PUBLICIDADE

‘Quando o fogo pega na Amazônia, já perdemos a luta. Governo focou no combate e pouco na prevenção’

Pesquisadora da Universidade de Oxford, no Reino Unido, diz que chamas não se alastravam facilmente na floresta úmida, mas cenário mudou com a crise climática

PUBLICIDADE

Foto do author Roberta Jansen
Atualização:
Foto: Marizilda Cruppe
Entrevista comErika Berenguerbióloga

Uma das maiores referências do mundo em estudos sobre a dinâmica de propagação do fogo na Amazônia, a bióloga Erika Berenguer diz que o governo não soube agir na prevenção dos incêndios que assolam a região. Por causa das mudanças climáticas, a floresta úmida e densa, que nunca queimava, se transformou em poucas décadas, favorecendo a disseminação das chamas.

Segundo Erika, o combate ao fogo é importante como redução de danos, mas, em um País de dimensões continentais, a única saída é investir em prevenção. “Quando o fogo está pegando na Amazônia, já perdemos a luta”, disse em entrevista ao Estadão. “O governo não está conseguindo responder com propriedade, isso é um fato. Focou no combate ao fogo e pouco na prevenção.”

Como o Estadão mostrou, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi alertado sobre a seca, a maior desde o início da série histórica há 74 anos, e o risco de escalada dos incêndios florestais. Uma série de documentos incluindo ofícios, notas técnicas, atas de reuniões e processos judiciais mostra que a gestão petista tinha ciência do que estava por vir desde o início do ano.

O Ministério do Meio Ambiente afirmou, após a publicação da reportagem, que o governo se antecipou, mas que ninguém esperava eventos nas proporções atuais. Disse ainda que não é possível controlar a situação se o “povo” continuar provocando incêndios.

Erika integra o Laboratório de Ecossistemas da Universidade de Oxford e é pesquisadora visitante da Universidade de Lancaster, ambas no Reino Unido. Há pelo menos 15 anos, a bióloga passa longos períodos na Amazônia, estudando o impacto das ações humanas e das mudanças climáticas no bioma.

O principal foco do seu trabalho é o fogo resultante da atividade humana, que altera a dinâmica da floresta - às vezes de forma irreversível.

Publicidade

Leia os principais trechos da entrevista:

Como analisa a seca e as queimadas em todo o Brasil e, especialmente, na Amazônia? Já conseguimos dizer qual a contribuição das mudanças climáticas nesta situação?

Tem um ramo da ciência que se chama ciência da atribuição. Os climatólogos conseguem o porcentual, o quanto da seca está sendo exacerbado por conta das mudanças climáticas. Mas ainda não temos esses números para a atual situação. Eles devem começar a aparecer ao longo do ano que vem, conforme novos estudos saírem. O que pode, sim, dizer, baseado nas evidências que temos, é que secas extremas ocorrem. Porém, o clima já mudou. Temos de usar o verbo no presente e no passado, não mais no futuro. O clima vem mudando e está mudando. O que a gente já sabe, falando especificamente de Amazônia, é que, desde os anos 1970, já houve aumento de 1,5ºC no bioma como um todo. Ou seja, a Amazônia já está mais quente.

A pesquisadora Erika Berenguer em floresta queimada no Pará, em 2023.  Foto: Marizilda Cruppe/Rede Amazônia Sustentável

E o impacto do El Niño?

O El Niño de 2015 foi intenso, mas foi mais brando que o de 1998, que é chamado de ‘King Kong’ dos El Niños. O que discutimos é que isso aconteceu por causa das mudanças climáticas. Quer dizer: mesmo que tenhamos seca extrema, se acontece em cima de um clima já modificado, seus efeitos são mais intensos. E foi provavelmente isso que aconteceu em 2015 e que está acontecendo agora.

As mudanças afetam a Amazônia de forma desigual, certo? O que é mais preocupante?

Sim, as mudanças climáticas têm efeitos diferentes em diferentes partes da Amazônia. No leste da Amazônia os impactos são maiores. E a gente já sabe que na região do Baixo Tapajós, por exemplo, a estação seca registra 34% menos chuva do que no passado. Ou seja, a estação seca está muito mais seca, o que deixa a floresta mais inflamável. Mas é particularmente assustadora a presença de fogo na Amazônia Central. Essa região é extremamente úmida e o fato de agora estar inflamável é altamente preocupante.

Você é uma pesquisadora que sempre passa longos períodos na Amazônia estudando justamente a dinâmica do fogo. O que já pode dizer sobre o fato de os incêndios serem criminosos, como afirma o governo?

