De quem é a culpa pela escalada de incêndios no Brasil? O que precisa ser feito?

Especialistas apontam falhas no combate ao fogo e defendem mais esforços de União e Estados; ministério diz ter elevado em 25% nº de brigadistas; no Pantanal, bioma sob mais risco, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul afirmam ter ampliado força-tarefa

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Foto do author Juliana Domingos de Lima
Por Juliana Domingos de Lima

O primeiro fogo deve ser apagado com o pé, conforme o jargão da prevenção e combate a queimadas. A escalada de incêndios nos últimos anos mostra que os pés do poder público não tem conseguido alcançar as fagulhas a tempo, o que põe em risco biomas, como Amazônia e Pantanal.

Em 2024, o Brasil teve o ano mais críticos para incêndios desde 2010. “A eficácia da atuação estatal ficou muito aquém do que deveria. O Ministério do Meio Ambiente e outros órgãos têm de reconhecer”, diz a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. “A gravidade com que os incêndios tomaram o País mostrou que a atuação dos governos tem de ser mais forte”, acrescenta ela, que presidiu o Ibama na gestão Michel Temer (MDB).

Em 2024, Mato Grosso do Sul (foto) foi castigado por incêndios; Pantanal é o bioma sob maior risco neste ano Foto: Bruno Rezende/Governo de Mato Grosso do Sul

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Para Suely, um sinal positivo foi a declaração, em fevereiro de emergência ambiental nas áreas vulneráveis a incêndios pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva e de aumento de 25% o número de brigadistas. O governo atribui as dificuldades do último ano, principalmente, às mudanças climáticas.

A União é alvo desde de 2020 de uma série de ações constitucionais sobre falhas na prevenção e combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal. Em 2024, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino reuniu os processos, realizando audiências sobre o tema, ainda em curso.

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De quem é a responsabilidade?

O governo federal é diretamente responsável pela prevenção e controle do fogo nas áreas federais, como parques nacionais e terras indígenas. E tem a atribuição de coordenar e apoiar Estados, municípios e agentes privados, como prevê a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, aprovada em 2024.

Segundo o governo federal trata-se de “estratégia integrada que leva em conta a ecologia do fogo (como ele se comporta no ambiente), as necessidades das populações no seu uso para fins produtivos, os saberes tradicionais e os conhecimentos científicos”, além da prevenção.

Conforme uma resolução aprovada este ano, todos os Estados terão até 2027 para aprovar seus planos de manejo integrados de fogo. A regra também obriga unidades de conservação e propriedades em região de alto risco a criarem seus planos e a adotarem ações de prevenção, como ter brigada florestal própria treinada ou apoiar brigada local.

Embora a temporada mais intensa de incêndios normalmente seja no 2º semestre no Brasil, anos recentes de seca extrema e temperaturas acima da média mostram que a preparação precisa começar muito antes.

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Para especialistas, as condições climáticas têm alongado o período de fogo em biomas como Cerrado e Pantanal, o que diminui a janela da prevenção. Além disso, o fogo está mais severo e se espalha mais rápido devido à vegetação seca.

“Há carência grande de investimento (em prevenção). As próprias brigadas só são contratadas durante parte do ano”, afirma Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Como os recursos são poucos, tem de ser indicado dependendo das áreas mais críticas”.

Para Suely, do Observatório do Clima, o número de brigadistas federais e o repasse a Estados e municípios deve ser ampliado. Ela também destaca o controle insuficiente feito pelos Estados do uso do fogo em atividades agrícolas:

Distrito Federal viu áreas do Cerrado serem consumidas pelas chamas no ano passado Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil

“Dá pra dobrar o numero de brigadistas (federais), tem recurso pra isso. E eles têm que entrar antes da época de seca e fogo para ações de prevenção, como a execução de aceiros. Mas também tem que se assegurar a articulação federativa”.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diz que o ambiente é prioridade da gestão, mas a escalada de queimadas pôs em xeque a capacidade do governo na área. Em novembro, o País receberá em Belém a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30). Desmate e incêndios na Amazônia são duas das principais fontes brasileiras de emissão de gases de efeito estufa.

Recorde de focos em reservas federais

Em 2024, o fogo devastou mais áreas florestais e houve recorde de queimadas nas unidades de conservação federais, segundo dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão federal. Foram 2 milhões de hectares atingidos, maior número desde o início da série histórica em 2012.

Servidor de carreira do ICMBio, João Morita coordena o centro especializado em manejo integrado do fogo do órgão, que forma brigadistas federais.

Em março, o instituto tem feito queimas prescritas nos Parques Nacionais de Brasília e da Chapada dos Veadeiros (Goiás), reservas que pegaram fogo ano passado e deixaram Brasília sob fumaça. Essas queimas são feitas em condições e períodos determinados para eliminar vegetações secas que se acumulam no solo (o que pode agravar incêndios). Segundo Morita, os resultados da medida têm sido bons no Cerrado.

