O porto-alegrense Edson Ramires, 51 anos, está a poucos metros de sua casa, mas é um refugiado. Desde a última sexta-feira, quando as chuvas torrenciais submergiram o bairro onde mora, na zona norte da capital gaúcha, ele divide com outras quatro pessoas o banco traseiro da sua caminhonete, estacionada no único viaduto da região que conta com um pedaço de asfalto seco.
De lá, enxerga resquícios do telhado sob o qual viveu nos últimos 20 anos. O resto está embaixo d’agua. Edson se recusa a sair dali, apesar da oferta de abrigos espalhados pela cidade. Ele tem medo dos saques, que se tornaram frequentes depois que boa parte da população foi obrigada a evacuar suas residências pelo risco de alagamento.
“Por aqui, cada um dorme um pedaço da noite, algumas horas, já que não cabe todo mundo deitado junto. No meu carro estão duas vizinhas, as irmãs Deise e Scarlet, além dos filhos da Deise, uma menina de 16 anos e um menino de apenas um ano e meio. Quando chega minha vez de dormir, nem consigo fechar os olhos. Fico pensando em tudo que foi perdido. Nem sei direito se estou feliz por estar vivo ou triste por tudo o que está acontecendo, não dá tempo de saber o que estou sentido”, conta o motorista, enquanto percorre de barco um trajeto de 20 minutos até chegar ao ponto de desembarque.
Atualmente, essa é a única maneira de se deslocar na região. Diariamente, ao nascer do sol, ele aguarda as embarcações de resgate, pilotadas por voluntários, e pega carona para ir às regiões secas da cidade buscar mantimentos.
No caminho, desafiado pela correnteza que carrega corpos de animais, toneladas de lixos e pedaços de móveis e eletrodomésticos, consegue identificar as ruas do seu bairro, Humaitá, pelos letreiros e placas afixados nas partes mais altas dos estabelecimentos comerciais.
Quando identifica que está próximo de sua casa, não sabe se desvia o rosto para evitar enxergar de perto a tragédia ou se fixa o olhar em busca de algum resquício de esperança.
Assim como Edson, milhares de gaúchos estão desorientados. Eles formam um contingente de “refugiados climáticos”, que não sabem para onde ir, quando dormir, nem mesmo o que sentir. O termo, cunhado na década de 1980 para se referir a pessoas que tiveram que migrar, de forma temporária ou permanente, por causa de uma perturbação ambiental acentuada, originalmente se referia a populações forçadas a deixar seus países de origem em movimentos migratórios complexos. Mas com o aumento de eventos climáticos extremos nos últimos anos já é usado para designar os deslocados dentro das próprias nações e, cada vez mais, nos limites das cidades onde moram.
Em Porto Alegre, por exemplo, são milhares de refugiados a poucas quadras de casa. Sobre o mesmo asfalto do viaduto em que Edson deixou sua caminhonete estão outras dezenas de carros e centenas de pessoas que têm passado dias e noites observando, a uma distância de alguns metros, o pouco de suas moradias que não foi engolido pelas águas turvas do Guaíba.
“Estamos aqui, sem saber o que fazer, para onde ir. Meu filho Noah tem apenas 1 ano e meio e está há dias sem tomar banho. A gente tenta dormir nos carros, mas não consegue. É muita devastação, muita tristeza”, conta Deise Silva, de 33 anos, que divide com a família o espaço na caminhonete de Edson.
De acordo com o último balanço da Defesa Civil, havia no Estado mais de 67 mil pessoas em abrigos temporários, instalados em alojamentos cedidos pelo poder público, além de 164.583 desalojados. São pessoas que foram forçadas a deixar suas casas, seus pertences, sua identidade e muitas vezes seus familiares para ter uma chance de sobreviver.
Há um esforço incansável de ONGs, voluntários e órgãos oficiais para receber os atingidos, mas em um momento de crise, são inúmeras as variáveis que determinam para onde essas pessoas irão. E muitas optam por ficar perto de suas casas – mesmo sem ter um teto ou um colchão onde dormir.
No local onde o barco de Edson aporta, cerca de 4 quilômetros distante de sua casa, uma multidão se aglomera embaixo de um ponto de ônibus. Há pessoas preparadas para receber os resgatados, voluntários com doações de roupas e colchões, um grupo de veterinários medicando e reanimando cachorros em parada cardíaca no meio da avenida.
E há também deslocados como o empresário Clevison Luiz, de 29 anos, que optou por passar dia e noite no ponto local seco mais próximo de onde residia. Morador de um apartamento valorizado em um prédio relativamente novo no bairro São João, ele há três dias dorme no chão, sob uma lona improvisada.
A sua região, mais distante da periferia, começou a alagar no sábado pela manhã, e logo foi tomada pelas águas do Guaíba. Ao receber o pedido de evacuação, deixou a filha na casa da mãe e se direcionou, junto com a cachorra Leona, a um abrigo. Pretendia permanecer lá, sob um teto e acolhido, mas poucas horas depois de chegar teve todos seus pertences roubados. Ficou apenas com a roupa do corpo e a coleira de Leona agarrada ao pulso. Decidiu, então, voltar ao bairro onde mora e desde então dorme na rua, embaixo da estrutura em concreto do ponto de ônibus que fica a poucos metros de casa.
Durante o dia acompanha, atônito, a tentativa muitas vezes frustrada de salvamento da vida de animais domésticos e a chegada de refugiados nas condições mais extremas. “Já chegou gente desmaiada, em choque, tremendo de frio. Em pouco mais de 48 horas eu já vi, daqui, mais tragédia do que em toda minha vida”, conta.
À noite, passa por tentativas também frustradas de descansar ao lado de Leona. O frio, a movimentação de desabrigados e o constante barulho de barcos chegando não permitem mais de uma hora completa de sono.
Edson, Deise, Clevison e outros milhares de gaúchos são vítimas de um Estado atingido por um evento climático tão extremo que afundou não só as regiões periféricas, já acostumada a catástrofes, mas também regiões centrais e mais ricas. Desde sexta-feira, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul estampam o que a ciência vêm alertando há décadas: as mudanças climáticas são reais e tragédias como essa irão acontecer cada vez com mais frequência.
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