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Não temos dados ainda que embasem a ideia de uma ação coordenada, como está sendo investigado em São Paulo, como foi investigado em 2019, naquele dia do fogo em Novo Progresso (no Pará, em ação que foi depois apurada pelas autoridades). O que se sabe pelos dados é que, historicamente, até 2023, a maioria dos incêndios é iniciada pela agropecuária, que usa o fogo no manejo das terras. Esse fogo escapa e acaba pegando na floresta, sobretudo se a floresta estiver seca.

No caso da Amazônia, outro dado importante de lembrar é que 96% dos incêndios relacionados ao desmatamento são criminosos, até porque o desmatamento no Brasil é ilegal. E outra: o uso do fogo em pastagens também é proibido. Só pequenos agricultores e populações tradicionais podem usar fogo. Isso também é criminoso. Não dá para dizer ainda se houve ação criminosa organizada, mas certamente houve ação criminosa orgânica. E quando está seco, o fogo se propaga mais facilmente pela vegetação nativa.

O que deve acontecer na Amazônia a curto prazo?

A gente pode olhar para o passado para buscar resposta. Setembro, historicamente, é o mês mais crítico. Mas, a seca não ocorre em toda a Amazônia ao mesmo tempo. No Pará, por exemplo, é em setembro, continua ruim até o fim do mês. Em outubro e novembro dificilmente vai melhorar, então deve perdurar um pouco mais. Historicamente, o período de estiagem em Roraima é o último; o pico da seca acontece em janeiro. Provavelmente teremos fogo até o início do ano que vem.

Publicidade

O climatologista Carlos Nobre afirmou, em entrevista ao Estadão, que metade da floresta deve desaparecer até o fim do século. Disse também que o processo de savanização já está em andamento. Concorda com essa análise?

Não sei em qual estudo ele se baseou para falar que metade da floresta vai desaparecer até 2100, então não posso comentar. Na minha análise, a floresta continua existindo como floresta, mas uma floresta bem diferente. Quando olhamos para o bioma como um todo (englobando os nove países), já tivemos 120 mil km² de floresta queimada. Nessas áreas, o estoque de carbono é menor e a biodiversidade é mais pobre, mas, ainda assim, é uma floresta. Não quer dizer que seja bom. Numa área intacta, a floresta tem funções ecológicas importantes, como a regulação das temperaturas e do regime de chuva. Nas áreas devastadas, é tudo diferente. Sobre o termo savanização, eu não gosto. Sei que parece uma discussão puramente acadêmica, mas não é. Quando dizemos que a Amazônia vai virar um Cerrado, é como se estivéssemos dizendo que o Cerrado é pior que a Amazônia. É como se estivéssemos dando a entender que está tudo bem desmatar o Cerrado, já que ele é pior que a Amazônia. Em termos ecológicos, a definição de savana é de árvores muito espaçadas e gramíneas e não se observa isso na Amazônia. O que a gente provavelmente vai ter, e isso é consenso, é uma Amazônia muito degradada, diferente daquela que reside no nosso imaginário, de árvores enormes e mata fechada. Será uma floresta mais aberta, sem árvores gigantes, mais baixa. Isso não acontece da noite para o dia, lógico, mas é um processo contínuo.

Com pouco mais de 17 mil habitantes, o município de Envira, no sudoeste do Amazonas, sofre os impactos da estiagem e das queimadas. Pelo menos dez mil pessoas foram afetadas com o isolamento das comunidades. Foto: Divulgação/Defesa Civil Municipal

O que dizer sobre o ponto de não retorno, partir do qual a floresta não pode mais ser recuperada?

Existe uma discussão sobre se o ponto de não retorno é quando 18% da floresta estiverem destruídas ou 20%. Sinceramente, acho que isso não importa. Sabemos que estamos caminhando nessa direção e que vai chegar lá. Precisamos evitar chegar neste ponto.

De que forma as alterações na cobertura vegetal da Amazônia afetam o clima no Brasil?

O que as evidências mostram é que florestas degradadas reciclam menos água e produzem menos chuva. A região em volta tem elevação de temperatura, a floresta deixa de atuar como ar-condicionado, justamente porque não está bombeando tanta água para atmosfera. Na floresta degradada, há uma mortalidade muito alta de árvores e, é bom lembrar, 50% do peso de uma árvore é carbono; ou seja, estamos jogando CO2 na atmosfera.

