Depois de quase um ano do temporal que devastou o litoral norte de São Paulo em 2023, deixando 64 mortos em São Sebastião, muito ainda precisa ser feito para reparar os danos causados pela chuva aos ecossistemas e à população.
Na Vila Sahy, território mais atingido, 300 famílias seguem vivendo em área de risco atualmente, segundo a presidente da associação de moradores Amovila, Ildes Andrade. No Parque Estadual da Serra do Mar, que é o maior trecho contínuo e preservado de Mata Atlântica do País, cerca de 200 hectares foram devastados.
Se, em um cenário de mudanças climáticas, a água que cai com intensidade cada vez maior preocupa, parte da solução ambiental também está vindo do céu: um projeto de restauração está usando drones para semear com cerca de 20 espécies nativas os locais onde a vegetação foi arrancada pela chuva.
A semeadura das áreas prioritárias de maior erosão e risco – um total de 9,57 hectares distribuídos em 29 deslizamentos, na Barra do Sahy, Baleia e As Ilhas – foi concluída neste início de 2024. Foram utilizados 6 kg de semente por hectare, o que totalizou 57,5 kg de sementes nas encostas nessa primeira fase. Os próximos plantios serão realizados a partir de março.
Fechando as cicatrizes
Segundo Fernanda Carbonelli, diretora-executiva do Instituto Conservação Costeira (ICC), o objetivo do projeto é restaurar em três anos 851 “cicatrizes” na Serra do Mar abertas pelas chuvas de 2023. Esses pontos foram mapeados pelo instituto e pela Atlântica Consultoria Ambiental durante oito meses, e a escolha da semeadura com drone se deu principalmente em função da alta declividade do terreno.
O projeto nasceu da articulação entre o ICC e a Fundação Florestal do Estado de São Paulo, que abriu um chamamento público para restaurar a área – do qual a multinacional Ambipar Group foi a vencedora.
“Fomos atrás de tecnologias que pudessem ser compatíveis com a nossa necessidade”, diz Carbonelli. Além dos locais de plantio íngremes e inacessíveis, a perda de nutrientes pelo solo, a salinidade e os ventos também dificultam a tarefa da restauração na Serra do Mar.
A diretora do ICC afirma que o uso do drone trouxe um ganho em escala e custo, além de permitir realizar o plantio sem o impacto de abrir acessos no parque.
O projeto de R$ 3,5 milhões foi custeado majoritariamente pela Concessionária Tamoios – como compensação ambiental pelos impactos causados pela rodovia –, com apoio de contribuições voluntárias de pessoas físicas e jurídicas que mantêm o ICC.
O diretor executivo da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz, destaca o caráter pioneiro do projeto. Antes dele, o órgão já havia feito uma semeadura de helicóptero na Serra do Mar em Cubatão, na década de 1980, plantio que serviu de referência para a elaboração do projeto com o uso de drones.
Segundo ele, uma das vantagens do drone em relação ao helicóptero é a precisão. Desde 2020, a fundação já vem utilizando drones para efetuar a dispersão aérea de sementes de palmeira juçara no estado, com bons resultados.
“É uma tecnologia que está sendo aplicada nessa escala no Brasil pela primeira vez e que é essencial para restaurar essas áreas. Estamos apostando muito em fomentar a utilização de novas tecnologias para projetos que vão precisar de uma abordagem diferente, e que serão cada vez mais comuns com o impacto das mudanças climáticas”, diz Levkovicz.
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Cápsulas restauradoras
Já usados em outras funções pelo agro, os drones foram adaptados para a tarefa de despejar as sementes na quantidade, altura e localidade exatas, cálculos feitos com auxílio de inteligência artificial.
Os equipamentos são carregados não apenas com sementes, mas com biocápsulas desenvolvidas pela Ambipar a partir de sobras de colágeno da indústria farmacêutica. O interior das cápsulas é enriquecido com adubo orgânico e as sementes são revestidas de carbono líquido, que favorece a germinação aumentando a fixação e a umidade.
Equipes da Fundação Florestal e do ICC estão monitorando o plantio com auxílio de um software de imagem. As metas de recuperação variam de acordo com a declividade do terreno.
A chegada da estação chuvosa coloca mais um obstáculo para a restauração, já que o plantio não pode ser feito durante as precipitações. Mas, até o momento, o ICC não registrou perdas provocadas pela chuva na semeadura já feita.
“É claro que isso não vai recompor a floresta do dia para a noite, mas é uma ação importante para induzir um processo de restauração natural dessas áreas. Na prática, jogar essas sementes ajuda a natureza a se reerguer”, diz o diretor da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz.
Ele lembra que a restauração também tem um papel na contenção dos deslizamentos: à medida que as plantas crescem, dão maior estabilidade para as encostas, diminuem o carregamento de lama e ajudam o solo a reter matéria orgânica, melhorando sua qualidade.
Inseridos na Mata Atlântica
O Instituto Conservação Costeira é uma entidade ambientalista da região que atua há cerca de uma década nos conselhos regionais, estaduais e municipais e junto à população para incidir sobre o crescimento urbano desordenado e promover a mitigação de riscos.
Segundo a presidente da associação de moradores da Vila Sahy Amovila, Ildes Andrade, o instituto tem tido um papel fundamental no monitoramento das moradias irregulares e em áreas de risco no Litoral Norte. Ela aponta a falta fiscalização pelo poder público e ser necessário “dar condição para as pessoas saírem dessas áreas com dignidade”.
O trabalho realizado pelo ICC em conjunto com as comunidades locais resultou na criação da Área de Proteção Ambiental Baleia/Sahy em 2013, uma unidade de conservação de mais de um milhão de metros quadrados entre as duas praias, que protege a flora e mais de 87 espécies de fauna em extinção.
“[A APA] é cercada por comunidades. A questão é justamente esses milhões de metros quadrados de pura Mata Atlântica servirem ali como uma piscina verde, porque é uma área de uma bacia hidrográfica muito complicada. Se não fosse a APA, não teriam acontecido 64 mortes em 2023, mas 500″, afirma a diretora-executiva do ICC Fernanda Carbonelli.
Seguindo o modus operandi do instituto, o projeto de restauração tem sido levado adiante em diálogo com os moradores da região. “Nós participamos como interlocutores”, diz a presidente da Amovila.
A iniciativa também prevê a capacitação de professores da rede pública estadual sobre o tema das mudanças climáticas e a formação de jovens para atuarem como agentes ambientais do projeto de restauração. “Tudo que for feito para reconstruir a Mata Atlântica é muito favorável para a comunidade e a associação, porque a gente está inserido nela”, diz Andrade.
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