A cena é de 2020, da série Aruanas, da Globoplay, mas foi parar agora numa campanha do Instituto Alana, viralizou e levantou um debate. No vídeo, a personagem da atriz Débora Falabella, uma jornalista, diz: “Estou parando de usar ouro a partir de hoje, porque a minha riqueza é de outra ordem”. Na sequência, imagens de uma reportagem sobre a tragédia do povo Yanomami, na Amazônia, e, então, ela tira suas joias.
A campanha do instituto sobre consumo consciente não começou agora, mas ganhou novos contornos a partir da crise sanitária do povo Yanomami, afirma o presidente do Alana, Pedro Hartung. “A campanha não é só esse vídeo, mas questiona as consequências do consumo do ouro e a certificação”, diz. “É quase impossível rastrear o ouro no Brasil.”
Uma das consequências do consumo, defende a campanha, é o garimpo ilegal. Em janeiro, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território indígena após identificar uma alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento.
As imagens de indígenas magros e abatidos, entre eles várias crianças, chamaram a atenção nas redes sociais para a tragédia humanitária, reflexo de problemas de assistência e avanço do garimpo ilegal na região.
A série, inicialmente lançada no canal de streaming, foi produzida pela Maria Farinha Filmes, é o que se chama de entretenimento de impacto, pois leva ao público uma discussão social relevante. “Temos dados que mostram que a série conseguiu furar a bolha e levar esse debate a pessoas que não estavam familiarizadas com o tema”, diz Hartung.
A primeira temporada, que abordou o garimpo ilegal na Amazônia, foi assistida por 34,9 milhões pessoas. De acordo com dados recolhidos pelo instituto, 91% da audiência que assistiu a série se sentiu solidária e teve vontade de se engajar à luta das personagens ativistas. A campanha parte do mesmo princípio para abordar a questão sobre o consumo de ouro. “Isso mostra a força do entretenimento”, afirma Hartung. “E isso sempre foi o objetivo dos ativistas, ampliar o debate.”
Nota fiscal eletrônica
Representante das empresas do setor, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) afirma que a situação do povo Yanomami é uma das consequências diretas das ações praticadas há muitos anos por quadrilhas de criminosos organizados na Amazônia. “Entre os quais, os que se autointitulam ‘garimpeiros’ (atividade regulamentada em lei), mas que, na realidade, praticam o garimpo ilegal.”
Segundo o Ibram, o instituto tem ações contra a ilegalidade, como os pedidos à Receita Federal para que institua notas fiscais eletrônicas nas transações com ouro do garimpo. A legislação admite o uso de notas fiscais em papel, manuscritas e, por vezes, “até mesmo produzidas em papel comum”, diz em nota.
Na avaliação do Ibram, será decisivo para conter o garimpo ilegal fechar seu acesso aos mercados. “E isso só acontecerá se o Brasil conseguir produzir ouro sempre de forma legal. É uma ação que depende de um eficiente sistema de rastreamento e ele começa a partir da emissão da nota fiscal eletrônica e passa pela equalização de impostos e taxas cobradas sobre o ouro. No Brasil, o ouro tem duas classificações: ‘ativo financeiro’ e ‘mercadoria’. Como apresentam diferenças expressivas em termos de carga tributária, há espaço para operações de lavagem, conforme já denunciado às autoridades”, afirma o instituto. Questionado sobre a campanha do Alana, o Ibram não se manifestou.
O que diz a indústria de joias
A indústria joalheira é o alvo equivocado desse movimento. Essa é a opinião de Écio Morais, diretor executivo do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM). “A população associa o garimpo ilegal às joias, mas é um equívoco. Dentre os consumidores de ouro, o mercado joalheiro é uma fatia pequena. Não consumimos mais de 10% do que se produz no País. Cerca de 90% é exportado ou adquirido pelo Banco Central para as reservas cambiais”, afirma. “O setor joalheiro é parte da solução, não é parte do problema”. O Brasil produz 100 toneladas de ouro por ano.
Morais destaca ainda que o setor condena o drama humanitário do povo Yanomami. “Estamos longe de pactuar com esse drama. É uma questão cruel que tem de ser tratada pela polícia”.
De acordo com o diretor, a rastreabilidade do ouro, outra questão central para coibir as práticas do garimpo ilegal, não está ligada diretamente aos joalheiros. Segundo a legislação brasileira, apenas as chamadas Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) podem fazer a aquisição do ouro no garimpo. “O joalheiro não pode ir ao garimpo comprar ouro. Ele tem um intermediário, instituído pela legislação brasileira“, afirma.
Algumas das reivindicações do setor para maior controle na procedência do ouro é a instituição da Nota Fiscal Eletrônica e a obrigatoriedade das aquisições pelo sistema bancário.
O representante da indústria joalheira aponta ainda a dualidade tributária do ouro como outra dificuldade do setor. O ouro destinado ao sistema financeiro é tributado pelo Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) com a alíquota de 1%. Já o ouro voltado para a indústria, o chamado ouro-mercadoria, é tributado em 18% de ICMS além do PIS/CONFINS em 9%.
Ações da PF
Nesta semana, a Polícia Federal pôs nas ruas duas operações contra o garimpo ilegal. Na terça-feira, a PF desencadeou a Avis Aurea em Roraima, contra a retirada de ouro da Terra Indígena Yanomami.
Nesta quarta-feira, a Operação Sisaque focou na organização criminosa que usava empresas de fachada para “esquentar” o ouro ilegal. De 2020 a 2022, o esquema movimentou 13 toneladas de ouro avaliadas em R$ 4 bilhões, segundo as investigações.
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