Expedição na Amazônia busca peixe-elétrico misterioso no Rio Negro

Nas próximas duas semanas, a bordo da embarcação Comandante Gomes, cientistas da USP vão coletar exemplares de poraquês e outros peixes da ordem Gymnotiformes

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Por André Julião
Atualização:

AGÊNCIA FAPESP – Os poraquês (Electrophorus spp.) são os mais conhecidos peixes-elétricos, em parte por conta do tamanho (até 2,5 metros de comprimento), mas principalmente pela capacidade de emitir descargas elétricas de até 860 volts. O choque é capaz de paralisar presas e mesmo afetar um ser humano por alguns segundos.

No entanto, a maior parte das cerca de 250 espécies da ordem a que pertencem, a dos Gymnotiformes, são peixinhos alongados e de olhos pequenos, que habitam rios, lagos e igarapés e emitem sinais elétricos fracos, suficientes para se comunicarem e navegarem. Uma espécie com essas características, por exemplo, é Iracema caiana, coletada uma única vez em 1968, e nunca mais encontrada.

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Até 2 de março, um grupo de cientistas vai vasculhar o fundo do Rio Negro, no Amazonas, igarapés e outros ambientes na região em busca de Gymnotiformes pouco conhecidos, como Iracema caiana, além de exemplares que possam subsidiar estudos e mesmo dar origem à descrição de novas espécies.

A bordo da embarcação Comandante Gomes, cerca de 20 pessoas, incluindo tripulação, pesquisadores e uma equipe da Agência Fapesp, vão subir o Rio de Manaus até Santa Isabel do Rio Negro, passando por unidades de conservação e outros municípios amazonenses.

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Pesquisadores passarão duas semanas num barco semelhante ao usado em uma série de expedições realizadas nos anos 1990, no âmbito do projeto Calhamazon. Foto: Acervo dos pesquisadores/Via Fapesp

Nas duas semanas de viagem, a equipe percorrerá uma trajetória parecida com a de Alfred Russel Wallace (1823-1913) em 1850, quando o naturalista – coautor da teoria da evolução – documentou parte da fauna e da flora amazônica.

A expedição é parte do projeto “Diversidade e Evolução de Gymnotiformes”, apoiado pela Fapesp e coordenado por Naercio Menezes, professor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).

“Nos quase sete anos em que o projeto está em andamento, fizemos uma série de descobertas e coletamos grande quantidade de exemplares para nossa coleção que, em função das pesquisas em andamento e a serem realizadas, ainda vão gerar resultados inovadores por mais alguns anos. Passada a grande seca que afetou a região amazônica recentemente, esperamos encontrar os peixes concentrados em ambientes aquáticos menores, o que deve facilitar a coleta e os estudos”, explica Menezes.

Um dos resultados mais conhecidos do projeto foi a descoberta e descrição de duas novas espécies de poraquê, em 2019, que até então eram consideradas apenas uma. O achado causou repercussão internacional, pois foi constatada a maior descarga elétrica já registrada por um animal, 860 volts.

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Os pesquisadores revelaram ainda os hábitos alimentares de uma das espécies do gênero e o comportamento de predação social de outra, que é raríssimo em peixes e outros vertebrados.

No decorrer do projeto, foi utilizada ainda uma técnica para identificar os peixes presentes em um determinado ambiente aquático usando apenas amostras de fragmentos do corpo (escamas, pele, fezes etc.) presentes na água, o chamado sequenciamento de DNA ambiental. O Museu de Zoologia da USP (MZ-USP) é a 1ª instituição brasileira a ter esse tipo de amostra depositada em seu acervo.

Riqueza genética

Mais do que conhecer e catalogar as ordens, famílias, gêneros e espécies de animais, os estudos em zoologia hoje se aprofundam nas diferenças genéticas dentro das populações distintas que compõem uma mesma espécie.

“Diante disso, a conservação não precisa estar atrelada necessariamente à espécie, pois, se há uma riqueza genética distribuída entre diferentes populações de uma delas, essa também deve ser reconhecida e protegida”, explica Murilo Nogueira de Lima Pastana, curador da coleção de peixes e professor do MZ-USP.

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Por isso, um dos objetivos é coletar pequenas amostras de músculo ou nadadeira que possam ter o genoma sequenciado, mesmo de espécies já presentes em coleções de zoologia. Uma vez que os espécimes são conservados em formol, seu DNA é degradado e dificilmente pode ser remontado integralmente com as técnicas disponíveis.

Mesmo este desafio, porém, poderá ser superado em breve, graças à aquisição de um conjunto de equipamentos pelo MZ-USP, com apoio da Fapesp, que permite sequenciar o chamado DNA histórico.

Os peixes-elétricos mais conhecidos são os poraquês, que, a depender da espécie, podem emitir descargas elétricas de até 860 volts. Foto: Acervo dos pesquisadores/Via Fapesp

Peixe misterioso

Uma grande expectativa do grupo é coletar novos exemplares, além de material genético, de Iracema caiana, o peixe-elétrico misterioso coletado pelo pesquisador Tyson Roberts em 1968 e descrito por Mauro Luís Triques em 1996, com apoio da Fapesp.

Atualmente, os únicos cinco indivíduos conhecidos da espécie estão depositados no MZ-USP. Nem mesmo grandes projetos envolvendo expedições na Amazônia, como o Calhamazon, que nos anos 1990 coletou mais de 20 mil exemplares, de 510 espécies, conseguiu encontrar novos exemplares de Iracema caiana.

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“Havia pouca precisão na determinação geográfica do local de coleta na época que os exemplares foram capturados, haja vista a inexistência de aparelhos de georreferenciamento preciso, como o GPS, comumente empregados em expedições científicas modernas. Com ferramentas de geoprocessamento, estimamos uma área onde provavelmente houve a coleta de Iracema caiana por Tyson Roberts, baseados em sua descrição do local de amostragem, no que atualmente é a Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi”, diz Raimundo Nonato Mendes Gomes Júnior, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e doutorando no MZ-USP.

A expedição será ainda uma oportunidade para mestrandos e doutorandos se capacitarem em técnicas de coleta e armazenamento de peixes, além de terem contato com a Amazônia, região detentora da maior diversidade de peixes do mundo, muitos ainda carecendo de um nome e uma descrição formal.

O trabalho reforça ainda os laços com parceiros do projeto, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), as universidades federais do Amazonas (Ufam) e da Bahia (UFBA), no Brasil, e o Museu Nacional de História Natural (NMNH), da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos.

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