Na seca de 2015, na queimada registrada na região do Baixo Tapajós, por exemplo, morreram 2,5 bilhões de árvores. Naquele ano, apenas aquela região ficou em 13º lugar mundial na lista dos maiores emissores de gases estufa, à frente de Inglaterra e Itália. Apenas uma região. Agora há grandes incêndios em várias regiões.

É possível recompor essas áreas?

O fogo é um problema relativamente novo na Amazônia, que veio com as mudanças do uso do solo e com as mudanças climáticas. Para se ter uma ideia, o primeiro grande incêndio na Amazônia ocorreu em 1998, em Roraima, naquele El Niño tão forte. o máximo que temos de monitoramento são 30 anos. Nessas áreas, a diversidade ainda é 25% menor do que a de regiões que nunca queimaram. A recuperação é muito lenta, porque as árvores demoram muito para crescer. Por outro lado, as áreas que já queimaram são mais suscetíveis a novas queimadas. Quer dizer, a floresta que está se recuperando, pega fogo novamente, e o processo de recuperação tem de ser reiniciado.

Por que o fogo é um problema relativamente novo na Amazônia? Por que não havia incêndios antes?

O roçado da mandioca é prática centenária na região, muito comum entre indígenas. O fogo era usado para limpar terreno e não escapava. A floresta era tão úmida que funcionava como aceiro, uma área que apaga o fogo. Hoje não é mais assim. O que todos os cenários mostram é que as estações mais secas estão cada vez mais longas e intensas. Ou seja, chove na estação seca, mas cada vez menos e o período de seca dura cada vez mais. A paisagem, de forma geral, é mais ressecada. Quanto mais altas as temperaturas, mais a floresta perde umidade para o ar. Com isso, o fogo escapa rápido e se propaga facilmente. Por isso temos incêndios florestais em áreas que, por milhões de anos, nunca queimaram.

Publicidade

Como avalia a atuação do governo em relação ao enfrentamento às mudanças climáticas?

O governo não está conseguindo responder com propriedade. Isso é um fato. Mas, o cenário é bem diferente em relação ao governo anterior, quando não houve seca intensa. Segundo dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, ligado ao governo federal), temos 60% do País em seca intensa. Do ponto de vista climático, são situações muito diferentes. Por outro lado, a queda do desmatamento foi brutal durante os dois primeiros anos do governo Lula. Se isso não tivesse acontecido, estaríamos numa situação ainda pior. Sei que é difícil de imaginar porque a situação está péssima. Mas é para dar ideia da magnitude do problema que teríamos agora se o desmatamento não tivesse baixado tanto. O governo fez um excelente trabalho no combate ao desmatamento, porém faltam mudanças sistêmicas para a prevenção dos incêndios. Precisamos de ações preventivas à degradação florestal, principalmente pelo fogo. Quando o fogo já está pegando na Amazônia, já perdemos a luta. E isso custa vidas e a saúde da população. O governo pode chamar os 210 milhões de brasileiros para apagar o fogo, mas ainda assim é muito difícil. O combate é importante como redução de danos, mas o que temos de fazer é não deixar o fogo acontecer. Foi aí que o governo pecou em 2023 e 2024, focando no combate ao fogo e pouco na prevenção.

Qual o impacto na vida das populações locais, sobretudo com a baixa do nível dos rios?

Ano passado testemunhei a enorme dificuldade de as crianças irem à escola. Lá não tem ônibus escolar, é barco escolar. E estava tão seco que os rios baixaram muito e não dava para navegar, não dava para o barco pegar as crianças. Os professores, por sua vez, tinham de caminhar pela lama, o que é cansativo, correndo risco de levar rabada de arraia, cortar as pernas e os pés. É prejuízo direto para a educação. Teve projetos de criação de peixes em aldeias indígenas em que todos os peixes morreram porque a lâmina de água ficou muito estreita para tanto peixe. Os pescadores também reclamam que é difícil pescar, os barcos ficam encalhados, é lama para todo lado. O impacto social é gigante. Sem falar na saúde, no deslocamento de médicos e pacientes. Espero que o que está acontecendo este ano sirva de alerta para que o governo comece a trabalhar na prevenção. No Rio Grande do Sul foi a mesma coisa. Os cenários climáticos já mostravam as enchentes. Era uma tragédia anunciada. Não tinha data, mas já estava anunciada. Com as queimadas é o mesmo. O fogo será cada vez mais prevalente na Amazônia. Saber disso e não prevenir é como andar num carro desgovernado sem cinto de segurança.

Publicidade