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Unidades de conservação federais são 10% do território continental do País. Das 340 áreas protegidas geridas pela União, que incluem parques e florestas nacionais, reservas extrativistas e outras categorias, 110 enfrentam problemas de incêndios e têm algum nível de planejamento para prevenção e combate e brigadistas contratados, segundo Morita.

Os incêndios dentro de UCs cresceram principalmente na Amazônia, onde o órgão diz ter aumentado o total de brigadistas a partir de 2023.

Falta de aeronaves é gargalo

Para Morita, a situação na floresta está mais complexa, com ocupação maior de áreas internas ou próximas às reservas. As principais dificuldades incluem adequar o uso do fogo pelas populações tradicionais (como indígenas e quilombolas) e a logística do combate, por ser difícil ir a certas áreas de carro e até de barco.

Uma operação de combate pode durar vários dias em áreas isoladas, o que torna necessário montar acampamento para alimentação e descanso dos brigadistas.

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Para o transporte, Ibama e ICMBio não têm aeronaves próprias, o que exige contratar o serviço e esbarra na disponibilidade para aluguel e empréstimo.

Secretário antidesmate do Ministério do Meio Ambiente, André Lima argumenta que adquirir helicópteros é inviável para o orçamento da pasta, devido a custos de manutenção. Em 2024, diz, a demanda de aeronaves das Forças Armadas para transportar urnas eletrônicas e itens de abastecimento para áreas isoladas pela seca na Amazônia se sobrepôs ao uso para levar brigadistas.

O governo federal prevê neste ano 15 helicópteros, 10 aeronaves de lançar água, dois aviões de transporte, quase 200 veículos especializados, 340 caminhonetes operacionais e 50 embarcações. Lima enfatiza ser necessário que Estados e entes privados também se equipem, adaptando aeronaves usadas pelo agronegócio na pulverização aérea de agrotóxicos.

A Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no oeste do Pará, teve grandes incêndios em 2015, 2016 e em 2023, mas conseguiu reduzir a área queimada nesses anos de 150 mil hectares para 10 mil, segundo o ICMBio.

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A gestão da UC, a mais populosa da Amazônia, vem investindo em brigadas comunitárias desde 2017 – são ao menos 11 –, o que tem contribuído para controle mais efetivo do fogo, e contará com queimas prescritas em certos locais após a estação chuvosa a partir de 2025.

“Temos volume grande de brigadas voluntárias comunitárias, mas o governo precisa conectar as coisas”, afirma o engenheiro florestal Osvaldo Gajardo, da ONG WWF Brasil, que atua na formação de brigadas indígenas dessa modalidade. Ele destaca que elas conseguem implementar ações de prevenção o ano inteiro e são as primeiras a conseguir chegar em territórios isolados para combater os incêndios.

Estados

No Pantanal, bioma com a pior projeção de incêndios para 2025 devido a anos sucessivos de seca extrema, o fogo se concentra principalmente em áreas privadas, o que demanda responsabilização de proprietários, Estados e municípios.

Em Mato Grosso do Sul, a Operação Pantanal, instaurada contra os incêndios do ano passado, se mantém com a permanência de equipes em locais específicos do bioma, informa o governo do Estado. Foram instaladas 11 bases avançadas dos bombeiros em regiões estratégicas para dar “resposta rápida e eficaz no caso de surgimento de focos precoces”. Em 2024, o Pántanal teve recorde de incêndios no 1º semestre.

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Conforme o governo do sul-mato-grossense, o Corpo de Bombeiros teve reforço de 170 soldados, que recebem capacitação. Outra medida é a simplificar o processo de licenciamento do manejo integrado do fogo, usando inteligência digital para auxiliar na identificação de acúmulos de biomassa, e orientar produtores rurais sobre a prática de queimas controladas.

Já Mato Grosso, informa, em nota ter ampliado investimentos para combate a incêndios e desmate ilegal de R$ 74,5 milhões em 2024 para R$ 80 milhões este ano. Também prevê reforço de 550 bombeiros militares temporários, além de 150 brigadistas estaduais.

O Estado afirma ainda ter iniciado a elaboração do Plano Estadual de Manejo Integrado do Fogo e investir na capacitação de brigadas particulares e em fiscalização.

Segundo Gajardo, da WWF, essa mobilização é exceção nos Estados. Em muitos casos, os brigadistas estaduais são poucos e contratados na última hora, quando a situação do fogo já está extrema. Ele cita um caso positivo: o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), no Jalapão, onde as equipes que fazem a gestão de incêndios têm brigadas permanentes.

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A punição dos responsáveis pela ignição dos incêndios é outro desafio. Em 2024, queimadas no interior de São Paulo e na Amazônia levantaram suspeitas de ação dolosa coordenada, investigadas pela Polícia Federal.

De 130 inquéritos instaurados pela PF, 26 já foram encerrados e os demais estão em andamento, segundo a corporação. O órgão não detalhou o desfecho das investigações já concluídas.

Conforme André Lima, do ministério, se não há flagrante é difícil responsabilizar depois. “Imagine alguém que ‘taca fogo’ na floresta no meio da Amazônia e sai. Ninguém pega.”