aumentar. É uma guerra e temos de começar a combatê-la.

O governo federal anunciou a criação de uma autoridade climática para enfrentar a crise. Como vê esse anúncio?

Sem dúvida, muito importante. Quando foi indicada em novembro de 2022, ela (a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva) já tinha sinalizado que iria criar a autoridade climática. Mas depois que tomou posse, em 2023, parece que houve dificuldade para a criação, aprovação do Congresso, ficou enrolado. Além disso, será criado um conselho técnico científico para apoiar a autoridade climática. Importante para acelerar a redução emissões, zerar desmatamento, fazer a transição energética, transição para pecuária e agricultura regenerativa. Estamos muito atrasados.

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São Paulo teve a pior qualidade do ar dentre as maiores cidades do mundo pelo segundo dia consecutivo, segundo site de monitoramento suíço  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O senhor citou incêndios em outras partes do mundo, como no Canadá que, no ano passado registrou o maior número de sua história, e ainda outros casos nos Estados Unidos e na Europa. A situação lá é diferente?

Sim. Os incêndios do Canadá, dos Estados Unidos e da Europa foram causados por descargas elétricas. Como a vegetação estava muito seca, a floresta pegou fogo muito rapidamente. Isso é um impacto direto do aquecimento global. Aqui vivemos recordes de seca e ondas de calor na maioria dos Estados, mas não tivemos descargas elétricas. Os incêndios foram criminosos.

Na semana passada, a ministra Marina falou que o Pantanal chegaria a um ponto irreversível, que o perderíamos até 2100. Concorda?

Sim, acho até que ela foi otimista. Acho que o Pantanal acaba até 2070, sem falar nos outros biomas. A Amazônia, o Cerrado, a Caatinga: todos os biomas estão em risco. Se o desmatamento continuar desse jeito, a Amazônia vai perder pelo menos 50% da floresta até 2070. Para ter ideia, a Caatinga já avançou 200 mil quilômetros quadrados pelo Cerrado. Há uma região no norte da Bahia que já é tão seca que poderá ter, em futuro próximo, um clima semidesértico, com precipitações abaixo de 400 milímetros por ano. O Pantanal já reduziu 30% nos últimos 30 anos; está secando. E agora o fogo destrói sua vegetação. Se continuarmos com emissões altas e só conseguirmos zerá-las em 2050, o que já é um enorme desafio, poderemos chegar a 2100 com temperatura a 2,5ºC da média. Se isso acontecer, o Pantanal não terá mais lago.

O que pode ser feito para nos adaptarmos a essa nova realidade?

As secas continuarão se repetindo. Como os incêndios são criminosos, antes de mais nada, precisamos ter mais eficiência no combate ao fogo. Essa poluição das queimadas é muito ruim para a saúde, por conta dos particulados em suspensão no ar. Uma adaptação possível é usar máscaras, como na época da covid-19. Segundo um estudo recente do Cemaden, há pelo menos dois milhões de brasileiros vivendo em áreas de altíssimo risco de deslizamentos e inundações. Eles não podem continuar vivendo nas encostas, precisam ser retirados de lá. Isso demanda grande investimento de recursos públicos.

E o calor?

O que mais mata no mundo, muito mais do que as chuvas, são as ondas de calor. Praticamente todo o nosso País está enfrentando ondas de calor. Idosos e crianças menores de cinco anos são muito vulneráveis. São dezenas de milhões de pessoas em risco. Precisamos ter uma política de adaptação. No sul da Europa, em 2022, 65 mil pessoas morreram por conta do calor. Desde 2023, em Barcelona, quando há ondas de calor, o governo leva a população mais vulnerável para lugares com ar-condicionado, piscina, alimentos e atendimento médico, para que não morram. Nossa agricultura não é preparada para essa seca. Ou seja, todas as medidas de adaptação precisam ser muito aceleradas em todo o mundo - e no Brasil mais ainda.

Em cenário hipotético, se reduzirmos todas as emissões segundo as metas previstas, quanto tempo levaria para o clima da Terra voltar ao normal?

Continuamos aumentando as emissões. Batemos recorde em 2022, em 2023, e, tudo indica que bateremos de novo este ano. A instabilidade política provocada pelas guerras da Rússia na Ucrânia e de Israel na Faixa de Gaza está fazendo com que mundo não enfrente a emergência climática. A Rússia simplesmente ignorou a redução de emissões. Mesmo que começássemos a reduzir amanhã e conseguíssemos zerar as emissões líquidas até 2050, nós, basicamente, já atingimos 1,5ºC acima da média (registrada no século 19, no período anterior à Revolução Industrial). Foram dois anos seguidos com essa temperatura. Se tivermos mais um ano, a ciência talvez já possa dizer que alcançamos a marca de 1,5ºC. Mesmo que aceleremos as reduções, o aumento da temperatura média do planeta vai ultrapassar os 2ºC, podendo até chegar a 2,5ºC em 2050. Mesmo que começássemos a remover 5 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano da atmosfera, lá por volta de 2100 voltaríamos a um aumento de 1,5ºC.

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O aumento de 1,5ºC era o máximo que deveríamos chegar, segundo os acordos climáticos mais importantes firmados nas últimas décadas...

O objetivo era não deixar o aumento passar de 1,5ºC e, a partir de 2050, já começar a remover, no mínimo, 5 bilhões de toneladas de CO2 por ano da atmosfera, para chegar em 2100 com aumento de 1ºC. Mas infelizmente já estamos atingindo 1,5ºC. Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido.

Nenhum cientista havia previsto isso?

Não, nenhum. No começo de 2022 a ciência previu, muito bem, que teríamos um El Niño (fenômeno climático ligado ao aumento das temperaturas da Terra) forte e a temperatura anual poderia ficar 1,3ºC acima da média. De fato, tivemos um El Niño forte, o terceiro mais forte dos registros, mas o aumento da temperatura chegou a 1,5ºC. No nosso pior cenário, chegaríamos a um aumento de 1,5ºC em 2028. Milhares de cientistas estão tentando explicar o que aconteceu. E outra: o El Niño praticamente desapareceu em maio (e começa a dar lugar ao fenômeno La Niña, ligado ao resfriamento do planeta), mas os oceanos continuam quentes, continuam induzindo a seca na Amazônia. Estamos tentando explicar por que aumentou mais do que tínhamos previsto.

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